Um leitor sugeriu que a coluna abordasse a maternidade num tempo de profundas mudanças sociais. Isso, atrelado ao oportunismo comercial da data que se celebra amanhã, fez com que a escriba deste espaço batesse em retirada temática. Mas a ironia foi acabar nos braços de outra grande figura materna. Nos braços da língua-mãe de cerca de 250 milhões de falantes no planeta, 194 milhões deles no Brasil. Afinal, por que se alargou o prazo para a adoção definitiva do acordo ortográfico? Por que intelectuais portugueses ainda questionam normas? O acordo entrará em vigor “de fato” ou “de facto”?
O Brasil tem bons filólogos e linguistas, evito citá-los para não correr o risco da omissão. Mas admito que venho conversando com o professor Ataliba de Castilho, da USP, autor da Nova Gramática do Português Brasileiro (Ed. Contexto), sobre a língua que nos papagueia. Noto seu inconformismo com o recuo do governo brasileiro ao fixar outra data para a adoção obrigatória do acordo – isso, para satisfação da chamada Resistência Portuguesa e frustração do mercado editorial brasileiro, que investiu fortunas atualizando reedições e colocando lançamentos no novo padrão. Houaiss deve ter se revirado no túmulo ao saber que o prazo foi para 2016.
Falta uma política linguística mais assertiva da parte do Brasil, diagnostica o professor. Seu raciocínio não tem firulas: “A língua caminha junto com a mercadoria, desde sempre. É a economia, ainda mais que a cultura, que expande as fronteiras da língua. Então, é só ver o tamanho e a ambição do Brasil, em face da situação de Portugal hoje. Por que ainda sofremos desse complexo de colônia em relação ao idioma?”.
Demanda reprimida
O complexo vai além das políticas oficiais. Quantos de nós temos consciência de usar uma língua herdada, que se refaz o tempo todo, preservando antigos elementos? O português brasileiro, do qual Castilho é estudioso, atualiza justamente aquele português medieval do século 15, da era dos Descobrimento s. Temos o sotaque lá de trás. Não passamos pela aceleração de ritmo do português europeu, no século 18, assimilada pelos africanos. Falamos uma língua que se preserva e se renova em processos simultâneos. Castilho conta uma história saborosa. Certa vez presenciou em Portugal a recomendação de uma professora de literatura a seus alunos: “Leiam Camões imitando um brasileiro. Só assim reproduzirão a métrica perfeita”.
Sétima ou oitava língua mais falada no mundo (este ranking varia) e com razoável dispersão geográfica, ela avança nos países que passaram por processos de independência – Angola, Moçambique, Timor Leste –, mas também nos vizinhos Uruguai e Paraguai. Em Montevidéu, capital de um país com índices de educação superiores aos brasileiros, o professor soube de mais estudantes de português na União Uruguai-Brasil do que de inglês na União Uruguai-Estados Unidos. E a busca pelo Celpe-Bras, certificado de proficiência no português do Brasil, o nosso Toefl, só faz aumentar entre estrangeiros.
O Celpe-Bras é um teste de qualidade – credite-se o trabalho de linguistas da Unicamp na sua modelagem, anos atrás. Recentemente, depois de dar uma conferência em Harvard, Castilho presenciou a chegada dos pacotes do exame na famosa universidade americana. São despachados pelo MEC, com apoio do Itamaraty. “Coisa feita com rigor, dá gosto de ver”, comentou. Harvard aplica o Celpe-Bras em toda a região de Massachusetts, onde americanos vivem em permanente interação com milhares e milhares de brasileiros. Parece claro que os 20 centros de difusão da língua pelo mundo, mantidos por nossas embaixadas, não suprem a demanda por novos cursos do idioma. Enquanto isso, intelectuais portugueses convocam colóquios para discutir o fim do acento agudo da palavra “prémio”. Ora, pois.
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Sigo, aqui de Londres, o entrevero entre Helen Mirren, maravilhosa protagonista da peça The Audience, e um grupo de jovens percussionistas, os street drummers. No cinema, a atriz levou Globo de Ouro, Bafta e Oscar no papel de rainha da Inglaterra. Foi Elizabeth I em série para TV. Na peça, retoma a rainha de hoje, em audiência com distintos primeiros-ministros, de Churchill a Cameron. Tornou-se autoridade em realeza, por quem foi condecorada. Dias atrás, Helen deixou o palco do Gielgud Theatre, a caráter, para passar uma descompostura nos batuqueiros que se exibiam do lado de fora.
Sem tempo para explicações, mandou-os todos para aquele lugar, com seus malditos bumbos. Só no dia seguinte explicaria que o barulho rouba sua concentração no palco e incomoda um público que paga caro para vê-la. Tudo esclarecido? Não. Comentaristas ingleses discutem se, possuída pela raiva ou coberta de razão, Dame Helen poderia ter usado palavras fora do padrão idiomático da rainha. Ou seja, fora do Queen's English. Que tal?
Eis uma questão da língua.
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Laura Greenhalgh é colunista do Estado de S.Paulo