Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Feliz ano novo

Como acho que já contei aqui, meu primeiro emprego, aos dezessete anos, foi em jornal, na época em que não havia escola de comunicação e a gente tinha de aprender no tapa, ouvindo esbregues dos superiores (ou seja, todo mundo na redação, porque o status do foca equivalia ao de um recruta dos Fuzileiros Navais) e imitando os veteranos que mais admirávamos ou invejávamos. Fui um repórter esforçado mas bisonho, e desconfio que, nos primeiros tempos, só não me demitiram porque eu falava inglês e quebrava o galho da cobertura local, entrevistando os gringos que se hospedavam no velho Hotel da Bahia, então o único de nível internacional em Salvador.

Sobrevivi a esses duros tempos e cheguei a exercer, um par de vezes, uma função que não existia nos organogramas, mas era comum, a de redator de tudo. Ou redator de qualquer coisa, como se preferir. Não tenho grandes saudades dessa condição, que me levou a escrever horóscopos, reclamações de leitores contra a prefeitura, resenhas de livros, explicações sobre como votar nas próximas eleições, discursos (do patrão, é claro) para o Rotary Club, notas para inserir na coluna social, obituários, editoriais e o que mais fosse enviado a minha mesa. Mas sou obrigado a admitir que, para quem vive de escrever, como eu, foi um treinamento precioso, que já me possibilitou enfrentar vacas magras aceitando encomendas para escrever o que lá fosse – e hoje creio que só não redigi bula de remédio, sinto até falta de uma, em meu currículo. O resto eu fiz, de receitas de cozinha (“Receitas do Giuseppe” era o título da coluna; e o Giuseppe, vergonha mate-me, era eu) a manuais do usuário.

Devo ter escrito dúzias de artigos, crônicas, editoriais e assemelhados (sim, esqueci de mencionar que também escrevi mensagens de Natal e Boas Festas para cartões de empresas e para uma folhinha de padaria), a respeito do Natal e do fim do ano, ou começo do novo. Pensando bem, devem ser grosas e não dúzias, porque, mal a gente saía do “& que este Natal seja um verdadeiro momento de concórdia, entre homens de boa vontade” e já tinha de tascar o “& que este ano que se inicia traga com ele a paz que a Humanidade não tem conseguido alcançar”. Um dos poucos competidores das categorias Natal e Ano Novo eram o “Evoé, Momo” e sua sequela “Cinzas”, em que, respectivamente, concitávamos os cidadãos a uma folia sadia e sem excessos ou violência e meditávamos na quarta-feira sobre a fugaz condição humana, sem deixar de deplorar, en passant, os miasmas de xixi evaporado que se evolavam das ruas centrais de Salvador após o tríduo momesco, lastimável consequência de falta de espírito cívico e do desaparelhamento sanitário da cidade.

Às galés

Este ano, tivemos a onda que fizeram com o fim do mundo de acordo com os maias. Também não há nenhuma novidade nisso, a não ser para os muito jovens. Não lembro se já escrevi algum editorial sobre o fim do mundo, no que espero haver manifestado opinião contrária. Talvez tenha escrito, sim, no tempo da Guerra Fria, quando se temia que a Terra fosse pulverizada, até mesmo por algum governante louco ter apertado os botões errados. E, de tempos em tempos, aparece alguém anunciando o fim do mundo e, juntamente com o papa-figo, foi até um dos primeiros medos de minha infância, infundido pelas histórias de dona Antônia, quando eu morava em Aracaju. Dona Antônia era uma senhora de Muribeca, interior de Sergipe, que veio pedir uma ajuda a meu pai, se instalou numa das casinholas do quintal e ficou agregada durante uns três ou quatro anos, até minha família voltar para a Bahia.

– O primeiro fim do mundo foi ainda quando os bichos falavam e todo dia caía maná do céu, bastava rezar – explicava ela a sua mesmerizada plateia infantil. – Mas aí o povo foi ficando cada dia mais pecador, se fartava de maná e não queria mais nem ter o trabalho de rezar, só pecando, só pecando, só pecando, até que um dia Deus se aborreceu muitíssimo com essa situação, cortou o maná para sempre e chamou São Noé para conversar, numa grande montanha perto do Céu. Me compreenda uma coisa, disse Deus a São Noé, estou muito aperreado com tanta pecação e resolvi tomar uma atitude, de maneira que vou acabar o mundo, só me dá desgosto. Me faça uma grande arca de navegação, bote um casal de cada bicho dentro, embarque com a família, tranque tudo e espere, que não vai mais chover maná, vai chover é água mesmo, até encharcar e afogar tudo.

Acontecia, porém, que esse primeiro fim do mundo não havia sido suficiente para que os homens parassem de pecar e aperrear Deus. Pelo contrário, era pecado em cima de pecado, uma coisa demasiada mesmo, de maneira que se sabia que, mais cedo ou mais tarde, viria novo fim de mundo, desta feita pelo fogo e não pela água. Segundo dona Antônia, será o fim do mundo de São Pedro, até hoje não sei por quê, talvez por causa das fogueiras do dia do santo. Menino, naquela época, era muito mais besta que atualmente e continuei com certo medo de o mundo pegar fogo até a adolescência.

Hoje o medo passou, até porque não adianta, e me resta consolo na crença geral de que, quando o mundo acabar, lá em Itaparica só vamos saber uns cinco dias depois. E é claro que o início do ano não passa de uma convenção arbitrária que nem mesmo se tornou universal, pois outros povos usam datas diferentes da nossa. Mas não vamos pretender filosofar sobre essas coisas, já bastam os slides em Powerpoint que nos mandam pela internet, com textos cujos autores mereciam uma condenação às galés. Este ano, me distraí e não desejei feliz Natal aos pacientes leitores. Então desejo um feliz ano novo e, orgulhosamente, chamo a atenção para o fato de que enrolei, enrolei, fiz uma finta ali e acolá e acabei produzindo mais uma crônica de feliz ano novo.

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[João Ubaldo Ribeiro é jornalista e escritor]