Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A repórter e o filho da rua

Toca o celular da repórter. Ligação a cobrar:

– Eu fugi. Não fica triste comigo – anuncia o guri do outro lado da linha.

Não era a primeira vez que o guri ligava para a repórter, agora usando um celular emprestado por uma vizinha, e também não era a primeira vez que fugia. Nesse dia de meados de 2012, Felipe telefonou à sua amiga Letícia – uma das poucas, pouquíssimas pessoas a se preocupar de fato com ele, a ser toda atenção na escuta de sua história, a se alegrar com as pequenas conquistas, a sofrer com os muitos tropeços em pedras sempre presentes – para avisar que abandonara a fazenda terapêutica na qual estava internado em nova tentativa de se tratar da dependência do crack. Regras demais a cumprir, pedra nenhuma a consumir, e o que deveria ser um tratamento de nove meses evaporou-se numa cerca transposta em escassos dez dias.

Três anos e meio antes, o guri – cujo nome verdadeiro, claro, não é Felipe – ainda não sabia quem era a repórter Letícia Duarte, do diário Zero Hora, de Porto Alegre, e muito menos que ela já conhecia praticamente toda a sua história. Numa tarde quente de março de 2009, ele fugia dela pela primeira vez. A repórter acompanhava a mãe de Felipe na busca pelo filho caçula, então com 11 anos, em meio aos casebres da Vila dos Papeleiros (“vila”, em porto-alegrês, designa favela), próxima ao Centro da cidade. A mãe soubera por uma vizinha que o guri estava pelas redondezas.

Felipe já ganhava as ruas desde os cinco anos de idade, mas naquela tarde Maria (o nome da mãe também foi trocado) estava decidida a resgatá-lo e levá-lo para Torres, cidade litorânea na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. O novo endereço representava também a esperança de uma nova existência. Na vila, Maria conseguiu bater o olho no guri pela primeira vez desde seu último sumiço, um ano antes – mas Felipe apressou o passo, correu em direção a uma avenida movimentada e desapareceu. Cinco dias depois, a mãe deixou Porto Alegre sem o caçula. Levava só um dos seis filhos, um neto e a gata Anjinha.

A cena da primeira busca da repórter, a última da mãe antes da mudança, está descrita com o primor das melhores reportagens na abertura do caderno Filho da rua, que Zero Hora encartou em sua edição do domingo 17 de junho de 2012. O parágrafo que encerra o texto de abertura da reportagem narra a partida da mãe e o parto que motivou o trabalho de Letícia: “(Maria) Foge da realidade no dia da mentira, 1º de abril de 2009. Desde então, a criança não tem mais uma casa para voltar. A cidade dá à luz oficialmente mais um menino de rua.”

Os furos na rede

Filho da rua, a reportagem, veio à luz num caderno de 16 páginas no formato tabloide de Zero Hora e reensinou a velha lição de que jornalismo de qualidade, feito em profundidade, sobre temas relevantes e com rigor de apuração e texto, ganha os leitores e repercute nas consciências. A história de Felipe, que Letícia acompanhou por três anos, encarna a de tantos outros meninos e meninas de rua paridos pela sociedade quase que indiferentemente – mas virou tema de cartas e e-mails de centenas de leitores; de discussão entre vizinhos e colegas de trabalho;
de reuniões das autoridades.

Os 105 encaminhamentos ao Conselho Tutelar, nove encaminhamentos da Promotoria da Infância e da Juventude, sete internações para tratamento de dependência (sem contar a mencionada na abertura deste texto, já consequência da publicação da reportagem) e a inclusão da família em cinco diferentes programas sociais não conseguiram interromper a peregrinação do guri pelas ruas.

A reportagem levou agentes da área social da prefeitura e do governo estadual a se reunir para rever políticas, reelaborar estratégias e tentar costurar melhor a rede para atender a centenas de casos semelhantes. Levantamento oficial citado pela jornalista apontou que, em 2012, 440 crianças perambulavam pelas ruas da capital de 1,4 milhão de habitantes. Mesmo com os novos encaminhamentos que recebeu, Felipe segue se equilibrando numa corda bamba, como se verá adiante. Se voltar a cair, teme Letícia, talvez não haja rede suficiente a ampará-lo.

