A cidade está se expandindo para um lado, mas é preciso mudar em direção contrária, de forma a beneficiar as terras de determinado grupo econômico, o que vai valorizar os empreendimentos desse segmento em 5 mil por cento. Como fazer isso? Modificando, se preciso, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, corrompendo algumas autoridades. Essa, grosso modo, é a introdução do filme As mãos sobre a cidade. Descreve uma má intenção de empresários predatórios que servirá de mote ao longo da trama. Realizado pelo cineasta Francesco Rosi em 1963, o filme está fazendo 50 anos e ainda hoje é exibido em fóruns de urbanismo e arquitetura pela sua atualidade.
Trata da cidade italiana de Nápoles, mas é um enredo comum às grandes metrópoles do mundo. É impressionante a semelhança da trama com o fenômeno que ocorre até os dias de hoje em capitais brasileiras como, por exemplo, São Paulo e Salvador. Na capital paulista, ano passado, descobriu-se que o diretor técnico do Departamento de Aprovação das Edificações (Aprov) da Secretaria Municipal de Habitação tinha acumulado um patrimônio de mais de 100 imóveis durante sua passagem pelo posto. O servidor, responsável pela liberação dos novos prédios, foi acusado em duas ações civis de improbidade administrativa por favorecimento de construtoras na concessão de alvarás.
Em Salvador, o Ministério Público obteve uma liminar na Justiça em 2011 anulando a lei aprovada pela Câmara de Vereadores que alterava o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, conhecido como PDDU da Copa. Isso porque a manobra dos vereadores foi clara: beneficiar alguns segmentos do setor imobiliário com a liberação do gabarito das construções da orla e também abrir a possibilidade de uso da transferência do direito de construir (transcons) nas áreas valorizadas da cidade. Os dois casos ainda estão tramitando, mas as boas relações do prefeito que governou Salvador entre 2005 e 2012 com integrantes do mercado imobiliário é notória. Isso não o ajudou em termos administrativos. O ex-prefeito foi o único gestor de capital que teve três contas seguidas reprovadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios (2009, 2010 e 2011). A de 2012 será apreciada esse ano.
Nomes conhecidos
O que isso tem a ver com a imprensa? Tudo. Em primeiro lugar porque, como bem constatou Gilberto Gil, “a ganância dessa gente já virou um aleijão” e o resultado é a transformação das cidades em aglomerados insalubres, tornando a vida insuportável. Isso pelo fato de a esse crescimento desenfreado dos empreendimentos imobiliários se somar o “pilar” da economia brasileira: a indústria automobilística, que despeja milhares de carros nas ruas das cidades diariamente. É o nono círculo do inferno de Dante. As ruas estão atulhadas de carros, os terrenos ocupados sem qualquer planejamento urbano. As áreas verdes, devastadas.
Como enfrentar isso no jornalismo diário? Sabemos que tanto a indústria de automóveis como o mercado imobiliário são dois segmentos fortíssimos, com verbas publicitárias generosas. E é aí que está o problema. A imprensa, dependente de recursos, tem extrema dificuldade de se colocar diante dessa situação. Em Salvador, os processos do Ministério Público contra segmentos do setor imobiliário levaram certos empresários a tentar amordaçar a imprensa. Ao menos três jornalistas sofreram ações de calúnia e difamação pelo fato de, simplesmente, assinarem matérias que reproduziam detalhes das investigações sobre crimes ambientais.
A imprensa incomoda, sobremaneira, o fictício empreiteiro Edoardo Notolla, do filme italiano. Após uma tragédia que matou duas pessoas, provocada por obra de sua construtora, os jornais caem em cima do empresário. Há uma cena antológica em que Notolla reúne seu staff para analisar a situação O que se vê é um diálogo que poderia ocorrer em algum escritório luxuoso no Brasil. O assessor do empresário lê um dos jornais em voz alta: “Em nossa cidade, vereadores e grandes empresários, comissários e especuladores imobiliários, são as mesmas pessoas. Seus nomes são conhecidos de todos. O mais importante entre eles é Edoardo Nottola.” Num determinado momento, o empreiteiro pergunta a seu advogado, em referência ao autor da matéria: “Posso processá-lo por difamação?” O advogado responde pragmaticamente: “Vamos ver.” E ele retruca, irritado: “É sempre ‘vamos ver’.”
Tudo acaba bem
Os jornais reclamam que, mesmo com os escândalos, Nottola continua construindo com a autorização da prefeitura. E, como nos casos brasileiros, aponta-se a responsabilidade justamente para o departamento municipal que libera os alvarás (a versão napolitana da Sucom – Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo, de Salvador) no qual Nottola exerce total domínio. Graças às suas relações, obtidas em generosas doações a políticos e partidos, Nottola, além de vereador, ocupa o importante cargo de assessor de planejamento municipal para servir aos seus interesses. Caso típico de raposa tomando conta do galinheiro.
As semelhanças continuam, com a tentativa de a Câmara de Vereadores napolitana de criar uma comissão de inquérito para investigar a atuação de Nottola e suas relações com as autoridades. Descobre-se que ele consegue liberar suas obras em tempo recorde e os fiscais nunca aparecem nos canteiros para ver se está tudo bem. Por fim, os conchavos que sempre ocorrem nas casas legislativas livram a cara do empreiteiro, do prefeito e os outros envolvidos. Os dutos de recursos voltam a ser abertos e tudo acaba bem para os mesmos. O que resta ao jornalista que vive diariamente essa realidade? Esperar que um dia isso acabe. Se as cidades sobreviverem até lá.
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Biaggio Talento é jornalista, Salvador, BA