Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Da água para o vinho ou seis por meia dúzia?

Dia desses assisti, no Canal Brasil, ao programa Espelho, apresentado pelo ator Lázaro Ramos, que entrevista personalidades dos mais diversos âmbitos de ação, do pensamento e do conhecimento. Dessa vez, o encontro se deu com a psicanalista Regina Navarro Lins, autora de vários livros que se expressam em temas relacionados com sexo, casamento, amor, como Fidelidade Obrigatória e Outras Deslealdades – citando aqui o título de uma de suas obras.

Pesquisadora e estudiosa dos elementos estruturais da psique e suas manifestações, dedicada com maior empenho à sexologia, a professora Regina Navarro expôs suas opiniões sobre problemas referentes à sexualidade humana, destacando questões que dizem respeito ao comportamento conjugal determinado por heranças culturais entre gerações: costumes e tradições que revelam certas características da identidade de um povo, tais como traços psicológicos e códigos morais.

Quando decidi escrever a respeito das explanações da entrevistada, acessei o site do Canal Brasil com o propósito de rever a entrevista, caso o quadro televisivo estivesse disponível em vídeo para qualquer internauta; porém, ali, só encontrei um pequeno trecho em aberto; é possível que o acesso à íntegra do programa somente esteja à disposição de assinantes. Entretanto, quase por acidente no curso de minhas pesquisas no Google, encontrei a mesma Regina Navarro sendo entrevistada por Marília Gabriela no canal GNT, programa postado no blog Quebrando Tabus, disposto em cinco vídeos que oferecem, ao término de cada apresentação, links para o acesso a entrevistas da mesma psicanalista em outros programas de televisão: Roda Viva, Márcia Peltier e Roberto D’Ávila. Só então pude notar que se trata de uma celebridade que deixou a carreira acadêmica e está ascendendo à popularidade através dos meios de comunicação de massa. Assisti a todas as exibições, a fim de melhor embasar as minhas impressões.

Sentir-se amada e desejada

O ponto mais polêmico entre as teses defendidas pela entrevistada é a sua proposta ao fim do “pacto de fidelidade” entre cônjuges, chegando mesmo a prever iminente dissolução desse suposto acordo que, conforme pesquisas suas, teria se originado com o advento do “amor romântico”, no século 12, tendo este alcançado o apogeu oito séculos depois, a partir de 1940, enaltecido e propagado através das produções hollywoodianas.

Regina reconhece que a mentalidade prevalente seja a de que “quem ama não admite que o parceiro ou parceira transe com outro”. Porém, como alternativa ao amor romântico e sua característica mais marcante (o pacto de fidelidade), ela prega que, se alguém “se sente amado e desejado”, nada mais poderia querer ou exigir do(a) parceiro(a). Entretanto, não seria essa uma postura favorável ao incremento das exigências consequentes de um pacto de fidelidade?

Analisemos.

Sentir-se apenas amado e desejado é uma condição passiva, não representa um comportamento sentimental de correspondência mútua, enaltece tão somente o poder de sedução, provavelmente mais intenso na figura feminina. No entanto, em ambos os gêneros, pode causar sensação de deslumbramento, de encanto, tanto quanto a paixão – o amor incontrolado – é capaz de obscurecer a razão.

Imaginemos alguém fascinado pela sua própria influência sedutora, seja de qualquer modalidade (dom-juanesca ou através dos aspectos físicos). Geralmente são pessoas que se sentem amadas e desejadas. Por motivos diversos, esses poderes podem deixar de funcionar: a verbosidade artificial e astuciosa, em determinado momento, já não convence, e o corpo sofre as mutações impostas pela ação do tempo.

Certeza de sentimentos

Estamos acostumados a ouvir as pessoas afirmarem que quem ama não mata, não maltrata, não faz sofrer… Até aí apenas corroboramos os Dez Mandamentos, que prega a inação: não matarás, não adulterarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás a mulher do próximo, entre outros não-farás.

Porém o amor não pode ser compreendido através de um comportamento passivo ou inerte. Amar pressupõe agir, fazer, criar, acariciar, fazer alguém feliz, respeitar, compreender, ter disposição para perdoar culpas e erros…

“Se você se sente amado(a) e desejado(a), o que mais você quer ou precisa?”, pergunta a psicanalista, acreditando que isso é tudo o que necessitamos para a realização da vida a dois. Porém, ao invés de postura passiva, o ideal não seria o contrário? Ou seja: “se amo e desejo” (comportamento ativo), só assim poderei admitir a liberdade sexual do meu parceiro ou parceira. Principalmente “se amo”, pois colocar esses dois sentimentos assim, em funções complementares, pode-se incorrer em grave contradição, visto que a intensidade do “desejo” pode vir a se constituir em fator de adversidade à expansão ou simples manifestação do “amor”. Acredito que seria mais coerente dizer que, “se amo”, respeito, pois compreendo, por processo empático, o comportamento do meu parceiro, seja convencional ou transordinário; talvez, até o estimule a libertar-se de possíveis frustrações impostas por usos e costumes sociais estabelecidos.

Sentir-se amado e desejado não corresponde necessariamente a ser amado e desejado. Podemos nos “sentir amados”. No entanto, jamais poderemos ter a certeza de que o somos. Só podemos ter certeza dos nossos próprios sentimentos: se amamos, odiamos ou se somos indiferentes. Assim como somente nós mesmos temos verdadeiro conhecimento do grau de intensidade do amor que sentimos, das suas nuances, relatividades e motivações (dizem que o dinheiro compra até amor sincero).

A pílula

O amor romântico “teve início” no século 12 e está dando sinais de “sair de cena”, diz a entrevistada. Amor romântico, em sua visão, equivale a puro egoísmo, gerando ciúme exacerbado, incontrolável. Na verdade, aí não estamos falando propriamente de amor, mas sim de paixão, sentimento que costuma arrefecer em curto prazo e pode, gradativamente, dar lugar ao amor natural. Porém, se tiver causado fortes danos às faculdades de raciocinar, sentir, avaliar, compreender e concluir logicamente, então, nesse caso, revela-se apenas como fogo-fátuo.

Regina afirma que o problema do amor romântico é que as pessoas se casam criando um conjunto de expectativas ideais em relação ao parceiro e acabam se frustrando. Certamente a expectativa de que os dois se tornarão um só, ou mesmo acreditar no mito da alma gêmea, atrapalha, frustra aquele que assim pensa e não é capaz de refazer seus conceitos na medida em que se desenrola a união conjugal.

Em quase todos os programas, a entrevistada afirma que o surgimento da pílula anticoncepcional é responsável por suposta mudança de comportamento da mulher, pois, a partir daí, o homem teria perdido o poder de exclusividade no controle da concepção. Porém Regina garante que existe um acelerado processo de mudança, com a tendência para que o casamento se torne cada vez mais “aberto”, em que ambos os cônjuges aceitem relacionamentos extraconjugais. Seria, para ela, o fim do pacto de fidelidade. Entretanto admite que, com o surgimento da pílula e controle da concepção, as mulheres não optaram por comportamento “revanchista”, do tipo: “Bom, se agora eu não corro mais o risco de uma gravidez ‘indesejada’, vou agir como os homens agem, vou à luta por novos parceiros, não me obrigo a cumprir o suposto pacto”. Pelo contrário, as mulheres, segundo a pesquisadora Regina Navarro, passaram a exigir exclusividade com maior ênfase. Estranha é essa reiteração de comportamento, agora ainda mais aguçado. Talvez isso se explique pelo fato de a mulher querer se sentir mais amada e desejada (o ideal, para Regina) que amar e desejar. O amor liberta, mas não apenas o amor que sentem por nós. Este pode até nos ajudar no processo de libertação, mas o amor que sentimos pelos outros é que deveria se constituir no verdadeiro instrumento libertador de nós mesmos.

Satisfações ao parceiro

Regina Navarro assevera que o termo “traição” não lhe diz nada, quando se trata de sexo. Realmente, traição não tem nada a ver com o sexo propriamente dito, mas sim com os nossos comportamentos em seus mais amplos aspectos.

