Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Eles fazem um jornalismo diferente

Como vamos chamar o tipo de jornalismo que cada um faz, pouco importa. O certo é que Ana Beatriz Magno, Marcelo Abreu, Marcelo Canellas e José Rezende Júnior fazem algo diferente da maioria. Por mais que existam pontos divergentes entre eles no que diz respeito ao jeito de encarar a profissão, apurar e escrever, há traços que os unem e justificam o espaço que recebem nesta reportagem especial.

Eles residem em Brasília, mas não se interessam muito pelos bastidores da política. Preferem contar outras histórias, nas quais o ser humano ganha ainda mais destaque. Fontes não-oficiais, por vezes deixadas de lado, viram protagonistas nas mãos desses repórteres. Fatos aparentemente desgastados, ou mesmo considerados sem importância, transformam-se em grandes relatos.

O trabalho deles não consiste em grandes furos jornalísticos. Raramente ocupa lugar de destaque. No dia-a-dia, esses profissionais arriscam fugir das normas e técnicas ensinadas pelos manuais e nas escolas de Comunicação. Não que desconheçam as regras do jogo; apenas optam, conscientemente, por um caminho que consideram mais próximo daquilo que acreditam ser jornalismo.

Esta reportagem descreve um pouco da trajetória de repórteres que nadam contra a correnteza. Ao avaliarem o próprio trabalho, eles contam as dificuldades e mostram o quanto acreditam no que fazem. Os perfis vêm acompanhados de outros dois textos. No primeiro, o jornalista e professor Paulo Paniago defende uma revolução no modo de encarar o jornalismo. Por fim, uma entrevista com Ricardo Noblat instiga importantes reflexões sobre os rumos da profissão.

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Ana Beatriz Magno

Quer deixar a jornalista Ana Beatriz Magno feliz que nem ‘pinto no lixo’? Dê a ela uma política pública mal operada, um político inescrupuloso, uma investigação feita pelo Ministério Público ou por algum órgão da sociedade civil e, por fim, um cidadão ou um grupo de pessoas se ferrando. Disso, surge um jornalismo que ela qualifica de social, capaz de mostrar o retrato de um Brasil que mistura dor, incompetência, irresponsabilidade e tristeza.

Bia, como é mais conhecida nas redações, já cobriu Congresso Nacional, Palácio do Planalto, buraco de rua. Mas é contando histórias que, na visão dela, podem ajudar a mudar o país, que o seu papel como jornalista fica claro. ‘Estou nessa profissão para revelar uma realidade que está aqui do lado, a um palmo de distância. Não é para outra coisa. As histórias que despertam a necessidade de mudar este país são cotidianas, visíveis. Basta a gente querer contá-las’, defende.

O idealismo dos tempos de integrante do movimento estudantil, quando acreditava que o jornalismo mudaria o mundo, perdeu força. Mas Bia continua fiel à crença de que o seu trabalho serve para sacudir a poeira. Ela insiste: não é preciso descobrir coisas sensacionais, como desvendar o momento em que o presidente saqueou o Banco Central às três horas da manhã de um domingo de carnaval ou conseguir tirar aquela foto reveladora. As injustiças sociais estão aí, mais acessíveis do que se imagina.

‘Olhar com largura’

Reportagem, para Bia, tem de provocar o leitor. Se quem a lê não for instigado a refletir sobre o assunto abordado, algo está errado. ‘Jornalismo não é poesia. Não há maciez no Jornalismo’, afirma, ao sair em defesa de temas duros e investigativos, que não são necessariamente os das CPIs políticas.

O resultado do trabalho de Bia pode ser encontrado nas páginas da editoria de Cidades ou pelo menos três vezes ao ano em cadernos especiais do Correio Braziliense. Alguns temas estão insistentemente na mira da jornalista, como a realidade de crianças e mulheres brasileiras, o sistema de saúde público e o drama da educação. Ela costuma apostar em problemas já considerados desgastados, ou mesmo vistos como sem solução. Põe às claras todas as vertentes que ajudam a contar determinada história e, assim, cutuca quem precisa ser cutucado.

