O assassinato do jovem Kevin Espada por torcedor(es) corintiano(s) em Oruro, Bolívia, durante um jogo da Taça Libertadores, acabou com a punição leve do clube imposta pela Conmebol, mas com imensa revolta por parte de torcedores do clube e da imprensa, em especial da Rede Globo. Qualquer um que acompanhe o futebol brasileiro sabe que a relação entre Globo e Corinthians beira o carnal. Todos os jogos do clube são mostrados no canal e há espaço de sobra para a cobertura do que acontece no time, mais espaço que para qualquer outro clube.
Além da revolta que isso pode causar em torcedores rivais, o próprio jornalismo sofre, pois a cobertura acaba sendo enviesada e privilegia apenas um dos lados. No caso do assassinato de um jovem boliviano, a situação – o favorecimento – ficou ainda pior, mais escancarada. Um protesto de 200 corintianos foi destaque nos noticiários globais quando protestos maiores e mais relevantes socialmente são ignorados, assim como o discurso global se assemelhava mais a um incentivo, como se o protesto fosse legítimo, do que a uma correta reprimenda pela inutilidade de se protestar frente ao consulado boliviano em São Paulo pela libertação de torcedores envolvidos no assassinato – ou assim prega a justiça boliviana.
Munidos sempre de cartazes desejando “força” à família de Espada ou lamentando sua morte, torcedores escondem que seus interesses são apenas os de garantir a “normalidade”, ou seja, que o Corinthians não seja prejudicado pela ação criminosa de seus torcedores. A Globo, por sua vez, apoia manifestações e a suposta “normalidade” pregada por torcedores ligados a uma torcida organizada conhecia por sua violência e pelo perigo que representa à sociedade, a Gaviões da Fiel.
O futebol violento
Não que a proibição de torcidas organizadas ou sua extinção forçada façam muita diferença, pois o baderneiro e o criminoso continuarão a sê-lo e a se organizar independentemente de personalidade jurídica. O debate não é este, mas não cabe também à Globo aderir ao coitadismo de grupos que roçam na criminalidade apenas para garantir retornos financeiros junto a patrocinadores. Se no Brasil o jornalismo esportivo das grandes redes de TV carece de “jornalismo”, o caso em tela denuncia que o jornalismo abandonou os corredores da área esportiva da Rede Globo – dentre outras.
O discurso dominante nas transmissões globais é o de obviamente lamentar o fato, dar um puxão de orelhas na Gaviões da Fiel, mas, no fim, colocá-los como mártires. Foi tudo um infeliz acidente, não podemos culpar ou punir a torcida, os torcedores e muito menos o clube. Banaliza-se a violência ao repudiá-la idealmente, mas negar a punição ou negar que se achem os culpados e que estes sejam culpados.
Este discurso de martirização daqueles que são direta ou indiretamente culpados serve apenas para ampliar a sensação e a certeza de impunidade. O futebol no Brasil é extremamente violento. Pode não ter a “organização” dos hooligans ingleses, que aterrorizavam o país e mesmo a Europa durante os anos 1970 a 90, mas é um fenômeno perigoso e constante.
Perguntas que não são feitas
Dizer que o problema está nas torcidas organizadas é um simplismo e um reducionismo absurdo, pois o problema está na própria organização do nosso futebol, de nossa sociedade, nas imensas disparidades sociais e no futebol como válvula de escape e catarse popular e social.
Por fim, está também na TV, que infla rivalidades sem o menor cuidado e que, na hora de fazer efetivo jornalismo, derrapa como focas frente à sua primeira pauta. Louvam torcidas nas arquibancadas, mostram seus cantos e imagens, mas quando a violência surge, correm para culpar estas mesmas torcidas de todas as mazelas. Não há meio termo. Há escolhas editoriais motivadas e movidas por interesses financeiros.
Diversas questões importantes ficam pelo caminho, como a própria estrutura disponível em cidades pequenas e remotas em meio a um campeonato continental, a segurança das torcidas dentro do estádio, as regras para torcidas visitantes assim como seus direitos. E, ainda, punições não apenas ao clube responsável pelos torcedores ou torcedor que cometeu o crime, mas também da polícia local, do time da casa e da própria entidade responsável pelo “espetáculo”.
Se por um lado a punição ao Corinthians é branda – mas necessária, e poderia ser maior – por outro este não deve ser o único punido ou “educado” dentro de regras mínimas para que realmente haja um espetáculo. O que não combina, porém, é que o jornalismo seja posto de lado e nenhuma destas perguntas seja feita publicamente, que nenhuma autoridade seja pressionada a responder questionamentos simples sobre segurança, violência e mudanças em regras.
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[Raphael Tsavkko Garcia é mestre em Comunicação]