Não me surpreendi vendo Roberto DaMatta tecer loas ao programa Manhattan Connection no artigo “Conexões”, no Observatório da Imprensa, nº 740, de 02/04/2013, reproduzido de O Globo, 27/03/2013. Até aí nada demais, levando em consideração que ele foi distinguido, segundo conta, “como primeiro convidado do programa em fevereiro de 97, antes da morte do Francis e, logo depois, voltou a participar quando ele saiu do palco, num momento de triste retomada”. Ademais, ele faz parte do seletíssimo rol de pensadores-palestrantes do Instituto Millenium (ver aqui) que é, para quem ainda não sabe, a organização, (think tank) que reedita hoje o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que funcionou como comitê anti-Goulart, agregando os defensores mais intransigentes, para usar um eufemismo, dos interesses dos 1% mais ricos brasileiros e que combatia justamente as demandas por mais igualdade democrática e consciência ambiental citadas por Roberto DaMatta.
São, portanto, os defensores do capitalismo “ainda desenhado para consumistas ricos e celebridades amorais”, criticados no fim de seu artigo, como que a professar não ter abandonado ideias progressistas, democráticas e igualitárias contidas em seus estudos antropológicos e sociológicos. Temos aqui um flagrante da contradição entre o discurso crítico, a agenda do pensador do Brasil com seu engajamento em um instituto criado justamente para manter o modelo “desenhado para consumistas ricos e celebridades amorais”.
Minha surpresa tem mais a ver com “o pacote todo” contido no estranho sincretismo de um autor que professa um discurso alinhado em tudo ao neoliberalismo, inclusive adotando a crítica weberiana à herança patrimonialista lusitana, mas diferentemente de, por exemplo, Raymundo Faoro, que se envolveu em ações concretas a favor da democracia e da igualdade, durante a ditadura, ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns, enquanto ele se alinha aos setores mais retrógrados de nossa sociedade, aninhados no Instituto Millenium.
Muita informação sobre cultura americana
Minha crítica diz respeito apenas ao intelectual tradicional, que coroa sua atuação política pró-direita com a participação neste instituto, confundindo-se de vez com os intelectuais orgânicos criadores da referida instituição. Não tenho a pretensão de julgar o antropólogo criador de estudos sociológicos importantes sobre a moral da rua e da casa, enaltecedor do carnaval, da malandragem, do futebol. Neste particular, outros já fizeram estudos críticos demolidores, como Fabricio Maciel, mestre em política e pesquisador do Centro de estudos sobre a desigualdade (Cepedes) da Universidade Federal de Juiz de Fora, no seu ensaio Desafiando a Brasilidade, amparado nos estudos de Jesse Souza sobre brasilidade.
Sobre o programa em si, pouco se tem a dizer. Não seria demasia dizer que é apenas mais um programa para enaltecer as maravilhas da Corte, para usar um termo afim do seu mais ilustre participante, Paulo Francis, que abriu caminho de conversão para a direita, para muitos outros, passando de crítico a enaltecedor do american way of life no que tem de pior, que é a política de subordinação do nosso país aos seus interesses. Conversão que desconstrói todo um discurso que assisti dele em um canal de TV, muito tempo atrás, onde ele foi taxativo: “Nunca mais voto na direita.” Tentei achar no Google o tal programa e só encontrei o contrário (estou começando a desconfiar de minha memória. Será que ele não disse o contrário? Nunca mais voto na esquerda? O que é bem mais provável, conforme constatei nesta busca. Nesta o que mais se avolumou foi a percepção de um perfil de intelectual tradicional liberal conservador). Isto é, artigos dele alinhados politicamente com a direita e no terreno de usos e costumes, na moral, enfim, com segmentos progressistas e democráticos, bem ao estilo tucano culto e refinado.
A nota positiva que merece registro é o fato de que, nos intervalos deste mantra laudatório sobre as delícias da politica voltada ao mercado, que constitui grande parte do programa, graças, suponho, à competência e cultura jornalística de Lucas Mendes, âncora do mesmo, cabe muita informação sobre a alta cultura americana, o que o torna atrativo e interessante para qualquer um que, independente da ideologia, admita a importância inegável desta até mesmo na nossa formação ideológica e cultural, representada pelo impacto de sua literatura, de suas lutas por mais igualdade e democracia de nossos irmãos americanos, de sua música, em especial o jazz e o rock, e pelo seu cinema, enfim, de todas estas formas de manifestação que atuaram e atuam como fortes elementos, mas não únicos, formadores de nosso imaginário.
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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS