Para o mal de um escritor, não precisa que lhe desejemos a falta de público ou a indiferença da crítica: basta que, em sua obra, os erros de revisão se espalhem como vírus, a tirar-lhe o sono e a levá-lo à beira da loucura. Hoje muito mais do que ontem: com os notebooks e laptops, quem escreve tende a ser o revisor de si próprio, e o texto vai direto para a impressão com deslizes que saltam aos olhos do primeiro leitor, mas não de quem os cometeu, que não os descobre justamente por ser autor do que lhe parece livre dos erros de gramática e dos enganos de sintaxe…
Escritor e editor, Monteiro Lobato sofria duplamente: “A luta contra o erro tipográfico tem algo de homérico. Durante a revisão os erros se escondem, fazem-se positivamente invisíveis. Mas, assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos, verdadeiros sacis a nos botar a língua em todas as páginas. Trata-se de um mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar”.
Dessa verdadeira “praga”, na opinião de José de Alencar, não escapou nem Machado de Assis, na primeira edição das suas Poesias Completas, publicada em 1902 pela Editora Garnier. Impresso na França, o livro estampava um introito em que escrevera o poeta: “A afeição do meu defunto amigo a tal ponto lhe cegara o juízo (…)”. Por artes do demônio, que sempre escarafuncha as provas enquanto o revisor boceja e o tipógrafo cochila, trocou-se um e por um a, com o que a afeição cagara o juízo, como se fosse pouco cegá-lo… O jeito foi raspar a letra escatológica para dar lugar ao devido e, escrito a mão, com tinta nanquim. Posteriormente, o editor Garnier reimprimiu a folha com a correção, inserta nos exemplares ainda não vendidos. De maneira que ficaram para a história três variantes das Poesias Completas de Machado: a original, raríssima, com o erro; outra, com o remendo manual, e a terceira, com a folha reimpressa. José Mindlin, o grande bibliófilo, orgulhava-se das três que enriqueciam a biblioteca a que se dedicava com a mulher, Guita, atualmente sob a administração da Universidade de São Paulo.
Revisor atento
Em 2002, a Câmara dos Deputados apresentou a mostra “A Divina Comédia de Salvador Dalí”, com cem gravuras do gênio catalão compradas pelo rico brasileiro Lover Ibaixe à mulher do artista, Gala, ao preço de 300 moedas de ouro. Na abertura da exposição, Aécio Neves, então presidente da Mesa, toma um exemplar do elegante catálogo e lê, na página de rosto, “A Diivina [assim mesmo, com dois is] Comédia de Salvador Dalí”. O vexame é tal que manda recolher todos os exemplares, entregues depois de alguns dias com uma nova folha em substituição à antiga, por exigência do parlamentar mineiro que, não fosse neto de quem é, bem poderia ganhar a vida como o revisor que vê o que os outros não enxergam…
Já ocorrera, porém, coisa pior na Casa que se diz “de todos os brasileiros”. Em 1989, lança-se o número 42 da excelente coleção “Perfis Parlamentares”, dedicado ao político catarinense Nereu Ramos, com seleção e introdução de Aspásia Camargo. O volume transcreve o verbete relativo ao homenageado que Mauro Malin escrevera para o Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, da Fundação Getulio Vargas.
Sobre a disputa de poder que sobreviera ao agosto de 1954, lê-se: “No início de setembro, uma comissão do PSD integrada pelo governador paulista Lucas Nogueira Garcez, Benedito Valadares, Edgar Batista Pereira e Nereu entrevistou-se com o presidente [Café Filho] para sugerir o adiamento das eleições com o argumento de que, realizado sob o impacto do suicídio de Vargas, o pleito poderia levar a uma votação em massa nos candidatos do PTB, gerando uma reação militar. Lacerda também defendia a adoção dessa medida, acompanhado de forma mais ou menos explícita por importantes segmentos udenistas, pelo PR e pelo presidente do Partido Libertador (PL), Raul Pilla”. Uma estranha e espantosa afirmação vem a seguir: “O fato não é verdadeiro, existe discurso de Nereu a respeito”.
Logo à frente, observa-se: “Mais um nome da família Ramos, Celso Ramos, irmão de Nereu, apareceu na constelação política do estado [Santa Catarina], como primeiro suplente de deputado federal pela UDN”. De novo, a surpresa: “Não se trata de Celso, irmão de Nereu, e sim do dep. Celso Ramos Branco, parente longe de Nereu”.
Como se percebe, os comentários do atento revisor (a própria Aspásia, certamente) foram, por incrível que pareça, incorporados ao texto! A consequência é que o livro da Câmara dos Deputados sobre Nereu Ramos é dos poucos, no mundo, que se desmentem a si mesmos. O que não deixa de fazer sentido, em se tratando da nossa política…
De cama
Inacreditável, também, foi o que me contou Napoleão Mendes de Almeida, o autor da Gramática Metódica da Língua Portuguesa, titular, por muitos anos, da coluna “Questões vernáculas”, no jornal O Estado de S.Paulo, em que respondia a perguntas dos leitores. Por ordem expressa do diretor Júlio de Mesquita Filho, não se usava no Estadão o substantivo fracasso – italianismo que, segundo o chefe, devia ser substituído por sinônimos de etimologia portuguesa, como malogro.
Certa feita, quis Napoleão explicar a um consulente por que, em vez de fracasso, devíamos dar preferência a malogro. O fiel revisor, com o original em mão, fez o que mandara Dr. Júlio: onde havia fracasso, escreveu malogro, com o que ninguém entendeu o “samba do crioulo doido” em que se transformara a coluna, assim publicada, no português castiço do famoso gramático:
“Sempre que possível, convém escoimar o texto de estrangeirismos como malogro. Dispomos, em português, do correspondente malogro, que equivale à perfeição ao italianismo a que se refere o prezado leitor. Agora perguntamos: se temos, em nosso idioma, palavras de tão legítima formação, como malogro, por que dar preferência ao exótico malogro quando podemos, em muito melhor português, substituí-lo pelo vernáculo malogro?”
Napoleão Mendes de Almeida quase morre de infarto: passou uma semana de cama, a pensar no sentimento que mais o consumia – se o desejo de estrangular o obediente revisor ou a vergonha que sentia dos leitores…