Em 2007, o Brasil foi ratificado como país-sede da Copa do Mundo Fifa 2014. Várias pessoas e profissionais ligados a este esporte comemoravam a volta do principal torneio esportivo do mundo ao “país do futebol”. 2014 representaria a chance de diminuir o impacto do fracasso de 1950. Entretanto, outros tantos foram os que olharam torto para a decisão. Acabávamos de ver a realização de Jogos Pan-Americanos, que custaram dez vezes mais que o previsto inicialmente. Imagine na Copa.
De 2007 para cá muita coisa mudou. Denúncias sobre a classe dirigente do futebol brasileiro passaram a aparecer com cada vez mais força, cumulando com a saída, e não retirada, de Ricardo Terra Teixeira da presidência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no início de 2012, após 23 anos no cargo. As denúncias sobre corrupção neste esporte não pararam com Teixeira e seguem em nível mundial.
Quanto às obras para a Copa do Mundo, alguns dos principais meios de comunicação brasileiros acompanharam com frequência a escolha das cidades-sede, questionando que locais como Brasília, Cuiabá e Manaus tenham estádios com grande capacidade de público quando não tem times fortes para enchê-los posteriormente; o final da promessa de campanha de que não seriam gastos recursos públicos nas obras, que de nada virou quase fonte exclusiva; o aumento dos recursos a serem dispendidos na construção ou reforma dos estádios, quando comparados aos valores inicialmente revelados; o problema nas obras de infraestrutura prometidas, algumas das quais canceladas ou adiadas para começarem depois da Copa; e a pressão da Fifa para alterar leis, como a que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nos estádios ou a que garante a meia-entrada para idosos e estudantes em espaços culturais e desportivos.
“A gente precisa de coisas boas”
Neste tempo, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke ficou famoso no país por falar que o Brasil precisaria de um “chute no traseiro” para que as coisas andassem do jeito que a entidade privada desejava. Era época da votação do Projeto de Lei denominado “Lei Geral da Copa”, com claros benefícios à Fifa e a seus parceiros comerciais, independentemente do que determinavam os estados e a União em suas legislações.
Na última semana, passamos da barreira dos 500 dias para a realização do evento. O ex-jogador Ronaldo, membro do Comitê Organizador Local e que vem se mostrando um grande empresário do marketing esportivo, reclamou do pessimismo da mídia. Segundo ele, estaria “na hora de a imprensa entrar no entusiasmo do povo”, já que os estádios estão ficando prontos e “porque somos todos brasileiros e todos nós queremos que a Copa do Mundo seja realmente um grande sucesso, ninguém quer um fracasso”.
Na mesma semana, a Folha de S.Paulo publicara que o secretário-geral da Fifa, grande crítico da organização brasileira do evento, teria prestado consultoria à candidatura (única) do país para a realização do Mundial. Ronaldo disse que “especulação” é algo grave e que deveria se ter maior cuidado com esse tipo de notícia, já que “a gente vive corrupção, tragédias, e precisa de coisas boas, e a Copa do Mundo é isso, pois vai trazer muitos benefícios aos brasileiros”.
Histórico recente de prejuízos
Essa posição de Ronaldo me fez lembrar de duas coisas. A primeira é que em meio às denúncias contra o ex-presidente da CBF publicadas na ESPN, no Estado de S.Paulo, na Folha de S.Paulo e (depois de algum tempo) na Rede Record, os defensores de Teixeira usavam como argumento de que não havia nada provado contra ele. Pouco depois, o mundo inteiro passou a conhecer ao menos um dos casos, investigado e punido pela Justiça suíça, em que ele e João Havelange, ex-presidente da CBF e da Fifa, teriam recebido propina de uma empresa de marketing na década de 1990 – decisão que há alguns meses a Fifa promete liberar para a imprensa após divergências políticas entre Joseph Blatter e Ricardo Teixeira.
A segunda coisa é Ronaldo pedir para a imprensa fazer ou deixar de fazer algo. Lembrei-me da preparação para a Copa do Mundo de 2006, quando o então presidente Lula perguntou a ele se realmente estava gordo e ele questionou Lula se realmente ele bebia, como diziam. O recado era que cada um trabalhasse no seu e não se metesse no que o outro faz. Parece que ele se esqueceu disso.
