Não é difícil imaginar quão entusiasmado ficaria Nelson Rodrigues (1912-1980) se tivesse tido a oportunidade de assistir à final do mundial de clubes no domingo (16/12). O momento em que a bola cabeceada pelo centroavante corintiano estufou a rede da meta defendida pelo goleiro do time inglês certamente seria acompanhado com grande euforia pelo fanático torcedor.
Nelson não era corintiano – é verdade: era um apaixonado pelo tricolor das Laranjeiras. Mas não podemos nos esquecer de seu gosto por qualquer signo que pudesse representar, de alguma forma, a cultura brasileira. O futebol é um deles. A conquista do Corinthians provavelmente serviria como poderosa arma nas mãos de Nelson em seu combate ao eurocentrismo, sintoma patente daquilo que o escritor, jornalista e dramaturgo chamou de “complexo de vira-latas” há cinco décadas, quando o Brasil ainda se lamentava pela derrota do Maracanaço:
“Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de ‘complexo de vira-latas’. Estou a imaginar o espanto do leitor: ‘O que vem a ser isso?’. Eu explico. Por ‘complexo de vira-latas’, entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente, em face do resto do mundo.”
“Eurocêntricos em Campo”
O Chelsea, que em momento algum parecia imaginar que poderia ser derrotado, após o gol da equipe paulista perdeu-se em campo. A velha e famosa organização, típica da cultura europeia – como sempre fazem questão de exaltar os jornalistas esportivos brasileiros – ironicamente ruiu no momento crucial do jogo. A frase que se tornou bordão nesse mundial de clubes ganhava algumas adaptações incapazes de corrigir o eurocentrismo de sempre: “o mais europeu dos times latinos” venceu a disputa – talvez contra o mais latino dos europeus, outros poderiam acrescentar. O jornalista Vitor Birner escreveu em seu blog: “Nos blues, a bagunça é grande” e o “Corinthians tem sido mais europeu que o Chelsea”.
Em uma primeira análise, poderíamos imaginar que se tratava de uma simples e ingênua referência ao estilo de jogo dos clubes, à forma de se distribuir os jogadores nas quatro linhas ou quaisquer outros elementos táticos. Mas, quando observamos o contexto no qual o bordão era usado, percebemos o reforço da ideia da virtude europeia em detrimento à infâmia latina. O impecável senso de organização dos europeus se opondo à barbárie de uma América Latina a anos-luz da civilização. Puro vira-latismo.
A jornalista Silvia Chiabai, em seu artigo “Eurocêntricos em campo”, neste Observatório, expôs com maestria a personalidade de muitos que trabalham no jornalismo esportivo brasileiro: “Não existe hierarquia em matéria de cultura como se tem em economia; mas nossos jornalistas esportivos televisuais se colocam em inferioridade em relação aos europeus e não escondem uma certa lástima por não terem nascido no chamado ‘Primeiro Mundo’.”
A supervalorização do “velho continente”
No exterior, é comum vermos tabloides, como o inglês The Sun, cuja prepotência e arrogância ainda insistem em defender uma teoria que, se antes já não fazia sentido, hoje é surreal: a superioridade europeia, advinda de tempos coloniais. A manchete “O fim do mundo”, em referência à conquista do time brasileiro sobre o todo-poderoso Chelsea, é uma aberração jornalística.
O maior problema, no entanto, não está lá fora. Está aqui, no Brasil. Se não temos grande poder de influenciar o que o jornalismo dos outros países produz, temos o direito de exigir dos nossos jornalistas mais respeito à cultura local e menos babação de ovo a quem nada devemos. Não faz sentido menosprezarmos uma cultura tão rica e bela como a brasileira ou a sul-americana para bajularmos uma Europa já tão cheia de si.
Isso não vale apenas para o meio esportivo. O eurocentrismo é visto em qualquer editoria do jornalismo brasileiro. No âmbito internacional, por exemplo, até o conhecimento sobre os nossos vizinhos latino-americanos é afetado pela supervalorização do “velho continente”. O Brasil se afasta cada vez mais dos demais países que compõem o continente do qual faz parte para levantar a bola, de maneira excessiva, de um grupo que jamais fará parte: o europeu.
A luta pela democracia
Se considerarmos a ascensão do Brasil como ator da política internacional e a queda de uma Europa que enfrenta as sérias consequências de uma grave crise econômica, o rompimento com o eurocentrismo se faz mais que necessário.
Não duvido que a bajulação da cultura europeia tenha diminuído no Brasil nos últimos anos. No entanto, o fato de o peruano Paolo Guerrero, e não um brasileiro, ter sido o autor do gol da consagração da equipe alvinegra pode servir como curiosa metáfora de que, apesar de estarmos no caminho certo, ainda nos faltam alguns passos. Ainda sofremos com o complexo de vira-latas, diagnosticado há 54 anos por Nelson Rodrigues, um possível psicanalista nas horas vagas…
“É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender”, afirmou Nelson. Na verdade, não é apenas futebol que o brasileiro tem para dar e vender, mas talento, mas capacidade e boa-vontade nas mais diversas áreas.
No domingo da final entre Corinthians e Chelsea, o futebol nos deu uma fantástica lição cultural. Mais uma vez, ficou provado que não há mais clima para a manifestação sintomática do complexo de vira-latas e do eurocentrismo, herdados de uma colonização que parece ainda não ter chegado ao fim. Pois essa é a função do futebol na minha vida e essa deveria ser a função de todo o jornalismo na sociedade. A mudança do status quo, o questionamento de valores cristalizados e luta constante pela democracia em todos os seus aspectos.
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[Marcos Mortari é estudante de Jornalismo, São Paulo, SP]