A repercussão e a qualidade do trabalho deram a Letícia Duarte alguns dos principais prêmios do jornalismo brasileiro no ano passado, como o Esso de Reportagem e o Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. O Esso, aliás, nem foi o primeiro: em 2002, com apenas 22 anos, ela venceu na categoria Regional Sul com uma série sobre adolescentes prostituídas, publicada no jornal caxiense Pioneiro, onde já trabalhava, ainda estudante de Jornalismo na Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Deus e o sapato

A longa gestação do Filho da rua foi um projeto acalentado por uma jornalista incomodada com questões que a atropelavam no cotidiano da editoria de Geral de Zero Hora, onde Letícia começou a trabalhar em 2003. “Uma coisa que me chamou a atenção, sempre que eu tratava de meninos de rua, era que todos tinham família. Eles não são da rua: têm uma casa para voltar”, diz. “Eu queria tentar entender em que momento esses laços se rompem, por que eles não voltam para casa e por que os programas sociais não conseguem resgatá-los.”

Aprovada a pauta pela chefia de redação como um dos projetos especiais do jornal, a repórter foi aos Conselhos Tutelares para procurar uma história representativa da situação. O caso de Felipe a apaixonou, explica, porque reunia vários elementos importantes: o guri tinha família e casa para voltar; sua mãe continuava procurando por ele; estava com 11 anos, faixa etária da maioria dos meninos de rua da cidade; passara por muitos encaminhamentos e programas, retornava para casa ou para a escola por curtos períodos, mas acabava sempre caindo na rua novamente.

Com autorização do Juizado da Infância e da Juventude, Letícia percorreu as 320 páginas de documentos compilados sobre Felipe desde 1998. Procurou também a mãe para explicar seu propósito e, com a concordância de Maria, saiu com ela em busca do guri. Em março de 2009, ao acompanhá-la na incerteza da Vila dos Papeleiros, Letícia já conhecia muito da vida de Felipe. Faltava conhecê-lo.

“Deus ajuda os bons repórteres”, diz a jornalista – e os bons repórteres, claro, precisam se ajudar também gastando sola de sapato. Depois da partida da mãe para Torres, Letícia esteve várias vezes na favela em que a família morava, a Vila Bom Jesus, zona leste da cidade, perguntando por Felipe a vizinhos e conhecidos. Finalmente ela o encontrou num dia de meados de abril em que o guri apareceu na antiga casa, já ocupada por outros moradores. Deus decerto ajudou, mas a repórter estava lá.

Letícia e o fotógrafo Jefferson Botega, que a acompanhou no percurso do Filho da rua, conversaram com Felipe ao longo da tarde e foram com ele de ônibus ao Centro. Destino: a Vila dos Papeleiros. Objetivo: o crack. No trajeto, Felipe foi ficando esquivo e não queria mais falar. Estava sem dinheiro para comprar as pedras. Já na favela, observou nas mãos do fotógrafo um isqueiro Zippo. “Pede para ver e sai correndo levando o objeto. Desaparece outra vez pelas esquinas, na escuridão das 20h. Já tem uma moeda de troca para as drogas”, descreve a reportagem.

De pernas para o ar

Filho da rua terminaria no parto oficial de uma criança sem casa para voltar, sem qualquer vínculo familiar na cidade e preso ao crack, que Felipe começou a usar provavelmente por volta dos oito anos de idade.

A proposta inicial era contar essa história numa reportagem de cinco páginas, mas o então diretor de redação do jornal, Ricardo Stefanelli, sugeriu aprofundar a pesquisa para publicar um dossiê mais amplo.

Quando Letícia mergulhava nessa nova etapa do trabalho, outro fato colocou os planos de pernas para o ar, como faz o Menino Jesus no poema de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa: numa noite de maio, o guri chegou ao Hospital de Pronto Socorro (HPS) coberto de bolhas e foi encaminhado à Unidade de Queimados. A história que contou – do nada, teria sido atacado por dois homens que jogaram álcool em seu corpo e atearam fogo enquanto ele descansava numa estação do trem metropolitano – não pôde ser checada por falta de testemunhas.

No que Letícia chama de “uma demonstração rara de articulação eficiente na rede de assistência”, o serviço social do hospital conseguiu, via Conselhos Tutelares de Porto Alegre e de Torres, localizar a mãe. A chegada de Maria ao HPS fez Felipe saltar da cama e procurar o abraço do qual fugia há mais de um ano. Depois do tratamento, mão e filho foram para Torres.

A vida, como sempre, se revelava maior do que a pauta. “A gente não sabia mais que história era essa: do menino de rua, do menino que iria se salvar… Então resolvemos esperar”, lembra a repórter. O desafio era não perder o contato e descobrir, afinal, que história seria contada ao leitor.

Letícia não perdeu. Viajou algumas vezes a Torres – a três horas de carro de Porto Alegre – para ver como Felipe, no início, brincava na areia, se divertia como qualquer guri de sua idade faria e retomava a frequência à escola. E como, depois, lá mesmo ele foi alcançado novamente pelo crack e pela rotina de sumiços e internações já conhecida na capital.

Um dia, na cidade praiana, a incerteza e a angústia que estavam presentes desde o início do trabalho se manifestavam outra vez: a repórter descobriu, pelos vizinhos, que a família voltara a Porto Alegre. O endereço havia sido deixado “num papelzinho” – mas quem sabia onde estava o tal papelzinho? “Quase entrei em desespero”, relata. “Fui atrás de uma irmã da mãe, de outra, de um irmão, até que me disseram que uma irmã em Porto Alegre poderia saber onde ela morava.” Letícia localizou essa irmã e, com ela, percorreu as quebradas do novo endereço de Maria, a Vila do Esqueleto, assim batizada por ter se formado ao redor de uma obra inacabada. Ao fim de um dia inteiro de busca, elas a encontraram. Felipe estava sumido de novo – e lá se foi mais uma vez a repórter acompanhar a mãe nas peregrinações pelos ferros-velhos em que o guri costumava vender o que obtinha e pelos pontos de crack em que os recursos que juntava viravam fumaça.

Pacto de confiança

Somados esses desencontros e a chuva de pautas a desabar continuamente na mesa dos repórteres, Letícia passou algum tempo sem ver Felipe. Quando o reencontrou, assustou-se: ele crescera; já tinha mais cara de homem do que de guri. Nesse dia, havia usado drogas e não estava para muita conversa. “Tínhamos um pacto de confiança. Eu não o seguia escondida, não entrava nos pontos de crack e, quando ele dizia ‘não’, eu não forçava”, explica a jornalista.

As primeiras fugas do guri se deram a pretexto de procurar o pai, de quem Maria se separou quando o filho contava pouco mais de três anos.

Como que em romaria, seus irmãos perderam-se na vida, quiçá em busca de aventuras: um morreu assassinado, outro foi preso por roubo, um terceiro tem passagens pela Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), sucessora da Febem. As duas irmãs também caíram nas drogas e nas ruas. Certa vez, o segundo companheiro de Maria teve uma briga tão feia com Felipe que a mãe interveio dando-lhe uma facada no braço. O padrasto levou dez pontos.

Todas essas histórias, e muitas outras, Letícia coletou na longa gestação de três anos de trabalho. O parto do Filho da rua foi demorado, entre razões como as sobrepostas pautas do dia a dia, pela crença do então diretor de redação de que era necessário algum acontecimento que desse um fecho ao caso. No ano passado, a nova diretora, Marta Gleich, tomou contato com o material apurado por Letícia e avaliou que a história era suficientemente rica para ser contada sem precisar de um “epílogo”. Para Maria, por sua vez, a espera era mesmo de esperança – a de que a publicação trouxesse ajuda ao filho.

Quem defendeu a veiculação da reportagem num encarte de 16 páginas com projeto gráfico especial foi o editor-chefe de Zero Hora, Nilson Vargas. “Fiz todo um trabalho de convencimento interno da direção de redação e de gestão do jornal e, quanto mais a discussão atingia outros níveis da empresa, mais crescia a convicção de que a qualidade do trabalho justificava esse tratamento diferenciado”, lembra Vargas. O diário é publicado pela RBS, maior grupo de comunicação da região Sul do Brasil.

