Assim como na TV, a presença pública no rádio alemão é muito marcante, apesar da grande maioria das estações transmissoras serem privadas ou comunitárias. Há mais de 500 estações de rádio na Alemanha, e pela Constituição a atribuição de licenciá-las é estadual (lembrando que Berlim, Hamburgo e Bremen são cidades que têm o status de um estado). A audiência é muito ampla: praticamente todos os lares alemães têm pelo menos um aparelho de rádio, sendo muito comum a presença de dois ou até mais. Há aparelhos no quarto, na cozinha, no banheiro, na sala, tendência ampliada com a fusão de funções entre computadores, tevês, aparelhos de som, a telefonia e o rádio. Como a esmagadora maioria das estações têm alcance local, a maior parte das trasnmissões se dá em FM e, mais recentemente, vem aumentando a difusão do rádio digital.
Há cinco grandes transmissoras de alcance nacional, mesmo que seja através de retransmissoras locais, e quatro delas são públicas: a Deutschlandfunk (DF), a Deutschlandradio Kultur (DK), a Dradio Wissen (DW) e a Dokumente und Debatten (DD). Uma é privada: a Klassik Radio (KR), especializada em música clássica.
Como quase tudo nesta Alemanha, a estrutura das transmissões nacionais é herdeira da Guerra Fria. A DF opera através do sistema da rede ARD (ver “Um sobrevôo sobre a mídia alemã: a televisão“). Sua criação foi uma reação às transmissões da Deutschlandsender, rádio em onda larga da antiga DDR. Em 1956 criou-se em Colônia, no lado ocidental, a Deutsche Langwellensender (DL). Em 1960 foi fundada a DF, com base numa decisão judicial que estabeleceu que, se pela Constituição a transmissão de rádio na Alemanha era de licenciamento estadual, a transmissão da Alemanha era competência federal. A DF acabou absorvendo a DL, a partir do começo das transmissões em 1962.
A DF mantinha um Departamento Europeu, com transmissão em várias línguas, que depois da reunificação foi absorvido pela Deutsche Welle, uma agência de notícias para o exterior na mídia escrita, televisiva e radiofônica, também de natureza pública. Também depois da reunificação a DF passou por alterações de estrutura, viveu em parte do tempo como Deutschland Radio, até estabelecer-se como DF definitivamente. Continua com sede em Colônia, opera predominantemente com noticiário político, econômico, social e com uma programação cultural, e não tem publicidade.
A DK é herdeira da Deutschlandsender que, fundada em 1926, passou a ser a emissora oficial da DDR depois da Segunda Guerra. Depois da reunificação ela fundiu-se com a RIAS – estação de rádio do setor norte-americano em Berlim Ocidental durante a Guerra Fria, e em 2005 passou a ser a atual DK. A DW é especializada em noticiário e programas sobre ciência e tecnologia, e a DD cobre o Bundestag, com noticiário e programas de debate. Detém também uma programação especial para a navegação.
As rádios comunitárias atendem a nichos especiais e normalmente têm um alcance municipal. São as antigas rádios piratas (como ainda no Brasil de hoje) que, a partir dos anos 90 foram reconhecidas e regulamentadas, e hoje recebem, inclusive, financiamento público. São muito utilizadas por grupos de imigrantes. Há também, como no Brasil, um importante setor de rádios universitárias.
Além destas, há cinco estações internacionais que operam na Alemanha: a BBC britânica, a Radio France Internationale, a Voice of Russia (o número de imigrantes russos vem aumentando enormemente na Alemanha, e deve-se lembrar que foi uma entrevista para esta rádio que, aparentemente, consolidou a aproximação entre Julian Assange e o presidente Rafael Correa do Equador), e duas norte-americanas. São estas: a National Public Radio e a Radio Free Europe, que tomou parte bastante ativa na Guerra Fria e recebeu financiamento da CIA pelo menos até 1972.
