“Olha, esta escolha não foi para te sacanear”, diz o jornalista e escritor Ruy Castro assim que chega ao Bar da Frente, um botequim minúsculo, escondido embaixo de um predinho antigo na praça da Bandeira, no Rio. Castro é avesso a restaurante metido a besta. Vê mais poesia num bolinho de feijoada do que num “leito de rúcula”.
O botequim que escolheu para este almoço tem sete mesas. A nossa fica na varandinha, sob um toldo azul. O ventilador e a brisa amenizam um pouco o calor desta quarta-feira. Castro veste uma camiseta polo amarela – suas gavetas estão abarrotadas delas. Como não dá a mínima para roupa, variar sobre o mesmo tema é a maneira que encontrou para não perder tempo pensando no assunto. Os óculos grandes e quadrados, ele usa desde os 25 anos, quando descobriu que era míope. “Antes era tudo opaco. Passei anos sem saber que o mar coruscava.”
Pede uma soda limonada, gelo e engata uma prosa sem pressa. Castro, que acabou de completar 65 anos, nasceu em Caratinga, interior de Minas, mas é um carioca da gema. Como assim? É que seus pais, Castro e Ana, moravam no Rio e tinham uma pensão no largo da Lapa. A mãe cozinhava e o pai cuidava da administração do lugar. A pensão ficava entre uma igreja e um cabaré. E foi ali que Castro acredita ter sido gerado. Mas antes que ele nascesse a família fez as malas e se mudou para Caratinga, onde o pai foi tocar uma loja de artigos dentários com um parente. O Rio ficara para trás, mas só na geografia.
Personagens da infância
Pausa no relato para espiar o cardápio. O lugar serve pratos generosos, mas, seguindo a dica do convidado, decidimos nos esbaldar com petiscos, que ele chama de “maravilhosos piriris”. Para começar o almoço, uma porção de bolinhos de feijoada.
Um dia, o pai dele e o sócio compraram um bilhete da Loteria Federal. E não é que ganharam um milhão de cruzeiros, “uma verdadeira fortuna na época”? Assim que pôs a mão no dinheiro Ruy-pai equipou a casa com uma vitrola enorme e um móvel de madeira escura para guardá-la. A agulha trabalhava o dia inteiro, tocando Lúcio Alves, Orlando Silva e a cantora de “boca rasgada… um pitéu de olhos verdes”, Carmen Miranda. O menino tinha sete anos quando a Pequena Notável morreu. Os pais choraram copiosamente, como se tivesse morrido uma pessoa da família. Com dinheiro sobrando, voar para o Rio não era problema. Pai, quero ver o Flamengo jogar! ‘Bora. Numa dessas partidas Castro viu seu time perder para o Botafogo. Mas o moleque não se avexou. Tinha visto no campo Mané Garrincha, no time adversário, fazer misérias. O ingresso tinha valido a pena.
Na casa dos Castros não havia livros. Jornal, em compensação, tinha aos montes. Ruy sentava-se no colo da mãe, que lia em voz alta não os contos dos irmãos Grimm, mas as crônicas de Nelson Rodrigues, A vida como ela é…, apinhadas de histórias de adultério. O menino nem imaginava que esses personagens de sua infância – Mané Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmen Miranda, seriam biografados por ele anos depois nem que escreveria ainda outros tantos livros, premiados e publicados em vários países. Mas uma coisa era certa: seria jornalista.
Uma sombra
Interrompe a narrativa para se servir de bolinho que acabou de chegar. “Você quer ver o macete?”, pergunta, cortando-o ao meio. “Você tem dentro dele couve, feijão, linguiça, é a feijoada completa.” Finda a demonstração, abocanha com gosto o petisco. Castro teve uma irmã, Ana Maria, que aos oito anos caiu doente. Diagnóstico? Varizes no esôfago. Depois de muita internação e duas cirurgias, a menina morreu. O pai nunca se perdoou. Achava que se não tivesse autorizado a operação a filha ainda estaria viva.
Em 1965 a família decidiu voltar a morar no Rio. Castro estava com 17 anos e pouco depois entrou na faculdade de ciências sociais, quase ao mesmo tempo em que começou a trabalhar no jornal Correio da Manhã. A universidade ficou de escanteio, tanto que, quando se formou, Castro não teve a menor paciência de voltar lá para buscar o diploma. Com o primeiro salário Castro comprou um “LP importado” e uma garrafa de uísque Johnny Walker. Começava ali, ele supõe, sua longa convivência com a bebida, que se transformaria num problema sério décadas depois.
