Detesto parecer o narrador do fim dos tempos e da bestialização da espécie humana. Os fatos mais recentes, entretanto, principalmente os que ocupam o noticiário dos grandes jornais da televisão aberta e que estão na boca do povão, não me deixam outra alternativa. Por outro lado, gosto de estourar a eternidade de ditados herdados pelo homem de hoje e os últimos acontecimentos desse mesmo noticiário são uma belíssima fonte ao meu insano desejo de depredação de ideias preestabelecidas, ideias presentes nos ouvidos e bocas viciadas do povinho.
O mundo sempre será o melhor lugar para os jornalistas. Também é o melhor lugar para os escritores. Quando um desses profissionais mostra que sabe observar os acontecimentos ao seu redor com a perspicácia necessária e ideal para narrá-los é que lemos as grandes histórias, as histórias épicas. Assim, os jornais podem ser a sentinela da memória, como defende o professor Alberto Dines. Assim, a literatura também pode sê-lo. Essas narrativas, porém, são épicas, raras.
Eu falava do extermínio das questões preestabelecidas nesses acontecimentos últimos. Há tantos exemplos. Vou trazer dois: ocorreu no Rio de Janeiro, o julgamento de Gil Rugai, um ex-seminarista suspeito de matar o pai e a madrasta em 2004. Filhos matando pais e vice-versa não são novidade nesse país de uma bandeira que exibe ousados escritos: ordem e progresso. Lembro de Suzane von Richthofen e Alexandre Nardoni que desfilaram anos atrás na mídia incriminados pela justiça como assistiu a estarrecida opinião pública. A mesma que fica com os ouvidos e bocas viciadas.
Caráter prejudicado
A novidade é um ex-seminarista na mira da justiça. Talvez aí esteja a notícia respeitando um dos critérios de noticiabilidade: o inusitado. Até ontem, os religiosos figuravam em outros crimes – pedofilia, por exemplo. Também pode ser citado um ou outro enriquecimento ilícito, como no caso do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal. Mas, agora, ex-seminaristas podem ser assassinos frívolos. Não sei se Gil Rugai é um assassino, ainda que a justiça diga que comprovou suas suspeitas. Para mim, o terrível levantamento delas é incrível, no mínimo curioso.
Ninguém é “inofensivo” até que se prove o contrário. Na infância, saudosos tempos dessa vida, eu olhava com certo pavor para os deficientes físicos. Aliás, tinha medo de uma pessoa independente da deficiência que ela apresentasse. Os olhos esbranquiçados dos cegos, os membros deformados e tortos das pessoas com poliomielite, os estranhos rostos das crianças com Down, e elas sempre sorrindo. Não estou falando de feiura nem de preconceito, mas de medo. Talvez aquele medo de criança tivesse alguma relação com preconceito. O que importa é que nunca a imperfeição física dos humanos me ofereceu o menor risco. Humanos perfeitos, porém, assaltaram-me tempos atrás. Com foco agora no jovem que sou, apelarei para a obviedade: a personalidade é o resumo das experiências porque passamos, ou que foram exibidas para os nossos olhos em dias nem tão tranquilos em algum lugar do mundo.
Meu segundo exemplo ocorreu no continente africano. Na África do Sul, um atleta exibia no currículo uma trajetória de superação que para sempre seria lembrada e recebeu linhas de acréscimo manchadas de sangue. Quatro balas na modelo e namorada Reeva Steenkamp e não adiantou alegar que os disparos ocorreram por engano. O homicídio cometido por Oscar Pistorius foi comprovado rapidamente e ele também foi condenado. Matou mesmo? Não sei, pois não vi e confiar nessas sangrentas manchetes é um perigo. Nem quero comparar a agilidade dessa ou daquela justiça. Mas impressiona que esse seja o desfecho de uma carreira exemplar até para quem tem duas, uma, ou nenhuma perna. Não posso cometer o erro de generalizar e dizer que todos os deficientes têm o caráter prejudicado. Mas percebi que esses humanos podem ser igualmente perigosos àqueles cujo corpo apresenta perfeita simetria.
Sem solução
Há um quê de razão para os defensores do fim dos tempos nas pautas da televisão. É como se tudo estivesse beirando ao apocalipse. Os jornais, entretanto, provavelmente para não perderem seus patrocinadores, mantêm o discurso de que sua função é civilizadora e que por isso forçam a mão na cobertura das tragédias, acompanhando-as desde o instante seguinte em que acontecem até quando são crucificados os homens que servirão de exemplo. Então fica a mensagem: o crime não compensa.
Diante dessas dolorosas certezas, penso que não seja nada alentadora a insistência do mundo em existir. No final de 2012, o homem tentou imputar aos maias uma previsão de que as águas acabariam com todas as nossas infames vidas. Bulhufas, permanecemos vivos. É verdade que alguns se foram por outros motivos, como os universitários de Santa Maria, a modelo Reeva Steenkamp. Mas, o fim do mundo não levou ninguém afogado.
E a morte, que é a desistência do acúmulo de desilusão dos velhos, é a solução mais tranquilizante para quem percebeu que não adianta querer mudar o mundo. Também esse é um desafio muito grande para um ser humano. Por isso, aliás, quero crer que tão somente por isso, é que existem zilhões de jornais feitos por homens eticamente fervilhantes. Unidos eles dão vigor a essa possibilidade.
É também por isso que vou insistir em contemporizar como eles por mais que os acontecimentos atuais me induzam ao pensamento de que o mundo é incorrigível e que o ser humano não tem solução. Tenho também alguma vontade de desistir, mas alguém atento aos direitos autorais diria que estou imitando Bento 16. E aí, minha existência jamais teria sentido nem para minha mãe. É… uma possível manchete.
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[Nícolas David é estudante de Jornalismo, Florianópolis, SC]