Nos quatro primeiros meses deste ano, ocorreram duas mortes de trabalhadores rurais nos canaviais da região de Ribeirão Preto. São corpos de diferentes idades, um com 50 anos e outro bem mais jovem, com 20 anos, que dialogam na forma de morrer, ou seja, que caem no local de trabalho subitamente. Certamente afetados pelo sonho de entrar no éden do agronegócio ainda que pela porta dos fundos, de ganhar dinheiro para comprar algo para a família deixada para trás, de arrumar emprego temporário atribuindo a ele os sentidos de emprego fixo, eles viajaram muito tempo para tombar no campo minado e ilusório do canavial.
Estes não são os únicos migrantes que cruzaram os céus do país para morrer aqui. No ano passado, quase duas dezenas de mortes parecidas ocorreram com trabalhadores de idades diversas. Para registrar tais acontecimentos, os jornais impressos locais ou deram notas esparsas, ou noticiaram o fato como questão de saúde e integridade física do trabalhador, entrando no mérito dos exames médicos de admissão, ou entrevistaram algumas personalidades – mas sempre mantiveram a regularidade de não nomear a questão da concentração de terra no país, da monocultura e da reforma agrária; tampouco tocaram em temas incômodos como as condições de trabalho, a forma de remuneração, os direitos trabalhistas, os acidentes de trabalho, a terceirização, o trabalho escravo ou trabalho infantil. Ou seja, a estrutura social que engendra as relações de trabalho no campo ficou adormecida, impossível de dizer.
A Folha de S.Paulo de domingo (29/4) publica uma reportagem que aparentemente rompe com os sentidos postos acima, fazendo falar um suposto lugar de denúncia das condições de vida (e morte) dos severinos da cana na ‘capital nacional do agronegócio’. Diz a manchete da primeira página: ‘Cortadores de cana em SP têm vida útil menor que a de escravos’ – o que promove a atualização da memória discursiva sustentadora do que sabemos sobre a escravidão no país, sobre o que foi e ainda é ser escravo, sobre as torturas já vividas no pelourinho, sobre o modo como os negros foram discursivizados em condições de extrema exploração, banidos de qualquer instância em que pudessem ser tratados ou entendidos como detentores de direitos.
Discurso jornalístico
É preciso considerar o modo como a historicidade põem em movimento vários sentidos nessa manchete, cavando no agora uma relação de parentesco com o já-dito em outros contextos sociais e, por isso, porque a ordem da história se inscreve na ordem da língua, podemos ler os efeitos de denúncia nessa formulação.
O contraponto de dois tempos – o de agora e o dos escravos – implica marcar não apenas que antes os escravos tinham vida útil maior e que, hoje, os cortadores de cana têm uma vida útil menor (essa é uma leitura literal, por mim considerada restrita), mas que isso acontece em São Paulo, estado mais rico da União, e especialmente em Ribeirão Preto e região, onde o agronegócio tem sido narrado como a menina dos olhos da política econômica nacional, em que o slogan de que a vida de todos nós depende do agronegócio tem sido difundido com força de lei e em que os sentidos de reforma agrária têm sido silenciados como impossíveis de dizer e circular.
Consideramos a manchete como um lugar de condensação dos sentidos e inscrição de uma diretividade de leitura do político, assim, é possível inferir que o impacto desta manchete não apenas chama a atenção do leitor para buscar a reportagem completa, mas o faz navegar pelos cadernos à procura do lugar em que as palavras foram alocadas.
O lugar em que e o modo com que as palavras são ditas significa mais do que o sentido literal que elas possam ter, pois consideramos que não existe uma relação termo a termo entre as palavras e as coisas e que a linguagem não está em estado de dicionário. Assim, a maneira como as palavras são postas em discurso inscreve a posição do sujeito, a evidência ideológica de um sentido e não de outro, a exterioridade como condição de produção ou como efeito da memória.
Observar o discurso reclama a compreensão de um jogo imaginário, em cujo campo estão postas representações, papéis, dizeres, enfim, vozes em litígio; o discurso midiático é entendido como um lugar discursivo de poder, que pretende tecer, no dia-a-dia, a narrativa do que foi ou do que é a realidade, garantindo um suposto assentamento dos fatos instáveis em uma determinada ordem, esclarecendo ao leitor um único modo de compreender o caos do cotidiano, nesse caso tramando, com seus fios discursivos, uma modelagem sobre um objeto imaginário, qual seja a nova (velha) escravidão de trabalhadores rurais, agora com uma vida pior do que a dos escravos de outros tempos.
Assim, tomamos o discurso jornalístico como uma poderosa voz que faz circular uma forma de dizer como se ela fosse a única possível. Isso implica entender que, ao escolher um modo de narrar os fatos, a mídia silencia outros; ao colocar na primeira página uma manchete, ela deixa de construir outras possibilidades de dizer; por fim, ao escolher colocar uma determinada reportagem em um caderno, ela deixa de colocá-la em outro.