Lembrei-me de uma história contada por um jornalista e escritor brasileiro relatando experiência que ele teria vivenciado na companhia de um casal italiano. Contou que estava visitando esses seus amigos quando percebeu que o marido sutilmente o estimulava a ter relação sexual com a esposa. Inibido, ele teria se esquivado, e não rolou nada. Tempos depois, já no Brasil, soube que o amigo italiano havia-se suicidado. Motivo: a mulher o traíra tendo relações amorosas com outro parceiro, mas o fazia às escondidas, sem nada lhe participar, fato que teria caracterizado a traição.

Para Regina Navarro, um cônjuge não tem que dar satisfações ao outro. Se perguntado sobre possível relacionamento extraconjugal, a resposta deveria ser: “Não tenho satisfações a lhe dar”, diz ela imprimindo o tom da resposta: incisivo, até agressivo. No entanto, em outro programa, ela afirma que “qualquer prática sexual só tem sentido se as duas pessoas quiserem mesmo”. Evidente. Mas isso implica também dizer que qualquer relacionamento conjugal só tem sentido se as duas pessoas se combinarem e participarem um ao outro suas experiências em qualquer âmbito de ação.

Em um dos programas, Regina conta que uma das alegações de muitas mulheres tentando influenciar outras a não aceitar que o parceiro ou ela mesma tenha experiências fora da relação a dois seria o “perigo” de passar a gostar do outro e se separar. Mas isso, para a psicanalista, não tem fundamento, porque só com a diversidade de parceria o casamento será maravilhoso. Porém ela fala de outra nova tendência, aquilo que os norte-americanos estariam chamando de “divórcio grisalho”, que é a separação de casais em muito adiantada vida conjugal. E ela justifica o “fenômeno” dizendo que isso acontece porque “Os velhos viviam jogados pra escanteio, hoje, o velho de classe média pra cima, ele tem aula de canto, de teatro, grupo de não sei o quê, van que pega, passeia. Os velhos hoje fazem o que quiserem, não ficam mais num…[alguém a interrompe e lembra: “Viagra”]Viagra… É por isso que está havendo o divórcio grisalho. Nos Estados Unidos as pessoas estão se divorciando com 70, 80… [anos de idade]”.

Sentir amor implica compreender

Agora vejamos: isso talvez explique aquela preocupação de determinadas mulheres em relação à diversificação de parceiros. Ou seja: ao invés de os relacionamentos múltiplos, de ambas as partes, fortalecerem a vida conjugal, esse comportamento não estimularia a separação? Não estou afirmando que concordo com a preservação de um pacto de fidelidade forçando o parceiro a se manter distante de outras pessoas. Menos ainda que os idosos sejam desprezados, jogados para escanteio.

O ditado “quem nunca comeu melado quando come se lambuza” pode definir, de certa forma, o entusiasmo que as pessoas menos experientes, principalmente os mais jovens, sentem e que as impelem ao arrebatamento das paixões. Os idosos desamados ou nunca suficientemente amados, jogados pra escanteio por longo período, podem agir da mesma forma. E, provavelmente, tais comportamentos acontecem devido ao egoísmo consequente da postura daqueles que querem apenas se sentir desejados e, por isso, amados mais do que amar.

Falamos frequentemente que certos casais já não se amam, apenas se respeitam, se toleram, como se respeito e tolerância não fossem expressões de amor amadurecido. O problema é que, talvez inconscientemente, às vezes imprimimos ao termo tolerar a conotação de penalidade imposta, apesar de tanto condenarmos a intolerância às opções, atitudes ou condições alheias.

A meu ver, a separação ocorre com muito mais frequência devido ao fator “individualismo”, estimulado por Regina Navarro quando diz: “Se você se sente amado(a) e desejado(a)” não precisa de mais nada para ser feliz na vida a dois. Quando, por coerência, deveria dizer: ‘Se você se sente amando e sendo amado, desejando e sendo desejado, que mais você pode querer?’” Ou ainda, para as pessoas mais compreensíveis, mais tolerantes, mais respeitadores dos direitos individuais, sentir amor, mesmo que aparentemente não correspondido, implica compreender, ou simplesmente tolerar, o comportamento do outro, desde que não sejam atitudes de agressividade em qualquer de suas formas.