Bia não se contenta em ficar alguns minutos num gabinete de político, pegar algumas declarações rápidas, voltar para a redação e escrever a matéria do dia seguinte. Ela assume ser fissurada por apuração. Busca, rigorosamente, todas as informações que podem ajudá-la de alguma forma. ‘É o que Mino Carta (com quem trabalhou na Isto É) chama de matérias-ônibus: colocar todos os agentes de determinado assunto num mesmo lugar para você poder olhar com largura’, explica.

O gosto pela rua

Gente é peça fundamental nas histórias de Bia. Para ela, falar em jornalismo onde o ser humano tem visibilidade parece bastante óbvio. ‘Jornalismo que não é humano é o quê? Feito por cachorros, ratos, sofás? É difícil uma história existir, a não ser na época dos dinossauros, sem o ser humano’, provoca. ‘Se o jornalista gastasse o esforço que faz para tirar o ser humano de suas histórias e deixasse o ser humano onde ele está, seria muito mais prático para ele mesmo’, completa.

Bia acredita que há espaço para todos os tipos de bom jornalismo nas redações. Ela é a favor da diversidade de estilos. Mas defende que o investimento no jornalismo comprometido com mudanças sociais pode e deve ser feito em todas as áreas. De acordo com ela, ele não é um jornalismo temático, não pede lugar específico ou uma editoria só para ele.

Ela confessa que nunca se interessou muito pela cobertura do hard news. Não consegue ouvir por muito tempo o blá-blá-blá de políticos. Quando era obrigada a passar o dia no Congresso, voltava para a redação atordoada. Foi assim que começou a perceber o que de fato queria com o jornalismo. Interessava-lhe, sim, ouvir os deputados e senadores, mas também sentia necessidade de ver as questões sociais de maneira mais concreta e real.

Em vez de se acomodar nos gabinetes, Bia tomou gosto pela rua, no sentido mais amplo da palavra. Até nas redações não gostava mais de ficar. Passou a amar ainda mais a profissão e a ser jornalista 24 horas por dia. ‘Se a vida está na rua e o jornalismo trata da vida, então o jornalismo também está na rua’, decifra.

Poder de mudança social

Focada no trabalho que exerce, prefere ser discreta quando fala da própria trajetória. Não faz lamúria, não valoriza as dificuldades que enfrentou para se estabelecer no jornal, nada disso. Para ela, há uma parte do sucesso na profissão que depende exclusivamente do jornalista. Quando sugere uma pauta, sai para apurar ou se senta para escrever, crê que o repórter tem sempre duas opções: fazer bem feito ou fazer mal feito.

‘A gente sempre coloca a culpa nos outros, no jornal, no editor, no burocrata, no veículo, na grande imprensa. Como assim? É grande imprensa mesmo. A redação sempre foi lugar de burocracia. Sempre houve editor insensível, sempre houve falta de dinheiro. Não gosto de ficar: ‘Ah, foi uma coisa difícil, briguei com o chefe… Nada impede o jornalista de fazer um bom jornalismo’, acredita.

Com mais de dez prêmios na bagagem, Bia é uma das repórteres mais respeitadas do Correio Braziliense e reconhecida nacionalmente pelo tipo de trabalho que faz. Defensora de que o jornalismo não é ‘clube’, ela não se incomoda com fofocas, intrigas e burburinhos. ‘Quando você percebe que o jornalismo está na rua e sabe o que quer, tudo isso fica menor’, desabafa.

É apaixonada pela profissão. Entrou na universidade com 17 anos para fazer Engenharia Elétrica. Um ano e meio depois, fez vestibular para Jornalismo e passou. Mudou porque se encantou pela possibilidade de mudança social que o jornalismo oferece. Apesar de hoje identificar poder de interferência social também na Engenharia, não se arrepende da troca.