Nessa época Castro passou a frequentar a casa de José Lino Grünewald – articulista do Correio da Manhã. Foi lá que viu Nelson Rodrigues pela primeira vez. Era Nelson pisar no apartamento para atrair todos os convidados ao seu redor, esperando que disparasse frases engraçadas e polêmicas. “Fulano” – diz, imitando a voz de Nelson –, “você vai subir pelas paredes como uma lagartixa profissional.” A travessa ainda não está vazia quando a garçonete aparece com a segunda rodada de “piriris”. Dessa vez são bolinhos de “arroz de puta”. Enquanto nos fartamos com os tais bolinhos, Castro conta que o fato de ter conhecido e entrevistado Nelson Rodrigues forneceu detalhes preciosos para o livro O Anjo Pornográfico (Companhia das Letras, 1992), sua primeira biografia. Castro nunca foi amigo de Nelson, o que ele diz acreditar que poderia ter comprometido a objetividade do trabalho. “Mas” – acrescenta enquanto tenta afastar uma mosca que ronda seu copo – “ter visto o cara em ação, observar como ele se mexe, como ele fala com as pessoas, é interessante, deixa de ser só uma sombra.”
“O quê? A Carmen morreu?”
Como a tal da mosca insiste em atazanar, Castro coloca um guardanapo sobre o copo. A infeliz desiste, voa para longe. O assunto volta. Castro lista alguns critérios que usa para escolher seus biografados. Tem que ser alguém cuja obra admire e com quem queira ficar “casado” por anos a fio. Afinal, o biógrafo deixa de ter vida própria, ele se muda para a vida do biografado. “Trabalho de maneira obsessiva, não faço e não penso em mais nada.” Outra condição é que o personagem tenha tido uma vida “inspiradora”, não basta ser excelente no que faz. Tom Jobim, ele cita como exemplo, era um músico maravilhoso, “mas não teve grandes sobressaltos, a não ser arranjar dinheiro para o aluguel do fim do mês”.
O biografado ideal, diz, “tem que ser uma pessoa que tenha passado por problemas, tenha lutado para vencer, tenha perdido muitas vezes, tenha tido uma doença grave, tenha morado em vários lugares, tenha tido filhos… Ou seja, que tenha tido uma vida com mais peripécias, digamos assim”. E, acima de tudo, tem que estar morto. “Biografado vivo não é confiável. Ele vai te trair um dia.” Vide a biografia de Woody Allen, por Eric Lax. Depois de lançada veio o escândalo dele com a filha adotiva de sua mulher, Mia Farrow. Biografado morto é condição, mas ainda quente na memória das pessoas que o conheceram. Biografar alguém que já morreu há muito tempo o obrigaria a entrevistar apenas papéis empoeirados e 70% do seu trabalho vem de entrevistas. “Nada supera esse prazer.”
Definido o personagem, começa a etapa que considera a mais difícil: descobrir o paradeiro das fontes. “São pessoas que não ficaram famosas nem ricas.” Castro conta que tem que correr para capturar as informações antes que desapareçam da cabeça dos seus informantes. Hora da sobremesa. Vamos de quê? De Pequena Notável, nome dado ao sorvete de canela com banana-ouro. E é já traçando a Pequena Notável que Castro descreve o dia em que encontrou Cecília Miranda, irmã de Carmen, numa clínica geriátrica. A mulher o recebeu muito bem, lembrou-se da pensão dos pais na Lapa – sim, os pais de Carmen tiveram uma pensão como a dos pais de Castro, e no mesmo bairro –, lembrou-se que havia um armazém de um português embaixo da sua casa. Lá pelas tantas, Castro quis saber se ela se lembrava de quando Carmen havia morrido. “O quê? A Carmen morreu? Ohh, Carmen morreu.”