Vergonha das mãos

A analogia com a gestação e o nascimento (“adoro falar sobre essa matéria! Sinto-me como uma mãe orgulhosa falando do seu filho!”, ela escreveu no e-mail em que aceitou a solicitação de entrevista enviada por este repórter) não é utilizada só por Letícia.

“Tenho a sensação de que acompanhei o parto do Filho da rua”, diz a jornalista Rosane de Oliveira, editora executiva de Política de Zero Hora e titular da principal coluna da área na imprensa gaúcha.

Durante pouco mais de dois anos e meio, Letícia foi o “braço direito” da colunista e, mesmo incluindo endereços de gabinetes ilustres em sua rotina, jamais deixou de percorrer os caminhos incertos do menino de rua. Rosane revela que viu muitas vezes sua editora assistente chegar arrasada à redação depois dos encontros com Felipe e sua mãe: “Ela se envolveu muito com o guri”, confirma.

Para a colunista, é provável que outro repórter “mais fraco” tivesse desistido desse trabalho, tantos foram os obstáculos e as dificuldades no caminho – não Letícia. “Só tenho coisas boas a dizer dela. Admiro muito a seriedade, a competência, a obstinação em conseguir a informação e acima de tudo a sensibilidade”, testemunha. “Nós costumamos ser mais áridos nessa profissão, mas ela consegue manter a virtude da sensibilidade em tudo o que faz.” No início de março, a repórter retornou à editoria de Geral.

Letícia vê os prêmios pelo Filho da rua como coroação da crença de que há projetos de convicção pessoal que devem ser alimentados mesmo à custa de uma dedicação que supera em muito as longas horas normais do expediente. Ideias como essa ela vem defendendo em conversas com estudantes de Jornalismo – como no encontro com alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, no dia 8 de março, e em fóruns como o 1º Seminário Regional da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), no dia seguinte, também em São Paulo, onde foi uma das principais palestrantes.

“Numa redação a gente nunca vai ter as condições ideais, porque sempre temos milhões de pautas disputando o que merece atenção. Por isso vale a pena manter essa obsessão e essa dedicação de fazer as coisas em que se acredita”, diz. Mesmo entre colegas, ela ouviu muitas expressões de desdém por se dedicar a um assunto “tão batido”. “Eu me sinto feliz e orgulhosa porque essa história teve eco e repercussão. Cumpriu um papel importante, que eu acho que é desacomodar.”

Felipe ainda não pode ler sua história impressa. Suas passagens acidentadas pela escola jamais foram capazes de alfabetizá-lo. No entanto, ver na capa do caderno as unhas sujas de sua mão castigada provocou deboche de vizinhos e vergonha no guri. Tempos depois, num dos reencontros com Letícia e Botega, fez questão de mostrar as mãos e unhas limpas, e pediu que o fotógrafo as registrasse.

Um dia de festa

Sempre houve pedras no caminho, mas há também lugar para festa. Em fevereiro, Felipe completou 15 anos de idade. “Durante os três anos de apuração da reportagem Filho da rua, a frase de uma conselheira tutelar me marcou: ‘Nesse ritmo, ele pode não chegar aos 15 anos’. Pois hoje chegou o dia. Felipe completou 15 anos! Uma data simbólica, celebrada com bolo, parabéns pra você e lágrimas de emoção na Vila do Esqueleto. Felizmente, Felipe estava em casa, perto da mãe. Ele continua vulnerável, exposto a riscos e ameaças. Mas hoje foi um dia muito feliz. Está sendo”, escreveu a jornalista em sua página no Facebook no dia da festa.

Foi Letícia quem levou o bolo e os salgadinhos à Vila do Esqueleto. Durante a apuração, ela se questionou muitas vezes sobre até que ponto poderia ir sua relação com o guri. “Uma matéria como essa coloca à prova os princípios de não-envolvimento, porque a gente não faz um trabalho assim se não tiver um vínculo”, argumenta.

