Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Edward Snowden na lista de espera

Quem olha para a atual distribuição das bancadas no parlamento alemão irá constatar uma oposição minúscula, composta pelos Verdes e pelo partido esquerdista Die Linke; ambos compõemum “peso morto” frente a Übermacht,o superpoder da vigente coligação entre os ex-arquirrivais do CDU, partido de Angela Merkel e os socialdemocratas (SPD).

Na quinta-feira (10/4), a minioposição foi ao mesmo tempo surpreendida e humilhada quando a União barrou o envio do convite oficial do parlamento alemão a Edward Snowden para depor na comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre o caso NSA.

Dinâmica dos fatos

Enquanto ainda esquentavam a bancada da oposição no governo anterior, os socialdemocratas eram ferrenhos defensores da vinda de Snowden para Berlim. Sigmar Gabriel, chefe do partido e hoje ministro da Economia e Energia, não perdia uma possibilidade de esbravejar no microfone de qualquer mídia a incompetência do então governo em esclarecer o escândalo, que teve seu ápice quando foi divulgado que o telefone celular da chanceler Angela Merkel fora grampeado durante anos e todos os telefonemas, meticulosamente protocolados e arquivados pela NSA.

Desde a posse do atual governo, em dezembro de 2013, os socialdemocratas e o partido de Merkel, o CDU, constituem o que o jargão midiático batizou de “GroKo”.Merkel, adepta do ritmo de governo de calmaria, sem atropelos onde tudo o que causar agitação, vai direto para debaixo do tapete.

Devido à viagem oficial da chanceler aos EUA no início de maio, a União decidiu o bloqueio do envio do convite a Snowden para “evitar um constrangimento” nas conversações entre Merkel e Obama.

Um leitor postou o seguinte comentário no artigo do Süddeutsche Zeitung que divulgava a bomba político-midiática: “Até parece que os americanos não vão estar sabendo!”.

Membros da chancelaria federal esclarecem da seguinte forma: se por ocasião da estada de Merkel em Washington o convite já tivesse sido enviado, isso entraria na pauta das consultas com o presidente Obama. O convite não tendo sido enviado (mesmo Obama tendo conhecimento), este assunto não entrará na pauta. Assim, terá se realizado o desejo de Merkel, coerente com seu estilo de governo: a capacidade ímpar de fazer vista grossa quando a situação ameaça se tornar igualmente constrangedora e de risco incontrolável. Além disso, Merkel teme que a vinda de Snowden para Berlim possa resultar na pressão midiática ao governo em concedê-lo asilo. Fontes da chancelaria federal atestam: “Isso é uma decisão do governo e ela já está tomada. Não tem lugar para Snowden na Alemanha”.

Sarah Harrison, que acompanhou Snowden durante parte de seu exílio em Moscou, reside atualmente em Berlim.

A teimosia de um Verde solitário

Hans-Christian Ströbele, o enfant-terrible dos Verdes, fez um golaço quando, em dezembro do ano passado, sem qualquer aviso prévio ou consulta com a chanceler Merkel, ou mesmo com o próprio partido, se encontrou com o procurado whistleblower nacapital russa. Desde então, Ströbele vem roendo o osso para trazer o ex-funcionário da NSA para depor em Berlim como ápice de sua longa e prestigiosa carreira, entre outros, de advogado de defesa de membros da Fração do Exército Vermelho (RAF). O caso NSA é, de fato, chumbo grosso por tanger vários órgãos do governo.

Até quarta-feira (9/4), estava certo que o convite oficial seguiria em breve, para que houvesse tempo suficiente de preparação antes do recesso parlamentar (seis semanas de férias de verão). Para complicar ainda mais a corrida contra o tempo, o visto de asilo concedido a Snowden expira em agosto. Na sessão de 10/4, a União fez um requerimento pleiteando o adiamento até a próxima reunião, que acontece em 8 de maio. Até lá, Merkel já terá voltado da viagem oficial aos EUA.

Barril de pólvora

Stefan Kornelius, redator-chefe de política externa do jornal Süddeutsche Zeitung, declara nãoesperar novos detalhes até hoje desconhecidos no depoimento de Snowden. Em 2013, ele respondeu por escrito questões enviadas pelo Parlamento Europeu. O resultado das respostas foi um dossiê de 12 páginas. O próprio Snowden declara, repetidamente, que não irá divulgar nada que já não tenha sido divulgado anteriormente, ao mesmo tempo em que não deixaria vazar mais informações sobre os EUA, já que esta é uma das principais condições do asilo concedido por Wladimir Putin: que Snowden não revele nada mais que prejudique os EUA.

Em entrevista de vídeo no portal do seu jornal, Kornelius ainda pleiteia uma postura menos passiva e mais soberana da Alemanha, e sugere um papel de mediador da União – como, por exemplo, o asilo do whistleblower num pequeno país na Escandinávia. Há dias, Snowden e sua vinda a Berlim é o tema principal de todas as pautas políticas da mídia alemã (ver aqui).

Por meio de seu advogado berlinense Wolfgang Kaleck, Snowden alegou, na sexta-feira (11/4), que não irá impor condições para depor frente à comissão parlamentar de inquérito. Em carta enviada ao novo chefe da CPI, Patrick Sensburg, o advogado sugere o depoimento de Snowden em presença física (e não no formato de videoconferência, como já sugerido pela CPI) e acrescenta: “A abrangência do depoimento do meu cliente dependerá das condições em que o testemunho será dado”.

Guerra de nervos

A mídia inteira está de acordo: o depoimento de Snowden em Berlim tem um caráter de imensa simbologia, mas é também cunho estratégico. Sabendo que a maioria dos alemães é a favor da concessão de asilo político a Snowden, e a pressão midiática que está em volta de tudo isso, são razões suficientes para o governo Merkel exercer influência sobre a comissão parlamentar de inquérito, fato que causou, na quinta-feira (10), a renúncia de Clemens Binniger (CDU). A imprensa não deixa quaisquer dúvidas que nessa renúncia repentina houve a influência direta do governo.

O caso Snowden causou um terremoto na política interna na Alemanha. Seu depoimento poderá trazer à tona os fracassos dos órgãos alemães em prevenir, ou pelo menos tomar conhecimento da situação antes de os relatos de Snowden vazarem na imprensa.

Hans-Geog Maaßen, chefe do Departamento Federal de Proteção à Constituição (BfV, na sigla em alemão), declara que seu departamento “não tem nenhuma ideia de como os serviços secretos americanos e ingleses atuam na Alemanha”, além de xingar Snowden de “traidor”. “Para mim Snowden não é nenhuma fonte relevante, é somente uma figura exótica”.

Também o órgão de Serviço Federal de Informações (BND, na sigla em alemão) tem motivos de sobra para temer quaisquer declarações de Snowden, como, por exemplo, como foi possível que a chanceler Angela Merkel, durante anos, usasse um celular normal, sem qualquer mecanismo protetor de codificação.

Um parlamento capenga no âmbito político das bancadas precisa retomar o caminho para o qual não existe alternativa: o depoimento de Edward Snowden, ao vivo e em cores, em Berlim. Nada menos do que isso será aceito pela mídia e pela maioria esmagadora dos alemães, que veem nele, senão um herói, uma testemunha que pode esclarecer muito sobre as próprias falhas, mazelas e falta de vontade política por parte do governo alemão no combate à espionagem sistemática no país.

Pegando carona nessa onda político-midiática, a Universidade de Rostock (nordeste do país) vai conceder a Snowden o título de Doutor Honoris Causa. A diretoria da faculdade o denomina “o Cristóvão Colombo da era digital”.

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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com