Usineiros e ruralistas
E é justamente essa ‘escolha’ do caderno jornalístico que reclama interpretação. Ao invés de estar dentro do primeiro caderno, onde se discutem os temas políticos de relevância para o país, onde estão colocadas as reportagens merecedoras da atenção de todos e onde acontecimentos internacionais são registrados, a reportagem da Folha está posta no caderno ‘Dinheiro’, no qual são tratados assuntos ligados ao mundo dos negócios, dos investimentos, das taxas de crédito, das tabelas de investimentos, das oscilações de valores de moeda, arroba de boi etc. Isso já constrói os sentidos de que esse objeto discursivo não é de interesse nacional ou de qualquer um, mas diz respeito aos investidores, aos economistas, aos ruralistas, aos empresários do agronegócio – ou seja, aos que estão inseridos no mundo do dinheiro.
A primeira página do caderno ‘Dinheiro’ de 29/4 reforça os sentidos de ‘dilapidação’ do trabalhador como marca a voz da pesquisadora Maria Moraes. Temos, no dizer da pesquisadora, um lugar de autoridade que denuncia os efeitos de exploração dessa mão-de-obra nos canaviais e que sinaliza ser científica a constatação de que as mortes ocorridas nos canaviais derivam de desgaste físico.
No entanto, a reportagem tranqüiliza o leitor, criando um efeito de solução e resolução de conflitos:
‘Preocupados com as condições de trabalho e com a repercussão das mortes, as usinas estão mudando o sistema de contratação desses trabalhadores, antes terceirizados’.
Essa formulação tampona o furo que se abria nas manchetes, ou seja, não há tanto assim a denunciar visto que medidas práticas têm sido tomadas para resolver o problema e medidas da ordem do jurídico que rege o sistema trabalhista. Em um movimento contrário ao colocado em discurso pelas manchetes de primeira página, a voz de usineiros e ruralistas é inscrita com destaque de espaço no caderno, sinalizando efeitos de benefícios aos trabalhadores rurais:
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‘Mudanças beneficiam cortador, dizem usineiros’**
‘Entidade aponta fim da terceirização e ganhos de produtividade como avanços’**
‘Associação das indústrias afirma também que ainda não ficou provado que causa de mortes no campo tenha sido o excesso de trabalho’.Fios da fatalidade
Tais formulações precisam ser lidas e interpretadas para além da sua literalidade: se os escravos de ontem viviam melhor do que os cortadores de cana de hoje, esperava-se que a reportagem inscrevesse apenas os efeitos de denúncia da exploração de homens e mulheres que cortam em média 15 toneladas de cana por dia, chegando a receber 5 reais por tonelada, trabalhando em um sol escaldante das 5 da manhã às 4 da tarde, andando em média 9 km por dia, dando em média 10 mil golpes de facão ou podão por dia, vivendo em habitações coletivas, antigos cortiços, e submetendo-se a um desgaste físico capaz de matar, aleijar ou gerar lesões crônicas.
Mas, não: os ‘ganhos com produtividade’ passam a ser a medida pela qual o trabalhador se esforça para ganhar mais, para se promover dentro da empresa, para aumentar o seu rendimento, ou seja, estamos no caderno ‘Dinheiro’ e, como sabemos, para ganhar dinheiro é preciso trabalhar mais, investir melhor, colher melhores resultados. E quem tem autoridade para falar desse assunto são os empresários do ramo, a entidade deles, e não os trabalhadores interessados no emprego.
Esses sentidos dialogam com a seqüência de imagens da seqüência de fotos sob o título ‘Dia no canavial’, que não apresenta nenhum trabalhador no canavial, diga-se de passagem, mas mostra um retrato do dia de um José que às 4 da madrugada ‘acorda e prepara a sua marmita e… uma hora depois já está a caminho do ponto de ônibus para… se juntar a 45 homens e mulheres em direção ao canavial’. Outra imagem apresenta um João, colega do José, que ‘lava a roupa suja do dia’ e, por fim, a última imagem registra o final feliz: os dois juntos ‘jogam futebol, após dia de trabalho no canavial’.
No relato do jornalista, eles moram em casa alugada com dois dormitórios e ‘aparelho de DVD’, preparam refeições à base de ‘arroz, feijão, macarrão e um cozido de carne’, além de ‘arroz, salsicha cozida, feijão e bifes’ e se divertem em ‘uma partida de futebol em campinho improvisado’, marcas que indiciam estarem morando satisfatoriamente, serem bem alimentados e terem acesso à atividade física e/ou de lazer, além de andarem de ônibus, o que, em um país como o nosso, é marca de acesso.
Ao falar do ‘dia no canavial’ dessa forma, o discurso jornalístico organiza semanticamente um universo, estabilizado como rotineiro, normal, sem problemas; seria bem diferente se as fotografias pontuassem as feridas no corpo, as mutilações, o cansaço físico, o almoço debaixo da lona improvisada, o rosto navalhado pela cana, o gesto repetitivo, enfim, o estar dentro do canavial. No entanto, a reportagem marca o de fora do canavial para dizer daquele que está dentro. Dá voz a um único trabalhador que discursiviza o seu fazer da seguinte maneira: ‘Para ser cortador de cana, tem que ter braço, porque, se não tiver, morre, ou de fome ou no canavial, de tanto trabalhar’.
Há tecelagem de fios de fatalidade, visto que só há uma chance morrer, morrer de fome ou de trabalho, morrer de morte de ‘de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome um pouco por dia…’
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Professora doutora na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo