Década de 80, redação da rádio Itatiaia. O escrevinhador que vos toma o tempo dividia com o Samuelito Mares a desgastante, por causa do horário, tarefa de editar os feitos pelo mundo e compactá-los para o jornal da manhã seguinte.
Entre uma tragédia e outra, sempre era possível um dedo de prosa com o Hamilton de Castro, desde muito líder de audiência nas madrugadas mineiras. O forte do programa era a participação dos ouvintes e o Hamilton a todos descontraía com seu jeitinho de respeitar as idiossincrasias alheias. Para uns era o amigo, o parceiro, um confidente das decepções amorosas. Havia quem participasse sempre, outros ocasionalmente e até quem visse no programa um trapézio para as piruetas da vida. O vínculo entre o apresentador e os ouvintes era forte, motivo até de reportagem na revista Veja e de estudos universitários.
O Hamilton é senhor de muitos acontecidos, um deles estranho, próprio de quem viaja com desenvoltura no imaginário das ondas sonoras. Um caso atípico envolveu uma ouvinte assídua que alimentou uma intensa afinidade com o comunicador. Depois de várias participações, a admiradora acabou descobrindo o dia do aniversário do Hamilton. E prometeu mandar um presente, fato nem tão inusitado assim para quem fala a tantos pelo microfone.
No dia do aniversário, a ouvinte telefonou para confirmar que deixara o presente na portaria da rádio. Seria um bolo, algumas flores, livro? Quem sabe uma camisa?
Sem invenção
Nada tão comum. O presente era um envelope e dentro dele uma chave, a chave de um carro zero-quilômetro estacionado na porta da rádio! O Chevette, top de consumo dos anos 80, principalmente para quem nem tinha um fusquinha, brilhava como se desafiasse a incredulidade.
E depois desse regalo, sonho de consumo confessado pelo radialista, a ouvinte nunca mais se manifestou.
Há quem duvide, quem credite a história à fumaça do cachimbo démodé baforado pelo Hamilton de Castro, mas prefiro citar a explicação usada por Chico Chicó, personagem criado por Ariano Suassuna no riquíssimo Auto da Compadecida: “Eu num sei é verdade, só sei que foi assim…”
É possível uma coisa dessas? Respondo citando caso acontecido na década de 30, quando uma ricaça se apaixonou pela voz do Saint-Clair Lopes, que interpretava o misterioso Sombra, herói de muitas peripécias radiofônicas. A mulher manteve a obsessão durante anos, chegando ao clímax quando ela morreu e se verificou que no testamento constava o radialista como único herdeiro. Foi o maior barraco e a esposa do Saint-Clair Lopes, a mui digna dona Judith da Silva Lopes, duvidou que ato tão significativo tivesse sido motivado apenas pelo amor platônico de uma desconhecida.
A herança era gorda e a situação se complicou quando os descendentes consanguíneos da doadora tentaram impugnar o testamento, o que não se concretizou, pois a Justiça, convocada a se manifestar, fez prevalecer o último desejo daquela sonhadora solitária.
Ainda duvidam? Pois conto outro caso. Em São Paulo, na década de 50, Gastão do Rego Monteiro era locutor da rádio Record, onde apresentava o programa O Crime não Compensa. Ele também monopolizou os sonhos de uma ouvinte, que lhe deixou uma herança em Salvador. Ao contrário do Saint-Clair Lopes, o Gastão não hesitou um minuto: abandonou a carreira em São Paulo e foi gozar as delícias baianas.
Ah, ainda não acreditam? É muito fácil comprovar. As duas últimas peripécias estão entre as Histórias que o Rádio não Contou, livro de Reynaldo Tavares, e a primeira pode ser confirmada na origem: o Hamilton de Castro já não está na rádio Itatiaia, em que, desde 1976, apresentou o programa que fez companhia aos solitários da madrugada, mas felizmente ainda vive e pode garantir que esse seu amigo não inventou nada. Ele pode ser encontrado e ouvido na www.radiohc.com.br.
Se tudo isso é vero? Eu num sei se é verdade, só sei que foi assim…
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Hermínio Prates é jornalista e escritor