Quando a repórter se encontrou com Felipe pela primeira vez depois da publicação do caderno, o guri a abraçou muito e disse que ela era uma das únicas pessoas a se importar com ele. “Eu era alguém que se interessava genuinamente em ouvir a história, sem julgar, e isso para ele já tinha muito valor. Psicólogos que trabalham com crianças de rua me disseram que, como elas têm poucos vínculos e eu já estava ali o acompanhando há três anos, virei uma pessoa de referência”, conta.

Talvez mais do que ninguém, ela sabe que Felipe continua no fio da navalha. “São muito frágeis os vínculos que o protegem”, reconhece a jornalista, a cidadã, a amiga que se importa. “Parece que ele está melhor do que já esteve, mais longe das ruas e das drogas. Mas isso tudo é tão precário que a impressão que eu tenho é que tudo pode recomeçar em breve”, lamenta. O que mais a preocupa é que no final do ano passado o guri teve uma nova briga feia com o padrasto, que o jurou de morte. Letícia avisou o pessoal da Ação Rua (da Prefeitura de Porto Alegre) e do governo do Estado, e ouviu promessas de que ele receberia medidas de segurança.

No dia da festa, antes que Felipe assoprasse as velas, Letícia lhe disse para fazer um pedido. Em silêncio, ele fez. Depois, chorou abraçado à mãe.

A coisa e seu nome

A premiada jornalista que crê na fundamental dimensão social que a profissão precisa exercer já teve lá suas crises com o ofício. Numa delas, em 2006, Letícia tirou uma espécie de “ano sabático” e foi a Moçambique para trabalhar como voluntária dando aulas de português num projeto de formação de professores. Parte da razão da viagem estava na pergunta sobre se o jornalismo é mesmo o campo para exercer a vontade de ser agente de mudança, parte estava em sua “sede de mundo” e no desejo de conhecer outras culturas e sistemas de pensamento. Sapere aude, a propósito, ela tem tatuado no lado interno do pulso direito, como um lembrete literalmente sempre à mão. O mote, que Immanuel Kant teria buscado em Horácio, pode ser traduzido como “ousar saber” – ou, na versão que Kant definiu como “o lema do esclarecimento”: “tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento”.

Em Moçambique, Letícia morava num lugarejo no meio do mato, sem luz elétrica ou água gelada na luta contra o enorme calor. Para ir ao supermercado, a cidade mais próxima ficava a quatro horas de viagem. Aquele foi também um tempo para sentir saudade do jornalismo e “meio que fazer as pazes” com a profissão, como ela define. A reflexão sobre o que viu e viveu nessa experiência intensa embasa sua dissertação de mestrado em Sociologia, que defendeu no final de março na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os professores da banca a aprovaram com louvor e recomendaram a publicação do trabalho.

Na África, a jornalista envolveu-se do universo descrito pelo escritor moçambicano Mia Couto (“ele lê a alma das pessoas”, diz, num diagnóstico que talvez possa aplicar a si mesma), mas só teve a chance de vê-lo e ouvi-lo ao vivo na conferência que Mia fez no encerramento do ciclo Fronteiras do Pensamento, em novembro do ano passado, em Porto Alegre. O fantástico contador de histórias que descobriu em autores como Guimarães Rosa que português é também língua de encantamento do mundo lembrou de sua passagem por Natal, onde se hospedou num hotel que ficava de frente para uma favela.

Em nome do politicamente correto, Mia revelou ter aprendido que, em lugar de favela, “é melhor dizer ‘periferia pobre’”. “Acho estranhas essas regras. O que para mim seria correto não era exatamente a palavra: o que seria correto era não existirem favelas”, disse, para muitos aplausos da plateia. A qualquer cidadão com senso de justiça pareceria também mais correto que não existisse uma realidade que precisasse ser nomeada pela expressão “criança de rua”. Enquanto existirem, a realidade e o nome que lhe damos, será necessário não escamotear a verdade com palavrório polido; será necessário deixar de fingir que não enxergamos os Felipes à nossa frente; será necessário contar sua história; será necessário que repórteres como Letícia Duarte a contem.
Será necessário desacomodar.

>> A íntegra da reportagem “Filho da rua” e um vídeo sobre a história de Felipe estão disponíveis no site de Zero Horahttp://zerohora.clicrbs.com.br

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Paulo Hebmüller , do Jornal da USP