Fascínio pela rotina

Como vinha de uma área onde o pique de estudos é muito maior do que no curso de Comunicação, Bia acabou ingressando também na Sociologia, para amenizar a falta que sentia da teoria. Quando concluiu as duas graduações, ficou dividida entre seguir carreira como jornalista e se dedicar à vida acadêmica. Chegou a ganhar uma bolsa para fazer mestrado na Bélgica, mas, depois de muita indecisão, acabou encarando as redações.

Desistiu dos estudos na Europa, mas não da universidade. Definitivamente não gosta da idéia de ficar só no mercado. Por isso sempre manteve um pé na academia. Fez disciplinas como aluna especial e, em 2005, voltou para concretizar o sonho do mestrado. Ela não simpatiza com a filosofia ‘ou se é acadêmico, ou se é jornalista’. Vê a universidade como um lugar propício para qualquer profissional parar e pensar sobre o que faz.

‘Acho a universidade envergonhada. Ela devia ser muito mais metida, sabe? Muito mais gananciosa com o mercado. Devia ir lá, pegar os caras do mercado e carregar para dentro da universidade. Mas não. A academia, que pensa o mercado, odeia o mercado. E o mercado, que dá a matéria-prima da reflexão da academia, odeia a academia. É uma conversa de maluco’, argumenta.

Na academia ou no mercado, Bia respira jornalismo. Acredita, de verdade, que essa é a melhor profissão do mundo e sente-se privilegiada por fazer o que faz. Não tem vontade de fazer outra coisa na vida, nem idealiza projetos fora do jornalismo. Admite ficar cansada com a rotina desgastante, mas, ao mesmo tempo, se diz fascinada por ela.

Cadernos de anotações

Acha que o jornalismo não existe sem indignação. E uma das coisas pelas quais sente repúdio é justamente a falta de indignação da nova geração de jornalistas. Na avaliação dela, o jornalista de hoje perdeu o gosto pela profissão, a disposição de brigar pelo que quer.

‘O problema é que, com 20 anos, o menino sonha em ter estabilidade no emprego, trabalhar pouco, não ir ao plantão. E, enfim, trabalhar pouco não tem nada a ver com jornalismo, não trabalhar no fim de semana não tem nada a ver com jornalismo. Jornalismo tem plantão, tem que trabalhar de madrugada, de segunda a segunda’, comenta.

Ela é extremamente vaidosa. Considera-se detalhista, às vezes lenta, confusa. Costuma atrasar a entrega dos cadernos especiais, tudo por causa da fissura por apuração. Se ninguém a frear, ela não sabe a hora certa de parar de buscar informações. Gasta horas e horas, noites e noites, se deliciando com as anotações.

Chega a ter atitudes que beiram o exagero. Acredite: ela passa a limpo tudo o que escreve nas dezenas de bloquinhos que gasta por matéria. Numa caixa de papelão em casa, guarda todos os cadernos de anotações. Para não se perder, elabora diários com telefones de fontes, ambientação, entrevistas, dados colhidos.

Crise de identidade

O momento de escrever é difícil. ‘Nada em mim flui naturalmente’, confessa. A produção dos textos causa angústia, quase sofrimento. Na hora, ela gosta de lembrar que tem um leitor. Um leitor que não sabe onde está nem quem é, muito menos se vai mesmo lê-la. Mas sabe que tem. E que ele não é a fonte ou o colega de profissão.

A conquista desse leitor, para Bia, não se dá por meio do texto em si. Talvez por isso ela valorize tanto a apuração e se angustie tanto na hora de escrever. ‘Seduzir o leitor não se trata de uma coisa cabotina. Eu tenho que seduzi-lo pela realidade que apurei, e não com um texto barroco, cheio de beletrismo. Esse é o mistério’, diz.

Mesmo sem beletrismo, consegue transmitir emoção em suas histórias. Para ela, isso é simples de explicar. O segredo, afirma, é não forçar a emoção. ‘Basta deixá-la onde está. A emoção está na realidade. Então é só contar a realidade’, deduz.

Ana Beatriz Magno custa a acreditar na tão falada crise da reportagem. Ela avalia que as dificuldades enfrentadas pelos jornalistas que há anos faziam grandes reportagens se mantêm. E que a estrutura burocrática das redações é a mesma. O que mudou, na opinião dela, foi a postura do repórter. Bia chegou à conclusão de que há, sim, uma crise, mas de identidade. Uma crise da qual somente o próprio jornalista pode se livrar.

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Marcelo Abreu

Ele é contra tudo aquilo que se ensina nas escolas de Jornalismo. Durante os quatro anos do curso, causou polêmica, liderou discussões acaloradas sobre a função do jornalista e, principalmente, questionou a forma considerada correta de escrever uma matéria. Pelo espírito crítico destoante, tirou muitos professores do sério.

Cansado de ouvir que tinha idéias nada convencionais, pensou em desistir da carreira. Quase 20 anos após receber o canudo, ele não se intimida ao reforçar as críticas à academia, hoje ainda mais duras. Diz que, da faculdade, não levou nada. Nem mesmo um livro tem de recordação dos tempos de universitário.

Ele não gosta de jornalistas e diz que a classe é repleta de elitistas. Conta nos dedos os amigos jornalistas que possui. E avisa logo que não quer ter mais. Não freqüenta os happy hours depois do expediente nem participa das rodas de conversa na redação. É avesso a cobrir assuntos com o restante da imprensa e não suporta coletivas. Por quê? Por causa dos jornalistas.

Repórter especial do Correio Braziliense, Marcelo Abreu é odiado por muitos acadêmicos, mal falado por outros muitos colegas de profissão, mas idolatrado pela maioria dos milhares de leitores. Suas matérias estão sempre entre as cinco mais lidas do dia. E não são raras as vezes em que elas estão no topo da lista. Os leitores procuram os textos dele e enchem a caixa de e-mails do jornalista com elogios escancarados.

‘Meu prêmio é o leitor’

Os elogios vêm de leitores fiéis. Gente que, mais do que leitor, virou fã. Assina o jornal ou o compra na banca só para ler as matérias dele. Gente que não sai de casa sem antes ler as histórias contadas por ele. ‘Você me faz até acreditar na humanidade’, diz uma dessas leitoras.

Entre os fãs do jornalista, um se destaca. Ele mesmo. Marcelo faz questão de ler todas as suas matérias quando são publicadas. Mesmo já sabendo o que vai encontrar, adora ver o próprio texto no dia seguinte estampado no jornal. ‘É um processo muito louco, eu me transponho. Não sou eu. Deixo de ser jornalista e viro leitor’, conta. Nessa ‘loucura’, chega a chorar ao se debruçar sobre as linhas que escreveu há menos de 24 horas. No choro, identifica o termômetro do próprio trabalho. ‘No dia em que eu não me emocionar mais com aquilo que eu escrevo, é hora de parar’, completa.

A leitura das próprias matérias o satisfaz. ‘Eu não leio jornal. Não vou perder tempo. O trabalho dos meus colegas não me atrai. Eu abro o jornal e nada do que está ali, rigorosamente nada, me interessa. Leio a minha matéria e isso me basta’, assume.

Apesar do aparente egocentrismo, nunca inscreveu matérias em prêmios. Para ele, o reconhecimento está nos e-mails e nas ligações que recebe ou simplesmente quando depara com alguém lendo alguma de suas histórias na rua. ‘Prêmios não me interessam. O meu prêmio é o leitor. Eu vivo do leitor, a minha emoção vem dele. Basta um e-mail, uma ligação para eu sentir que ganhei todos os prêmios da vida’, comenta.