Por mais que os meios de comunicação, especialmente os que conformam grandes conglomerados empresariais, pareçam olvidar que jornalismo não deveria ser para agradar a todo mundo, e sim trazer à tona os fatos que fogem à normalidade, nunca se pode dizer que um jornal, revista ou TV diminua a preocupação com um evento que envolve muitos gastos públicos e com um histórico recente (África do Sul) de prejuízos à população de um país em desenvolvimento.
Famílias retiradas
No sábado (2/2), a Folha de S.Paulo perguntou a ele e a Romário, ex-jogador e o deputado federal que mais denuncia os problemas da realização dos megaeventos esportivos no país: “O Brasil aproveitará o potencial da Copa do Mundo?” Ronaldo foi só elogios ao evento, responsável por uma inédita “discussão nacional para reformar aeroportos, melhorar a infraestrutura hoteleira, acelerar obras de mobilidade urbana e construir ou renovar 12 estádios com padrão de qualidade internacional”. Além de gerar milhares de empregos, capacitação profissional e aceleração de obras públicas e melhorias em espaços de prática esportiva.
Ele voltou a destacar a mídia no processo, pois ao menos uma parte preferiria diminuir tal legado. Segundo Ronaldo: “Dizem que os estádios recebem dinheiro público. Verdade. Até porque a maioria deles pertence aos estados. Mas isso é parte de um investimento que já traz frutos. Sem estádios não há Copa.”
Só esquece que a maioria dos estádios municipais ou estaduais ficará sob administração de empresas privadas, casos do Mineirão e do Maracanã. Além disso, esquece ele, e alguns grandes jornais do país, que para que os espaços fossem adequados aos padrões da Fifa (de um torneio a durar um mês) várias famílias foram retiradas de suas moradias. O caso mais comentado é o do Museu do Índio, nas proximidades do Maracanã, no Rio de Janeiro, mas há tantos outros que são comentados em espaços comunicacionais de menor difusão.
Fiscalização e denúncia
Romário respondeu negativamente à questão, a partir da consideração de que a construção das arenas e os jogos televisionados da Copa representariam apenas 10% do que a realização de um evento como este pode gerar: “estimular a economia, alavancar o turismo, melhorar a formação das pessoas, expandir e aperfeiçoar a infraestrutura, elevando-a a um novo patamar de acessibilidade”.
Para o deputado federal, o Brasil não aproveitou a oportunidade e as desistências em realizar obras de infraestrutura, caso do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) em Brasília, e o aumento de R$ 3,5 bilhões dos recursos a serem gastos públicos justificariam o pessimismo dos brasileiros quanto ao evento. Além disso, haveria o desrespeito de leis nacionais em prol da Fifa, caso da exigência de ao menos 4% de lugares nos estádios destinados a pessoas com deficiência, que estariam limitadas a 1% dos projetos que contêm este quesito.
Ronaldo termina o seu texto dizendo que a Copa das Confederações deixará uma boa sensação no brasileiro e repete a fórmula da empresa de bebidas que o utiliza como garoto-propaganda – curioso como uma prática esportiva gera a utilização da imagem de seus grandes atletas para vender bebida alcoólica –, ao dizer que se já é bom agora, “imagina na Copa” – que virou “imagina a festa” para a marca.
Fechar os olhos e acreditar que quaisquer males em benefício de um evento privado, ainda que com enorme importância para o povo brasileiro, devam ser aceitos para dar coisas boas a uma sociedade sofrida, com casos frequentes de corrupção e demais problemas socioeconômicos recorrentes no país, parece exagero. Mais ainda o é querer que a imprensa deixe de fazer o seu trabalho de fiscalização e denúncia de fatos errados, desvios de conduta ou crimes em torno de um esporte que dá tantas alegrias às pessoas no Brasil, principalmente quando a maior parte dos recursos vêm destas pessoas, que têm o direito de exigir melhorias reais para além dos trinta dias de festa esportiva.
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[Anderson David Gomes dos Santos é jornalista e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos]