Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ano se foi e não deixou saudades políticas

Transformações são sempre dolorosas. A modernidade bateu forte à porta de todos, soterrando o passado e, como sempre ao longo da história, nem as reflexões sobre os escombros lamentam os avanços. Ao contrário, saúdam as rupturas com entusiasmo inusitado como nunca ocorreu entre o salto de um ciclo histórico para outro. Todos tememos ser ultrapassados à tarde pelas ideias que esposamos de manhã.

Quem imaginaria que no país, a Grécia, onde nasceu a democracia, seu pilar desabasse como um castelo de areia? Quem imaginaria que o bem-estar social europeu idolatrado nos anos 70-80 do século passado chegaria ao começo do século 21 completamente espatifado? Como assistimos de camarote a essas transformações, às vezes nem percebemos sua profundidade, clareza que só o tempo nos permite avaliar.

Data de 500 a.C. o nascimento da democracia. Nas chamadas cidades-estado, na Grécia antiga, os cidadãos a exercitavam nas ruas, nas praças onde se reuniam para discutir os problemas e buscar soluções. Dessas reuniões e debates, originaram-se sábios como Pitágoras. Atenas foi a cidade-estado cujo debate mais inspirou o que seria a forma de governo cujo percurso entre o ideal e o real sempre foi longo, tortuoso, penoso, saudável, energético para o funcionamento da sociedade. Da Grécia, a experiência migrou para Roma antiga. E mesmo sob os escombros dos impérios romanos, a democracia se alastrou pelo continente europeu, coroando, séculos depois, toda uma região com a conquista de um novo estado de bem-estar social. Entre o feudalismo e as monarquias, a sociedade acumulou todas as experiências políticas na busca de seus ideais.

Um público idiota?

Após o rompimento das principais correntes e saltos que aprisionavam a sociedade com o passado (monarquias) e finalmente com a Revolução Industrial, a sociedade passa a viver em dois terços do planeta os ares da democracia ainda acompanhada de mazelas do passado.

Compreende-se a angústia e o constrangimento do jornalista-cientista social Alberto Dines em seu artigo do nº 727 deste Observatório. Em meio a tantas questões de interesse público que a mídia séria deve tratar no Brasil, o desperdício de um precioso tempo na Globo News com a realização de um amigo oculto entre jornalistas profissionais qualificados para distribuição de presentes de fim ano não foi mais do que um acinte, uma agressão social, uma celebração à futilidade. Os profissionais têm todo o direito de promover seu amigo secreto para distribuição de presentes. Mas não no ar. Qual o interesse da população em assistir aos exibicionismos de jornalistas? Trata-se de um novo tipo de jornalistas? As celebridades do jornalismo? Jornalista é profissão para informar a população ou para dar aula de futilidade? Pergunta inquietante: a futilidade é matéria-prima na construção da democracia que defendemos para o Brasil?

Essa atitude da mídia brasileira, que talvez doravante seja reproduzida país afora, bem mostra em que tipo de sociedade vivemos, que ambiente político defendemos para o Brasil e qual o futuro que almejamos para a população. Como a credibilidade é o pilar do bom jornalismo e a futilidade é própria do artificialismo – em consequência, uma coisa não combina com a outra – testemunha-se uma estranha e perigosa proximidade: o império das mídias brasileiras começa a ser destruído por ele próprio. Uma ação semelhante à de uma uróboro, a serpente mitológica identificada na Grécia antiga, 2 300 a.C., que se autodevorava, começando pela sua própria cauda.

A mídia global deve ter motivos para festejar os louros da sua audiência. Mas quando houver uma conscientização política dessa audiência, a migração para outras mídias eleitas pela melhor qualidade dos seus programas será inevitável. Ou vamos eternamente supor que o público consagrador dessa audiência será permanentemente idiota?

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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]