Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Imagens da obesidade na mídia

“Nada melhor do que se sentir magra” (ver aqui).. Eis o lema de vida da modelo inglesa Kate Moss (1974-). Esta declaração, feita em novembro de 2009 à publicação de moda britânica WWD (ver aqui) despertou a fúria de organizações sociais que lutam contra a anorexia. Antes, em 2003, a cantora Preta Gil (1974-) lançou seu primeiro CD, Prêt-à Porter, e imediatamente tornou-se um dos assuntos mais comentados nas mídias – não por suas canções, mas por figurar nua nas fotografias de seu disco.

Muitas montagens com imagens nuas de Preta Gil foram realizadas à época. Em tom jocoso o corpo da cantora sofria um zoomorfismo e o animal preferido de tal transformação era a baleia. Em entrevista concedida à revista Trip, Preta Gil desabafa: “estou muito confortável com meu corpo. Já aceito suas imperfeições. Não quero mais ficar na paranoia de emagrecer” (ver aqui). Pois bem, Preta Gil acha seu corpo confortável, mas muitas pessoas, como Kate Moss, parecem não partilhar dessa ideia. Ainda na internet, as personagens das blogueiras Cleycianne e Katylene são verdadeiras vigilantes do peso e não perdoam uns quilinhos a mais. Celebridades nacionais e internacionais, especialmente as mulheres, são alvos de seus comentários ácidos. A primeira, inclusive, considera a obesidade um encosto causado por Satanás.

Na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, um grupo de estudantes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) decidiu realizar uma outra modalidade de competição durante seus jogos universitários (InterUnesp) de 2010: o rodeio das gordas. As regras do jogo consistiam na aproximação dos estudantes homens em torno de mulheres gordas ou obesas, iniciando com uma conversa e culminando em uma montaria não consentida nas moças, tal quais peões em bois. O “peão” vencedor era aquele que conseguisse galopar por mais tempo sobre a gorda. O grito de incentivo dos demais colegas era: “Pula, gorda bandida” (detalhes aqui).

A segmentação da moda

Um ano após o “rodeio das gordas”, o governo do estado de São Paulo reprova nos exames médicos admissionais cinco candidatas ao cargo de professoras da rede pública estadual de ensino. Mesmo com nenhuma alteração em seus exames, as profissionais de educação foram impossibilitadas de assumirem seus cargos por serem obesas (ver aqui). Alguns meses depois, durante um quadro sobre obesidade no programa de humor CQC exibido em 18/04/2011 na Rede Bandeirantes de Televisão (ver aqui), o apresentador da rede Record Brito Junior emitiu sua opinião sobre o tema. Para ele, obesidade e gordura eram questões ligadas à falta de inteligência. Todavia, corpos volumosos e rechonchudos ganham espaço nas múltiplas mídias e no universo da moda. Um exemplo é a cantora britânica Adele (1988-), que ao contrário de sua conterrânea Kate Moss, afirma que seu lema e objetivo de vida é nunca ser magra. Adele reforça que:

“Eu amo comer e não tenho tempo para fazer exercícios. Não quero estar na capa da Playboy ou da Vogue. Prefiro estar na capa da Rolling Stone ou da GQ. Eu prefiro pesar uma tonelada e fazer um álbum maravilhoso a parecer com a Nicole Ritchie e fazer um álbum de merda” (ver aqui).

A estadunidense Beth Ditto, vocalista da banda The Gossip, é outro exemplo de resistência à estética da magreza e ao pavor da gordura na sociedade. Beth Ditto figurou nas capas de duas publicações de seu país, a primeira em 2007 para a NME e a segunda em 2009, na revista Love. Ditto fala abertamente de seu corpo gordo e de sua lesbianidade. A cantora inclui em suas performances no palco momentos em que se despe totalmente, significando seus volumes em um erotismo libertário e político. Outro exemplo de alargamento dos padrões corporais é a segmentação da moda, intitulada plus size, modelos que possuem um manequim a partir do tamanho 42. A modelo carioca Fluvia Lacerda é um exemplo deste novo padrão, veste manequim 48 e é internacionalmente conhecida como a Gisele Bündchen plus size.

Moeda de troca

Analisar a valorização dos corpos acima do peso ou os atos violentos e preconceituosos sobre as veiculações midiáticas em torno de pessoas gordas já empreenderia um abundante trabalho de pesquisa. Contudo, trago algum desses recentes casos para percebermos alguns imaginários sociais sobre a gordura e a obesidade. E como essas classificações corporais são formas de exclusão social.

No cotidiano, os anúncios publicitários e os seus anunciantes, indústrias de fármacos e cosméticos, clínicas cirúrgicas e de estética, prometem um corpo livre da gordura. Um corpo pronto para se encaixar em um mundo que delimita suas medidas para abrigar sujeitos. Um corpo que se aperte em cintas, ingira pílulas, recorra à cirurgia bariátrica. Tudo, menos um corpo que se sinta bem sendo “gordo”.

Se antes, entre os séculos 16 e 19, o grande dilema vivido eram as prisões das vestimentas, da ética puritana e a regulação das sexualidades e dos prazeres, a partir dos anos de 1960, com os movimentos de contracultura e de liberação sexual, o drama passa a repousar na exposição demasiada ao corpo. Quase tudo é corpo: o corpo tornou-se moeda de troca nas tramas sociais. As marcas do tempo, o sobrepeso, as imperfeições convertem-se em fracassos individuais.