A questão da liberdade de imprensa
Como se vê, fechando esta visada sobre o setor mais tradicional da mídia alemã, a presença do Estado, se dé de pouca monta na mídia impressa, limitando-se a delimitar as bases legais do autocontrole, é bastante robusta e intensa na mídia televisiva e radiofônica, sem que, no mais das vezes, isso provoque reações violentas (como no Brasil) por parte do setor privado em nome de uma supostamente ameaçada “liberdade de imprensa”.
Historicamente há a preocupação em neutralizar as intervenções nazista e também do regime comunista na extinta DDR no campo da mídia. Do lado Ocidental o episódio mais marcante com respeito à liberdade de imprensa ficou conhecido como “O escândalo da Der Spiegel”. Em 1962, depois de um conflito entre o editor-chefe da revista, Rudolf Augstein, e o então ministro da Defesa, Franz-Josef Strauss, a polícia ocupou a sede da redação em Hamburgo e vasculhou as casas de dezenas de seus jornalistas, apreendendo vasta documentação.
O conflito começara em 1961, com denúncias de corrupção feitas pela revista contra Strauss, denúncias que, diga-se de passagem, não ficaram provadas em juízo. Ele se agravou em 1962 com um artigo escrito pelo jornalista Conrad Ahlers sobre a precariedade das Forças Armadas da RDA diante das da DDR, coisa que foi considerada não só ofensiva por Strauss, mas como um verdadeiro crime de traição.
Posteriormente ficou comprovado que Strauss instigara não só os atos da polícia mas o próprio Exército, pedindo ao adido militar alemão em Madri que conseguisse a prisão de Ahlers, que lá se encontrava, o que foi conseguido, sendo ele deportado para a Alemanha. Ahlers, Augstein e mais outros diretores da revista ficaram presos durante meses, até o começo de 1963. Houve preotestos generalizados, inclusive de rua, contra Strauss e o então chanceler Konrad Adenauer, da CDU, acusados ambos de atentado à liberdade de expressão e censura ao jornalismo crítico.
Em dezembro de 1962 Adenauer formou um novo gabinete, mudando o ministro da Defesa. O caso acabou nos tribunais, e o juiz federal encarregado acabou sentenciando que houvera mesmo “abuso de poder” por parte de Strauss. Também a Suprema Corte Alemã entrou na discussão, e boa parte da atual jurisprudência sobre liberdade de expressão e de imprensa hoje vigente na Alemanha deriva de seus pronunciamentos sobre este caso.
O último incidente de grande monta envolvendo a questão da liberdade de expressão se deu entre o final de 2011 e o começo de 2012, envolvendo o então presidente Christian Wulff e a direção do jornal Bild (ver “Um sobrevôo sobre a mídia alemã: (1) o jornalismo impresso“). Ao ter notícia que Bild iria publicar matéria sobre ter ele aceito favores de um amigo, sob a forma de estadia gratuita em hotel de propriedade deste, o presidente ligou para o jornal, que fora seu aliado, e segundo declarações da direção teria pedido “em termos não educados” que, até hoje não se sabe ao certo, porque a gravação não foi divulgada, estando em segredo de justiça, a matéria fosse suspensa ou tivesse sua publicação postergada.
A atitude de Wulff foi tida também como um atentado à liberdade de expressão e de imprensa e a partir daí ele teve quase toda a mídia alemã contra ele, provocando sua renúncia. Não deixou de haver um certo exagero por parte de órgãos da mídia, que passaram a vasculhar e expor a vida pessoal do presidente, vista como perdulária e de estilo “novo rico”, numa invasão, a meu ver, de privacidade e entrada em assuntos que nada tinham a ver com o tema principal da questão. A quezília continua até hoje, com reportagens também aparecidas na mídia “acusando” a atual esposa de Wulff de ter sido prostituta no passado, numa demonstração de total mau gosto por parte daquelas. O caso certamente irá parar nos tribunais, por difamação, calúnia, e acusações semelhantes.
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[Flávio Aguiar, da Agência Carta Maior em Berlim]