José Guimarães é deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do Ceará. Irmão de José Genoino, ex-guerrilheiro de esquerda, ex-presidente do partido, ex-líder do PT e atualmente cumprindo mandato na Câmara Federal, apesar das contestações devido ao fato de ter sido condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por participação no esquema de corrupção conhecido como “mensalão”. Dizem as línguas viperinas que Guimarães não foi condenado a nada por conta de seu assessor, José Adalberto Vieira da Silva, não ter dado com a língua nos dentes acerca do caso em que se envolveu ao esconder US$ 100 mil na cueca quando tentava embarcar no aeroporto de Congonhas (SP). O então chefe de gabinete da presidência do Banco do Nordeste (BNB), Kennedy Moura, assinou o BO, assumindo não apenas ser dono da grana que levava nas partes íntimas, mas também de US$ 200 mil que Vieira da Silva levava em sua mala. De minha parte, jamais vi tanto dinheiro junto. Não tenho cueca suficiente para isso.
Guimarães reclamou, recentemente, que o Estado de S.Paulo publicou uma manchete que tenta “manchar” a imagem do ex-presidente Lula. Eis a manchete: “Procurador decide pedir investigação de acusações de Valério contra Lula”. Ora, objetivamente, a manchete não mancha imagem de ninguém. Mesmo que se considere a informação de que a Procuradoria-Geral da República não confirme a informação, ou mesmo que a negue, conforme informa o sítio Comunique-se, não há mácula posta na manchete. Assim como perguntar não pode ofender, investigar também não deve, a não ser que se tenha culpa no cartório, como se diz.
Trata-se de uma interpretação do nobre deputado, chefe do assessor dos dólares na cueca, o mesmo deputado que tinha tanta influência no BNB a ponto de indicar Kennedy, que ficou com o mico na mão no caso, tudo indica, para acobertá-lo. O BNB, aliás, coleciona denúncias de propinas, favorecimentos, licitações fraudulentas etc., tudo, ou quase tudo, envolvendo Sua Excelência. Ou seja, muitas máculas, muitas manchas na biografia política de José Guimarães.
O mecanismo da idealização
Aí, um analista amigo disse que se juntamos uma coisa com a outra teremos uma excelente ilustração daquilo que Melanie Klein chamava “identificação projetiva”, notadamente nos quesitos “culpa” e “reparação maníaca”, componentes teóricos fundamentais na construção do conceito. Ele explica que o conceito de identificação projetiva é muito útil para ajudar a entender como se estrutura a subjetividade de cada um de nós. É o mecanismo básico para isso e funciona, aproximadamente, do modo que vou descrever adiante. Desculpe-me apenas, caso não consiga entender. O tema não é simples o suficiente para ser esgotado em algumas linhas.
Dá-se quando, em tenra idade, a pessoa, para manter baixo o nível de angústia de sua mente, isto é, para não experimentar uma sensação desagradável e desprazerosa dentro de si, cinde os sentimentos bons e maus em grupos estanques e elege coisas e pessoas de seu ambiente para depositar esses sentimentos. Como se pode esperar, os sentimentos maus são projetados com maior frequência, pelo simples motivo que elevam o nível de angústia, o que significa dizer que são projetados para preservar os bons sentimentos, que ficam relacionados à própria pessoa ou, no máximo, a coisas e pessoas próximas – ou, mais precisamente, partes dessas pessoas, já que se trata de um mecanismo muito primitivo e não há percepção de pessoas inteiras nesse momento da vida. Os bons sentimentos precisam ser preservados do contágio com os maus para garantir que mantenham baixo o nível de angústia no chamado aparelho mental. Se há acúmulo de angústia, de privação e de ódio, há desprazer, se há baixa angústia, satisfação e afeto amoroso, há prazer.
Esse mecanismo, como bem se pode notar, é a base da estruturação do primitivo pensamento maniqueísta, no qual há essa divisão estanque entre bem e mal e isso é flagrante nas histórias infantis, com suas fadas e bruxas, que não são mais do que representantes desses sentimentos maus e bons.
Trata-se de uma estratégia mental que se fundamenta na fuga desesperada de um intenso sentimento de culpa e, para essa fuga, utiliza o mecanismo da idealização. Isso ocorre, principalmente, quando a criança vai estruturando seu aparelho psíquico e vai começando a descobrir que as pessoas não são apenas pedaços, como antes compreendia (que o seio não é um pedaço solto no mundo, mas pertence ou está ligado a um corpo, a uma pessoa inteira).
Identificação projetiva
Essa percepção ou descoberta, que abre espaço para o desenvolvimento do que Wilfred Bion, um discípulo de Melanie Klein que seguiu uma trilha própria e profícua, chama de “pensamento”, faz com que a criança experimente grande culpa pelos sentimentos negativos que projetou, simplesmente porque vai entendendo que projetou sentimentos bons e maus no mesmo objeto, que não conseguia ver como integrado anteriormente. Assim, o risco de destruir a pessoa que recebeu a carga de sentimentos negativos e que também guarda os positivos, faz com que se experimente um grande sentimento de culpa que, quanto maior for, gerará uma situação defensiva que Melanie Klein chamava de “defesa maníaca”, ou seja, a idealização da pessoa atacada, que passa a ser vista como onipotente e extremamente forte, além de, é claro, imaculada em sua bondade, pois os sentimentos positivos, bons, são idealizados como imensamente fortes e capazes de “blindar” a pessoa e salvá-la dos malefícios dos sentimentos negativos. Isso é necessário pois estes são também idealizados e somente um amor beatífico, absoluta e completamente indestrutível, pode combater um ódio tão poderoso e grandioso.
Quando nos períodos mais primitivos da vida, na predominância completa da divisão entre bem e mal, esse mecanismo, com sua culpa e reparação maníaca, é mais atuante, pois não há ainda como pensá-lo, ou seja, mantém sua força para além da capacidade de uma criança lidar com ela. A partir de um determinado momento da vida, quando o pensamento se estabelece e é possível integrar os sentimentos bons e maus em uma só pessoa, sem que seja preciso experimentar uma culpa intensa e imensa e sem que seja necessário proceder a uma idealização extrema. Entra-se numa fase estruturante que Klein compreende como depressiva e que representa o ingresso numa ordem pautada pela capacidade de se complexificar a estrutura mental. Nesse momento, a culpa pode ser melhor compreendida e em lugar dos mecanismos maníacos de idealização chega a capacidade de reparação, que permite a experiência do amor, do enriquecimento com a diferença e a gratidão pelas coisas boas que outra pessoa nos faz experimentar.
Em resumo resumidíssimo, sem entrar em detalhes, eis, aqui, uma breve exposição do que seja o mecanismo da identificação projetiva, que nos acompanha por toda a vida.
Quase uma confissão de culpa
Voltando ao deputado que defende Lula da maldade insana do Estadão, maldade essa que aparentemente não está patente na manchete citada, é possível perceber sinais claros de que a identificação projetiva está em plena ação no caso, exibindo suas particularidades mais primitivas e infantis. Parece claro que o nobre deputado não é daqueles que se pode garantir ter uma vida pública imaculada e ilibada. E digo isso a partir das denúncias e dos indícios que encontramos ao pesquisar a vida no nobre cearense, não posso dizer que tudo seja verdade, mas afirmo que não é possível ter garantias de que Guimarães esteja acima de qualquer suspeita, muito pelo contrário.
Aí, mais uma vez, um analista amigo meu diz que é possível entender que o deputado baiano faz, para bom entendedor, quase uma confissão de suas mazelas.
Se o Estadão apenas diz que o Ministério Público vai investigar Lula, então não há motivos para aflições, objetivamente. Isso parece claro e cristalino. Os indícios vão surgindo a partir da interpretação da manchete como um ataque letal, o que parece uma óbvia manifestação de que o deputado está, como diz o analista, deixando de ver o que acontece efetivamente na realidade e está “colocando suas fantasias para substituir isso” e idealizando o poder da manchete, o poder do Estadão e, provavelmente, o poder destrutivo de seus prováveis atos espúrios, denunciados e comentados na imprensa e nos meios políticos, o que o lança numa torrente de culpa, num mar de angústias. Assim, precisa fazer de Lula uma figura imaculada, cuja imagem não pode ser manchada por nada, nem mesmo por uma manchete despretensiosa como a referida, que não acusa Lula de participação em nenhum ato ilícito, apenas afirma que o MP pensa em investigar se não há mesmo essa participação.
Se há interesse do Estadão em condenar Lula, isso é outra coisa. Provavelmente há, como há em boa parte de nós, que não temos como engolir a inocência do experiente político no caso. Se José Dirceu foi condenado, se José Genoino foi condenado, como Lula, o chefão, não sabia de nada, de nadinha? Todos sabemos o quanto Lula é blindado no PT. Todos sabemos da idealização de sua pessoa para todo e qualquer militante desse partido. Essa história não é nova. Todos sabemos que, se houve efetivamente o tal mensalão, conforme o STF nos quis fazer crer, é praticamente impossível que Lula não soubesse de nada. Mas, afirmar que somente porque publica uma manchete na qual diz que vai haver investigação sobre o ex-presidente o Estadão está lhe “manchando a imagem” já parece ser um caso patológico que, como disse o analista amigo meu, parece mais uma confissão de culpa. Guimarães teme, se angustia, fantasia que sua própria maldade é a responsável pela fragilidade do líder do PT e precisa idealizar este, enxergá-lo quase como uma virgem imaculada, numa clara manifestação de recurso a uma reparação maníaca. O Estadão é a bruxa, Lula a fada.
Alguém precisa indicar um analista ao deputado José Guimarães. O caso parece grave.
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[Luiz Geremias é psicólogo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura]