O último domingo coincidiu com o dia dos namorados. Não se entende bem por que, mas quase toda a mídia perde nessas efemérides uma rara oportunidade de cumprir seus fins de informar e formar. Aos poucos, nossos cadernos culturais, com as exceções de praxe, vão se tornando leitura enfadonha. Ali, nulidades pontificam sobre outras nulidades, sejam temas ou personagens. É uma pobreza só!
Pois bem! A mídia caiu nessa esparrela. Dedicou páginas e páginas ao comércio do dia dos namorados, mas esqueceu o principal. Poderia ter construído uma pauta absolutamente nova, inclusive com a presença decisiva de mulheres sem namorados que chegaram ao topo de seus projetos sem eles e sem os maridos – e às vezes apesar deles –, inaugurando etapa decisiva da emancipação feminina no Brasil.
O dia dos namorados é celebrado sob a proteção de um santo nos EUA e na Europa, mas no Brasil, não. É curioso que o dito maior país católico do mundo tenha essa singularidade, pois para tudo há um santo nessa Terra de Vera Cruz. O santo em questão é uma lenda cristã e é admirável o caráter didático de numerosas delas. Uma das minhas preferidas é a dos três reis magos. Não eram três, não eram reis, não se sabe se existiram, mas foram visitar o Menino Jesus, recém-nascido em Belém, passando antes por Jerusalém, de onde saíram desconfiados do rei Herodes, tanto que nem voltaram pelo mesmo caminho. Ainda assim, desde o século 12 seus restos mortais estão na famosa Catedral de Colônia, na Alemanha, sem que saibamos de quem são aqueles ossos.
Melhor soldado era o homem solteiro
No dia dos namorados recordamos mais uma lenda de um santo cujo nome a Enciclopédia Católica retirou do cânone em 1969. No mesmo ano excluiu São Jorge e São Cristóvão pelo mesmo motivo: suas existências não foram comprovadas. O misterioso São Valentim, que dá nome ao dia dos namorados nos Estados Unidos e na Europa, provavelmente é a junção, pelo povo, de diversas personalidades com esse nome, que viveram em séculos diferentes.
O São Valentim mais conhecido foi aceito pela Igreja no século V, cumprindo determinação do papa Gelásio I. O decreto dizia, entre coisas, que há santos “cujos nomes são venerados pelos homens, mas cujos atos só Deus conhece”. O próprio sumo pontífice admitia, então, que era de difícil comprovação a sua existência e o que fizera para ser elevado à honra dos altares.
Ele teria sido um sacerdote ou um bispo que se apaixonou pela filha de seu carcereiro. Nas cartas que escrevia à moça, despedia-se como Teu Valentim. Foi morto, depois de muito torturado, no século III. Tinha sido condenado à prisão por desobedecer às ordens de Cláudio II, imperador romano que proibira a celebração de casamentos em períodos de guerra. Nas análises militares, era melhor soldado o homem solteiro. Mas ele continuou a celebrar casamentos e por isso era muito admirado pela juventude.
O evento passou a apenas comercial
Na prisão, Valentim recebeu várias cartas de namorados que queriam casar-se. Logo essas cartas e aquelas que ele escreveu à filha do carcereiro, sua namorada, passaram a servir de modelo aos cartões e mensagens – e hoje, e-mails e torpedos – trocados entre os namorados no dia 14 de fevereiro, data que era festejada, antes do Cristianismo, como o dia em que os passarinhos começam a acasalar-se, cinco semanas antes de começar a primavera.
Os antigos romanos tinham um deus chamado Fauno Luperco. Ele protegia os pastores, especialmente contra os lobos: Luperco, de lupus, lobo em latim. Era muito festejado nas lupercálias, quando os homens batiam nas mulheres com tiras de couro de bode, invocando a fertilidade. Era uma espécie de dia dos namorados também…
Quem trouxe o dia dos namorados para o Brasil foi o publicitário João Dória, em 1950. O lema foi “não é só com beijos que se prova o amor”. A data foi mudada para 12 de junho, por ser véspera de São Antônio, santo casamenteiro. No resto do mundo, inclusive em Portugal, o dia dos namorados continua a ser celebrado no dia 14 de fevereiro.
E os namorados? Como os passarinhos, os namorados continuam a acasalar-se, nesse e em outros dias e em todas as estações, mas depois disso sob a égide de uma festa que tornou indispensáveis os presentes. O evento passou de mítico e religioso a apenas comercial. É por isso que pessoas esclarecidas tanto detestam essas efemérides.