Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

George Orwell e o uso da linguagem

George Orwell foi um grande escritor e jornalista inglês. Na sua extensa obra, dois livros se destacaram, inclusive no Brasil, nos quais revelou sua intensa oposição ao autoritarismo e ao totalitarismo: 1984 e A Revolução dos Bichos.

Aqui inspirou até o nome de um programa de televisão, o Big Brother Brasil. Big Brother, ou o Grande Irmão, era a figura imaginária e onipresente que conduzia o partido no poder num país sob jugo totalitário, imaginado por Orwell. Esse partido controlava seus membros de forma acintosa e cada um tinha em sua residência uma câmera de vídeo com que era observado pelo controle central exercido pelo Big Brother.

Menos conhecida é a paixão de Orwell pela clareza no uso da linguagem. Soube pelo seu livro Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios (São Paulo, Companhia das Letras, 2011). Nele, o capítulo A política e a língua inglesa trata mais da linguagem do que da política. Esta e os políticos entram em cena porque Orwell lhes atribui parte da culpa pela má linguagem.

Começa apontando a decadência da língua inglesa. As causas, várias, com seu próprio efeito atuando como causa adicional, ao reforçar as originais, produzir o mesmo resultado de forma intensificada, e assim por diante, indefinidamente. Nas suas palavras, a linguagem “… se torna feia e imprecisa porque nossos pensamentos são tolos, mas seu desmazelo torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos”.

Fiel à vocação

Várias de suas observações cabem também à língua portuguesa no seu uso no Brasil. Entre outros males, é evidente a invasão de estrangeirismos, principalmente ingleses, muitas vezes sem ponderação quanto ao seu significado e à necessidade e relevância de usá-los. Entre casos mais comuns, estão delivery, sale e off. E há bullying, que ignora nosso verbo bulir e o substantivo bulimento.

Há também os estranhos nomes que recebem edifícios lançados na cidade de São Paulo, quase todos em inglês, francês ou italiano. Recentemente, um jornalista americano que nela vive me disse ter ficado perplexo com um deles, o Augusta High Living, na chamada baixa Rua Augusta. Em inglês high é palavra também usada para descrever uma pessoa embriagada ou sob efeito de drogas.

Para crítica, Orwell apresenta cinco trechos de igual número de autores e neles ressalta duas características comuns. A primeira é o “ranço das imagens” ou metáforas. A segunda é a falta de precisão conceitual, à qual voltarei mais à frente.

Quanto às metáforas, e escrevendo em 1946, argumenta que uma “recém-inventada ajuda o pensamento a evocar imagem visual, ao passo que uma que está tecnicamente 'morta' (por exemplo, resolução férrea) se transforma numa palavra comum e pode ser usada sem perda de vivacidade. Mas, entre esses dois tipos, há um enorme depósito de metáforas gastas que perderam todo o poder de evocação e só são usadas porque economizam para as pessoas o trabalho de inventar expressões”.

Entre as gastas que cita, várias estão também na nossa língua: trocar seis por meia dúzia, misturar alhos com bugalhos, caiu na rede é peixe e calcanhar de Aquiles. Acrescenta que muitas dessas expressões são usadas sem o conhecimento de seu sentido, e pergunta: o que são bugalhos, por exemplo?

É ao discutir o sentido das palavras e expressões que enfatiza a política e os políticos. O termo democracia tem destaque: “… além de não existir uma definição com que todos concordem, a tentativa de criá-la sofre resistência de todos os lados. (… ) quando dizemos que um país é democrático, nós o estamos elogiando; em consequência, os defensores de todo tipo de regime alegam que ele é democrático, e temem que tenham de deixar de usar a palavra se esta for atrelada a algum significado”.

E mais: “Em nosso tempo, o discurso e a escrita política são, em grande medida, a defesa do indefensável. (…) Desse modo, a linguagem política precisa consistir, em larga medida, em eufemismos, argumentos circulares e pura imprecisão nebulosa. (…) O estilo inflado é em si mesmo uma espécie de eufemismo. (…) A linguagem política (…) é projetada para fazer com que as mentiras soem verdadeiras (…), e para dar uma aparência de solidez ao puro vento”. Assim, mesmo discorrendo sobre linguagem, percebe-se que Orwell foi fiel à sua vocação de rebelar-se quanto ao que via de errado na política, na qual ressaltou esse uso deturpado.

Raciocínio embolado

Afirmações suas soam familiares no Brasil, onde, por exemplo, é disseminado o entendimento de que o voto livre e universal basta para marcar o País como uma democracia; onde a escolha de reitores de universidades públicas apenas por seus professores, estudantes e funcionários é defendida a pretexto de ser democrática; onde há toda uma ginástica verbal de petistas a defender companheiros condenados à prisão; e onde o líder petista maior sempre se autoelogia, afirmando ter realizado uma gestão bem-sucedida “como nunca antes neste país”.

Quanto à linguagem em si, Orwell propõe seis regras para aprimorá-la, e adaptei a quinta à nossa língua: “1) Nunca use uma metáfora, símile ou outra figura de linguagem que está acostumado a ver impressa; 2) nunca use uma palavra longa quando uma curta dará conta do recado; 3) se é possível cortar uma palavra, corte-a sempre; 4) nunca use a voz passiva quando pode usar a ativa; 5) nunca use uma expressão estrangeira, uma palavra científica ou um jargão se puder pensar num equivalente do português cotidiano; 6) infrinja qualquer uma destas regras antes de dizer alguma coisa totalmente bárbara”.

Adicionaria uma sétima, a de evitar frases longas, pois embolam o raciocínio e confundem leitores e ouvintes. E de um filósofo da educação, o franco-americano Jacques Barzun, uma que abrange todas: escrever é reescrever.

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[Roberto Macedo é economista (UFMG, USP, Harvard), professor associado à FAAP e consultor econômico]