Uma das armas mais poderosas da linguagem é a analogia. Se bem usada, pode facilitar a vida de alunos, ouvintes atentos, leigos e mesmo especialistas no assunto tratado. São o combustível do pensamento, para usar o termo de Douglas Hofstadter e Emmanuel Sander, em seu recente Surfaces and Essences. Analogy as the fire of thinking (Basic Books, 2013). Mas, como toda arma, tem seu lado B. Pode também ser usada para torcer argumentos, ganhar discussões, sustentar teorias. Este último caso foi o citado por Jacques Bouveresse (em Prodígios e Vertigens da Analogia. O abuso das belas-letras no pensamento, Martins Fontes, 2005). Bouveresse analisa a analogia de que se valeu Régis Debray para construir sua teoria social a partir do teorema de Gödel, cometendo ao mesmo tempo dois pecados – uma interpretação equivocada do teorema e, mais importante, a desnecessidade de recorrer a ele para construir sua teoria.
Analogias podem ser usadas para defender uma posição (“ganhar uma discussão”). Nesse caso, o argumentador pode estar recorrendo a um dos estratagemas da dialética erística, de Como vencer um debate sem precisar ter razão (Topbooks, 2003), do filósofo Schopenhauer, conscientemente ou não.
Um exemplo emblemático foi a coluna de Elio Gaspari de 22 de maio, no jornal O Popular, de Goiânia, intitulada “Síndrome da reivindicação sucessiva”. Com a habilidade que lhe é peculiar, Gaspari vai tecendo sua pirâmide de analogias a partir de exemplos históricos razoavelmente consolidados, para, finalmente, chegar ao ápice com o exemplo de hoje. Conclusão: está vendo, leitor, são todas situações análogas, portanto, eu estou com a razão.
Poderíamos classificar sua estratégia como a de número 4 de Schopenhauer, o uso dos pré-silogismos: “Se queremos chegar a uma certa conclusão, devemos evitar que esta seja prevista e atuar de modo que o adversário, sem percebê-lo, admita as premissas, uma de cada vez e dispersas sem ordem na conversação (…).” Embora não sem ordem, até pelo contrário, de forma bastante didática, Gaspari enumera premissas fáceis de serem aceitas, começando pela mais fácil delas, a de que o que vai moralizar o Brasil não é a reforma política, mas o fim da impunidade. Mais adiante, cita ainda a Lei do Ventre Livre, o voto para analfabetos e as cotas nas universidades.
Impertinente ou desonesta?
De acordo com Gaspari, é falsa a afirmação de que “a contratação de médicos estrangeiros por tempo determinado para trabalhar em áreas onde não há esses profissionais só fará sentido quando se rediscutir o sistema de financiamento da saúde ou plano de carreira do SUS”. De certa forma, ele até está certo. De fato, tal afirmação é falsa na medida em que os médicos tentam há bastante tempo fazer isso, independente da vinda de médicos estrangeiros, pois interessa à classe (à maioria, de toda forma), um SUS fortalecido, com plano de carreira (portanto, segurança), salário digno e condições de trabalho em qualquer parte do Brasil.
Mas o que é falso mesmo é citar a distribuição concentrada de profissionais em grandes regiões e dizer que se trata de interesse em “congelar uma situação na qual os médicos estabelecidos têm no Brasil uma reserva de mercado e transformam concorrência em vírus”. Ora, pra começo de conversa, é inacreditavelmente contraditório. Se os médicos malvados se concentram nos grandes centros e os estrangeiros irão para locais ermos, que medo de concorrência é esse? Nós, os médicos cafajestes, acharemos até bom, pois assim o governo e os jornalistas pararão de nos cobrar patriotismo e humanidade. Estamos livres para explorar nosso “nicho de mercado”.
Gaspari chega bem pertinho da desonestidade quando diz: “É direito de qualquer cidadão trabalhar onde bem entende, mas barrar o acesso de outro profissional que aceita ir para um lugar que não lhe interessa é bem outra coisa.” Desonesto? Bem, aqui vai minha própria analogia. É como se o dono do jornal chegasse pra ele e dissesse: “Olha aqui, Elio, você está custando caro. Vamos baixar seu salário. Ganhará dez vezes menos. E não terá computador nem internet, vou te dar lápis e papel. Não quer? Diz logo, pois tem quem quer.” Analogia impertinente? Outra, então: é como se o Estado de São Paulo demitisse todos os professores em greve e importasse estrangeiros pro seu lugar.
É fácil dar opinião
Para ser honesto, fiquei surpreso por Gaspari não ter citado a falácia preferida dos sofistas que defendem essa aberração. A que diz que há, sim, salários bons e por vezes até ótimos em prefeituras de cidades do interior. Sim, de vez em quando aparece um prefeito disposto a pagar um bom salário. Mas isso dura, na melhor das hipóteses, o tempo de seu mandato, quando não dura apenas alguns meses para começar a atrasar, até chegar ao calote. Além disso, não adianta só salário e só para o médico. É necessária uma estrutura decente, com pessoal multiprofissional com salário digno também. De que adianta ganhar dez mil reais sem condições de trabalho e com o enfermeiro ganhando mal? Sem falar que se trata de ações isoladas e que colocam o profissional “na mão do prefeito”, pra ser joguete eleitoreiro. Daí a reivindicação da classe por uma carreira de estado no SUS, com salário digno, condições de trabalho e segurança.
É fácil dar opinião sentado diante de um computador, com um bom salário, morando em cidade grande, com acesso de saúde e educação para si e sua família. Que mal pode fazer ser tratado por médico estrangeiro (sem revalidar o diploma) por três anos em locais ermos, pergunta Gaspari. Quem sabe ele não se muda para uma dessas cidades, por três anos e depois conta pra gente?
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Flávio Paranhos é médico, doutor em Oftalmologia, mestre em Filosofia, professor da PUC/Goiás, colunista da revista Filosofia Ciência & Vida e cronista do jornal O Popular (Goiânia)