Em carne viva
A descrição da cena faz todo mundo rir. O fotógrafo aproveita para clicar Castro às gargalhadas. Quando escuta o clique da máquina, saca um pente do bolso. É que, como o ventilador está bem perto, nossos cabelos parecem de personagens de desenho animado quando se assustam. Cabelo domado, guarda o pente e saca mais um caso. Quando foi escrever Ela É Carioca (Companhia das Letras, 1999), livro que fala sobre o bairro de Ipanema, Castro tinha na sua lista vários personagens importantes que queria entrevistar. Albino Pinheiro, um dos criadores da Banda de Ipanema, certamente era um deles. Mas como o sujeito esbanjava saúde, passeava pelo calçadão todo pimpão, de sunga, o escritor deixou seu nome para o fim. Deu prioridade àqueles “que estavam mais para a bola sete”. Castro apenas anunciava. “Albino, precisamos marcar aquela conversa.” “Quando você quiser”, respondia o outro, todo solícito. Morreu antes do encontro.
Um garoto de uma mesa próxima se aproxima da nossa, fazendo muito barulho e nos encarando. Imita o ronco do motor de um carro cada vez mais alto. Castro não diz nada. Apenas encara o pirralho, que sai de fininho e não volta mais. Nada contra crianças, Castro tem quatro netos e amor de sobra por eles. Depois que o menino vai embora, Castro diz que escrever é a parte mais fácil do processo. Geralmente descalço e vestindo uma sunga preta, começa a martelar com dois dedos o teclado. “Aí é só prazer.” Ou quase. O fim da história, obviamente, já é sabido, mas isso não o impede de torcer inutilmente por um destino diferente para seus personagens. “Esse é o drama do biógrafo.”
E, raspando o restinho de sorvete que ainda tem no fundo do prato, conta que a experiência de vida do biógrafo é vital para o trabalho. “Esse tipo de bagagem serve para você fazer a devida avaliação. Por exemplo, as doenças do Nelson Rodrigues, que foram todas muito graves. Talvez eu não tenha tido na época a compreensão que devia ter, porque nunca tinha ficado doente. Hoje eu sei.” E como. Em 2005, Castro teve um câncer na garganta, na base da língua, que lhe deixou uma cicatriz no pescoço. Assim como Nelson, que escreveu até durante os delírios provocados por insuficiência respiratória, Castro não esmoreceu. Quem lê Carmen: Uma Biografia (Companhia das Letras, 2005), não imagina que aquele catatau de mais de 500 páginas foi escrito enquanto o autor sentia “dores monstruosas para engolir” e tinha o pescoço em carne viva. “Falei para a Helô [a escritora Heloisa Seixas, sua companheira há 23 anos]: ‘Não vou perder tempo com essa doença, começo o tratamento e a Carmen vai fazer parte dele.’ E fez.”
Uísque e vodca
No ano passado, uma encefalite viral lhe causou uma convulsão. Na tentativa de o conterem, acabaram quebrando seu ombro esquerdo. Desde então usa uma prótese e tem dificuldade para movimentar o braço. “Querida, como você pode ver, estou todo bichado.” E acrescenta: “Você não tem o direito de colocar seus problemas na vida dos biografados, de maneira nenhuma. Mas eles servem para você entender a vida deles.”
Castro bebeu muito durante 25 anos. Chegou a pensar em escrever um livro sobre alcoolismo, mas nada de ensaio ou tese acadêmica. O escritor queria tratar do assunto por intermédio de alguém. “Não poderia ser um derrotado que bebeu, mas um vencedor que tivesse sido derrotado pelo álcool.” Mané Garrincha era o personagem que procurava. O contato do jogador com a bebida começou praticamente ao nascer, muito antes da fama. Sua família o alimentava com uma mamadeira contendo cachaça, mel e canela, o popular cachimbo dos indígenas. Na época em que lançou Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (Companhia das Letras, 1995), o escritor evitou falar sobre os próprios percalços com a bebida nas entrevistas. “Não queria que achassem que estava me colocando na história. O biógrafo tem que ser o mais invisível possível.” É como colunista da Folha de S.Paulo que se “esbalda”, escreve na primeira pessoa e se expõe à vontade. “Já o biógrafo não tem esse direito, jamais.”
“Olha, a Valéria [dona do lugar] mandou de cortesia”, diz a garçonete com uma porção de fofinhos de camarão. “E ela quer saber se vocês também aceitam uma cerveja.” “Não, obrigado”, responde Castro. “Aqui, o pessoal não bebe muito.” Depois de tantos “piriris” e já tendo comido a sobremesa, ninguém dá muita bola aos fofinhos. A essa altura, com o botequim já vazio, Castro conta como – depois de anos bebendo uma quantidade “descomunal” de uísque e vodca – percebeu que tinha perdido completamente o controle sobre o vício.