Interpretações distorcidas

“Dois mil anos de sexo como uma coisa suja e feia”, diz Regina Navarro no programa Marília Gabriela Entrevista. A pesquisadora Regina Navarro garante que, com o advento do Cristianismo, tornou-se proibido o amor romântico; a partir de então, só se podia amar a Deus, ficando proibido o amor entre as pessoas. Muito pelo contrário, antes de Jesus, as escrituras hebraicas determinavam, através do primeiro dos dez mandamentos: “Amar a Deus sobre todas as coisas”, os demais mandamentos versam sobre o não-fazer, a inação. Já tratamos disso.

Instigado a interpretar as Sagradas Escrituras Hebraicas, mais especificamente sobre a Lei do Amor, Jesus se refere ao capítulo 6, versículo 5, do livro Deuteronômio, ratificando o que lá está escrito: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento”. Mas acrescenta: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Quer dizer: o Cristianismo amplifica a Lei do Amor, estimulando as pessoas a se amarem reciprocamente e não só com simpatia, mas com empatia, colocando-se no lugar do outro com o propósito de sentir e compreender suas angústias, sofrimentos, alegrias, paixões… Amar aos outros como se ama a si próprio. Porém, se os pretensos seguidores da doutrina cristã deturparam (deturpam) os ensinamentos do Cristo, com interpretações propositadamente distorcidas, a fim de atender aos seus mais mesquinhos interesses pessoais, isso é outra questão. Não foi o cristianismo que inaugurou o atraso, são os falsos cristãos quem o mantêm.

Dos contos de fada às telenovelas

A psicanalista Regina Navarro fala da influência negativa que alguns contos de fada causaram na formação da “mulher frágil”: Cinderela, Branca de Neve e A Bela Adormecida, cita esses como exemplos. Casos em que a mulher acaba sendo protegida e salva por príncipes encantados. Mas acredita que novelas e propagandas comerciais, hoje, estão formando uma mentalidade positiva, homogeneizando os valores culturais entre as diversas cidades e regiões do País. É um disparate inadmissível para uma pessoa como ela, que possui elevado grau de instrução e, certamente, deve ter ampliada noção do estrago que os meios de comunicação de massa têm feito no psiquismo das pessoas, em geral tratadas apenas como consumidoras.

Cinderela, Branca de Neve e a Bela Adormecida precisaram de muitas décadas para difundir o ideal da “mulher frágil”, essa que não precisa amar o príncipe encantado, a quem lhe basta sentir-se amada e desejada. (Acho que a psicanalista não atentou para esse detalhe: apenas se sentir amada e desejada como condição para a satisfação integral é sentir-se como as personagens dos contos de fada.) Mas as telenovelas e as propagandas, tanto quanto os telejornais, programas de auditório e todo o lixo intelectualoide que geram as pretensas artes visuais destinadas ao povaréu, precisam apenas de alguns minutos de audiência para fazer as massas mudarem para permanecerem na mesma condição de ignorância mantida há séculos.

Num determinado momento, Regina Navarro afirma que os valores culturais influenciam, moldam a formação do nosso inconsciente (óbvio; aliás, a obviedade é a característica básica da argumentação profissional da psicanalista), mas que a Rede Globo estaria aí mesmo para esclarecer as pessoas, com o conteúdo de suas novelas. No Roda Viva ela cita apenas as novelas, mas, em outro programa, destaca até a “importância” das propagandas no processo de despertar das consciências. Parece ingenuidade, mas não é. Regina Navarro foi, é ou pretende ser (li alguma coisa a respeito disso, mas não me lembro onde) assessora, consultora, da produção de um dos programas da Rede Globo e quer continuar vendendo livros a rodo. Está explicada a bajulação.

Em relação ao progresso científico, é incontestável que avançamos a passos largos; mas, afinal, do ponto de vista moral e ético, mudamos para permanecer os mesmos ou evoluímos de verdade em algum sentido?

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Fernando Soares Campos é jornalista