Promessas de cura

O pesquisador francês Claude Fischler retoma algumas pesquisas realizadas a partir dos anos 1960, nos Estados Unidos e na Europa, para analisar como os sujeitos considerados gordos são percebidos. A maioria dessas pesquisas indicava apreciações negativas sobre as pessoas gordas: trapaceiras, glutonas, feias, más. O que levou o autor a se perguntar se gostamos ou odiamos os gordos. A questão está além desses dois polos, e, para o autor, a obesidade é um terreno ambíguo e suspeito. O corpo, assim, seria um emissor de significados sociais extremamente profundos, onde “a corpulência traduz aos olhos de todos a parte da comida que nós nos atribuímos, isto é, simbolicamente, a parte que tomamos para nós, legitimamente ou não, da distribuição da riqueza social” (FISCHLER, 2005, p.70-71).

Ao analisar centenas de reportagens veiculadas pelo jornal diário Folha de S.Paulo, a pesquisadora Simone Figueiredo sustenta em sua tese de doutoramento que a obesidade é medicalizada a partir do engendramento de discursos autorizados, como o do Estado, das indústrias farmacêuticas em congruência com o saber médico especializado. A pesquisadora enfatiza que os agenciamentos midiáticos são fundamentais para a construção de um quadro de epidemia relacionado à obesidade. Mais ainda, grande parte das fontes buscadas pelos jornalistas é constituída por profissionais da saúde, que alertam para os riscos da doença, os gastos dos sistemas de saúde e as estratégias de combate da epidemia. A medicalização da obesidade, veiculada pelo jornal, é entendida como necessária, perfazendo uma questão de saúde pública.

O processo de medicalização, ratificado pela medicina, inclui promessas de cura que vão desde uma reeducação alimentar, dietas e atividades físicas, culminando em intervenções invasivas, como plásticas e as cirurgias bariátricas. E, também, tecnologias e dispositivos para diagnosticar o obeso.

Fruta pão

No terreno fronteiriço entre os obesos benignos e malignos, Fischler (2005) afirma que o definidor dessa dicotomia está na transação simbólica, onde o obeso é capaz de restituir à coletividade o que ele é acusado de usurpar indevidamente. O terreno sexual é uma possibilidade de troca simbólica, além do poderio econômico. Aos homens, a gordura também pode ser aplicada em atividades físicas que exigem força física bruta, como no carregamento de mercadorias, na manipulação de máquinas pesadas, na construção civil. Ou ainda, de maneira que sua força seja destinada a competições esportivas, como lançamento de peso, boxe, sumô. Se a força não é suficiente, ou se faz ausente, o espetáculo é outro viés de restituição possível.

Para as mulheres gordas ou obesas, restituir à coletividade o que supostamente apossou e conseguir o status de obesa benigna é um tanto mais espinhoso, quando não impossível. No dia 09 de setembro de 2011, o programa Casos de Família, do SBT, apresentou um tema sobre as mulheres frutas. O que chamou a atenção da plateia, dos demais convidados e da apresentadora do programa foi a pernambucana “mulher fruta pão”. Em um vestido azul curto, com fendas que permitiam vislumbrar seus seios, barriga e coxas, ao som de um funk, a mulher em questão entrou no palco e dançou cerca de três minutos. O assombro gerado nos presentes foi pela dita fruta ser obesa. O frenesi coletivo foi instaurado, ao ponto da apresentadora entupir sua boca com um pão após se no chão em um ato de desespero e incredulidade na cena presenciada. A psicóloga responsável por analisar os casos apresentados diferia um olhar de perplexidade. Ao se sentar, a mulher fruta pão ouviu da pessoa ao lado que aquela cadeira não era feita para alguém daquele tamanho e que ela deveria se cuidar.

Ao longo do programa, a apresentadora proferiu uma série de perguntas relacionadas à sexualidade da mulher fruta pão. A mesma afirmou ser casada e que seu marido a fazia de travesseiro. O corpo da mulher fruta pão foi milimetricamente exibido pelas câmeras do programa, enfatizando o espetáculo, a possível anormalidade do corpo e a jocosidade circunscritas naquele ser.

Provocações da plateia

Podemos endossar a hipótese de que o corpo feminino obeso encontra maiores dificuldades na transação simbólica responsável por torná-lo benigno. Tanto que, a chamada do programa era a seguinte “se ela é mulher fruta… tá estragada”. Ou seja, mesmo ofertando seu corpo para a exibição pública, mesmo carnavalizando suas formas e alegorizando sua existência, a mulher fruta pão é uma obesa maligna. O espetáculo em seu corpo não foi suficiente para amortizar o seu excesso de gordura. Um corpo “estragado”.

Envolta de constantes críticas e vigilâncias, a mulher fruta pão ousa profanar o improfanável. Ela põe abaixo mitos sobre as pessoas gordas: ela é ágil em sua dança, afirma ter uma vida sexual em atividade e satisfatória e não se diz infeliz ou culpada por estar acima do peso. Ela exibe o que deveria estar escondido: suas dobras, seus volumes, suas carnes. Ela é indiferente às provocações da plateia. Afirma aos presentes que sempre foi gorda, não tem vergonha do que é e espera que outras pessoas que sejam gordas também não se envergonhem de assim serem.

Referências

FIGUEIREDO, Simone. Medicalização da obesidade: a epidemia em notícia. Campinas 2009. Doutorado – Unicamp.

FISCHLER, Claude. “Obeso benigno, obeso maligno”. In: SANT’ANNA, D.B. (org.). Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995, p. 69-80.

***

[Vinicios Kabral Ribeiro é professor universitário, Rio de Janeiro, RJ]