Bebendo o que faltava beber
Era 1983, primeiro dia de trabalho na Folha de S.Paulo como repórter especial. Castro chegou cedo. A redação estava deserta, só havia um colega. Começaram a conversar quando notou que suas mãos tremiam. Imagine, aquele devia ser seu 15º emprego na vida, macaco velho na profissão, de nervoso é que não era. Livrou-se do rapaz e ganhou as ruas. Havia um botequim bem embaixo do prédio. Mas ser visto com a barriga colada num balcão às 10 horas não pegaria bem. Melhor procurar algo mais distante.
Encontrou um botequim sórdido, dirigiu-se ao balcão imundo e solicitou ao sujeito que estava lá atrás. “Você tem vodca?” Acostumado a servir cachaça, o homem encarou Castro de cima a baixo antes de passear os olhos pelas prateleiras. Encontrou uma Popov, “vodca muito da vagabunda”. A garrafa, esquecida ali havia anos, estava completamente viscosa por fora. “Tem gelo?”, pediu o freguês. O homem o encarou de má vontade, meteu a mão na pia, pescou umas pedras de gelo e colocou no copo. Castro, ainda tremendo, virou o copo num gole só. “Mais uma”, pediu na sequência. Com a tremedeira sob controle, voltou ao trabalho. No almoço com os colegas tomou mais umas duas doses. No fim da tarde voltou àquele mesmo botequim e bebeu mais.
Essa rotina se repetiu por alguns anos, até que Castro foi trabalhar na revista Veja, na marginal do Tietê. Não havia botequins por perto e passar horas trancado na redação sem beber, nem pensar. Pediu demissão e foi trabalhar como freelancer, perto de suas garrafas. “Passei o ano de 87 inteiro em casa, fazendo frila e bebendo o que faltava beber.” Castro vomitava sangue, mas não queria que ninguém desconfiasse. Foi Alice Sampaio, sua mulher na época, que, ciente da gravidade da situação e alinhada com um tio que também tinha sido alcoólatra, o levou para uma clínica. Enquanto Alice o aguardava no carro, Castro virou quatro copos de vodca pura.
“Não traio meus biografados com ninguém”
Para o relato, encara os bolinhos de camarão e decide provar um. “Não fazia a menor ideia do que me esperava. Pensei que estivesse indo para um spa, me imaginava num quarto tomando água de coco de canudinho e que logo me soltariam para voltar a beber.” Que nada. Enfrentar a síndrome de abstinência não foi suave. “Meu corpo todo tremia, como se meus órgãos internos estivessem numa coqueteleira. Aos poucos, a tormenta passou e, em menos de duas semanas, me sentia ótimo. Pensei o seguinte: se para continuar assim é só não beber, vou tentar não beber nunca mais. Nunca mais bebi.”
No dia em que completou 25 anos sem beber, Castro contou em sua coluna na página 2 da Folha de S.Paulo sobre o dia da internação. De todas que fez até hoje, foi a que teve maior repercussão. Mas escrever uma autobiografia contando suas agruras com o vício, como fez o jornalista do New York Times David Carr, não está nos seus planos. “A história não terminou ainda. Estou muito envolvido como protagonista. Precisaria de um distanciamento.”
Outra biografia no forno? Não. No momento finaliza quatro livros que serão lançados ainda neste ano: um de crônicas, Morrer de Prazer, pela Foz; A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia, pela Companhia das Letras; O Álbum de Recortes de Carmen Miranda, pela Casa da Palavra; e um romance, ainda sem título, pela Alfaguara. Já é quase hora do jantar quando o almoço é encerrado, mas não a conversa. Castro nos convida para conhecer seu apartamento, uma cobertura no Leblon que divide com seus dois gatos, milhares de filmes, LPs, CDs e oito estantes abarrotadas de livros – tem algo em torno de 20 mil volumes.
Heloisa, sua mulher, mora em outro endereço. Mas há outra moça ali, pequena e muito da espaçosa, que praticamente se apossou da casa. Em imagens espalhadas por cada canto está Carmen Miranda. “Sou muito fiel aos meus biografados, não traio eles com ninguém.”
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Adriana Abujamra, do Valor Econômico