Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (7/2/2013), o jornalista e professor Eugênio Bucci abdica do pensamento crítico em favor de um informe publicitário travestido de artigo de opinião sobre o Conar – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária e as restrições que o conselho impôs à publicidade destinada ao público infantil (ver “A publicidade afasta-se das crianças. Que ótimo“).
Bucci utiliza quase meia página do jornal e não explica o contexto das medidas tomadas pelo Conar, o porquê de serem tomadas só agora, não informa como é a situação da publicidade e, mais especificamente, da publicidade infantil em outras regiões do globo. Pior: confunde ainda mais o leitor. No início do texto diz que a publicidade “vai ficar mais longe” das crianças. Mais longe dá a impressão, primeiro, de que publicidade já guarda uma certa distância do público infantil; ao mesmo tempo, deixa subentendido que não vai ficar tão longe assim. Pouco depois ele comenta que o Conar está restringindo apenas o merchandising e “o emprego de ‘crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo’”: o anúncio de superioridades ontológicas por meio do consumo de porcarias segue autorizado – e Bucci não vê nisso uma violência, talvez porque possa dar a seu pimpolho tudo o que ele quer. Violência é quando a periferia se levanta para saquear esses bens que prometem abrir as portas da bem-aventurança, como em Londres, em 2011.
O autor, ademais, comemora a preocupação do Conar em ampliar a proteção a “públicos vulneráveis”. Calma, lá! Se não houvesse “público vulnerável”, não haveria publicidade: ninguém anuncia um produto se não for a um público vulnerável de sentir necessidade de comprá-lo. Querer restringir público vulnerável ao público infantil é agir de má-fé para esconder o permanente engodo sobre o qual a publicidade se assenta – objetos supérfluos transformados em necessidades vitais. E mesmo admitindo que o público vulnerável seja só o infantil, ainda assim é de se questionar se é moralmente legítimo a publicidade a ele destinada, desde que “servida com moderação”: é vulnerável, mas um pouco pode?
Não existe democracia sem contestação
Se não entrasse nesse detalhe, Bucci deveria, como professor acadêmico, contextualizar a situação da publicidade infantil, no Brasil e no mundo. Por que só agora, na década de 10 do século 21, o Conar resolve tomar esse tipo de atitude? Na Suécia toda e qualquer publicidade televisiva destinada ao público infantil é proibida há mais de uma década. Outros países também adotam restrições. Por que só agora no Brasil?
Pois subsídios para desconfiar que a prática da publicidade não é saudável às pessoas, isso há autores vários que já levantam, por diversos ângulos, há muito tempo. Teria sido mesmo “amadurecimento natural da mentalidade dos próprios agentes do mercado”, que viram como eram malvados induzindo crianças a gastarem dinheiro dos pais (ou a desejarem e não poderem consumir) em comidas que engordam, brinquedos sem graça e demais tranqueiras? Ou não haveria, quem sabe, movimentação da sociedade civil e de muitos parlamentares no sentido de instituir regras – através de leis – como as da Suécia? Se Bucci tivesse sido um pouco mais honesto, deixaria a seus leitores a possibilidade de notarem que o “amadurecimento natural” é, na verdade, o velho dar os anéis para não perder os dedos: para evitar leis que nos prejudiquem, restringimos a publicidade infantil nos seus aspectos secundários e garantimos a permanência do grosso – o que, no fundo, não muda nada.
De louvável no texto do professor da ECA-USP e da ESPM, apenas o fato de ele reforçar que liberdade de anunciar produtos não é a mesma coisa que liberdade de expressão de pensamento. Esse trecho, porém, vem logo a seguir à tese mais temerária de seu artigo, quando louva o fato de tais restrições serem autoimpostas, ao invés de terem vindo “por meio de uma medida autoritária”, e justifica que as medidas do Conar “nunca são contestadas”. Ora, se “nunca são contestadas”, os vetos do Conar ou são de um autoritarismo extremo, ou não perturbam de fato seus subordinados: Bucci pode até não gostar de discordâncias, mas deveria saber que não existe democracia verdadeira sem contestação.
Passividade e respeito
E o que seria uma “medida autoritária” para ele? O mercado, convenhamos, é extremamente autoritário: posso ter uma empresa amiga das crianças, dos idosos, das pessoas com deficiências, da natureza, dos funcionários, pagando bons salários, dos consumidores, vendendo bons produtos, mas se meu produto tem uma qualidade cinco vezes melhor do que um similar chinês, mas este custa um terço do preço, minha empresa será aniquilada sem dó nem consideração. Claro, um texto que louva o mercado não vai achar isso autoritário, e sim, natural. Autoritários devem ser, portanto, o governo e os parlamentares eleitos democraticamente por sufrágio universal.
O texto do professor Bucci chega a ser constrangedor na sua precariedade e revoltante na sua obscuridade. Um veículo da grande imprensa ceder um espaço opinativo para um texto com a criticidade de informe publicitário deveria causar indignação. Contudo, para o nível da nossa mídia, que antes doutrina do que informa, e em geral não consegue ir além da profundidade de uma poça d’água, mais saudável parece ser ignorar o texto lido e passar para o próximo, ver se dali há algo proveitoso.
Infelizmente há um amplo “público vulnerável” entre os leitores de jornal (e blogs e espectadores de noticiários etc.) que não é formado por crianças, pelo contrário, mas que foi muito bem educado pelo nosso sistema de ensino, que ensina a passividade e o respeito à hierarquia. A esse público, cabe a máxima de Homer Simpson: se está escrito, então é verdade.
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[Daniel Gorte-Dalmoro é estudante, São Paulo, SP]