Ler o texto até o final

O jornalismo feito por ele consiste em contar histórias. Histórias de pessoas anônimas, escondidas, esquecidas. Um jornalismo que emociona e muda vidas. Basta ver o que aconteceu com Francisco Basílio Cavalcante, o faxineiro que devolveu US$ 10 mil encontrados em um banheiro do aeroporto de Brasília. Um mês depois de ter a sua história contada, foi promovido a encarregado de serviços gerais e teve o salário triplicado.

Sim, Marcelo Abreu parece mudar vidas. Não só das pessoas cujos dramas e alegrias ele narra nas folhas do jornal. Talvez até de forma mais profunda, e também menos comensurável, muda a vida dos milhares de leitores. Suas matérias têm um alcance que nem ele mesmo pode imaginar. Fazem pessoas chorarem, sorrirem, pensarem, reviverem.

‘Isso é fantástico. Quem é que se lembra da discussão de Jader Barbalho, seja quem for, com não sei quem, há seis meses? Quem é que se lembra da discussão do presidente da Câmara com o presidente do Senado sobre o reajuste de não sei o quê? A história da dona Zezinha é muito mais importante que isso. É muito mais importante que o dossiê que amanhã pode derrubar o presidente. Eu não quero isso, isso não edifica nada’, provoca Marcelo.

Toda vez que se senta diante do computador para escrever uma história, Marcelo faz um compromisso consigo mesmo. Aquela será a melhor história que ele já contou na vida. Isso não é para fazer ninguém chorar, necessariamente. Ainda que as pessoas chorem. E muito. É para conquistar o que todo jornalista deseja: fazer com que o leitor leia o texto até o final.

O privilégio da pauta

Dessa neurose para que ninguém pare de ler suas matérias na terceira linha, surge a rebeldia em relação à teoria ensinada nas faculdades de Jornalismo. Ele, definitivamente, não quer saber de lide, sublide, pirâmide invertida. A teoria, para ele, não passa de ficção. Marcelo defende que não existe técnica para contar histórias. E, como na época de estudante, irrita-se ao tocar no assunto. ‘Como posso usar o tal lide ou ter neutralidade científica para escrever uma história? É inconcebível. Eu seria um criminoso se usasse lide nas minhas histórias. Alguém que tentar usar lide contando histórias deve ser preso’, desabafa, em tom de exagero.

Ele acredita que o ser humano é protagonista de tudo na vida. E, por isso, no jornalismo não pode ser diferente. Na opinião dele, qualquer matéria, de qualquer editoria, teria de abrir espaço para o ser humano. Não o faz, analisa, porque falta sensibilidade. E, se falta sensibilidade, não vê saída: ‘Ou o jornal se rende às histórias ou vai perder cada vez mais leitores. Há de se fazer uma revolução’, arrisca.

O jornalismo que tem como pano de fundo histórias de gente não exige investimento a mais por parte dos jornais. Exige apenas que os repórteres queiram. E que reconheçam isso como jornalismo. Exige que o jornalista goste de gente, e não apenas de números, tabelas e frases bombásticas. Exige paciência para ouvir. ‘Isso é jornalismo. Eu sou jornalista. O que falta para os meus colegas é gostar mesmo do que fazem’, diz.

Hoje ele goza de respeito e tem espaço garantido na redação. Não há uma história sugerida por ele que não vire matéria. É um jornalista pautado pelo leitor. Cerca de 50% das matérias que faz surgem de sugestões de leitores. ‘Que repórter tem esse privilégio?’, pergunta.

Poucas perguntas e muita escuta

Para chegar a esse patamar, conta que sofreu com o que considera nada além do que falta de sensibilidade. Na rápida passagem pela assessoria de imprensa do extinto Ministério da Infra-Estrutura (Minfra), como recém-formado, ouviu por diversas vezes que ali não era seu lugar. Os releases sobre o início do horário de verão não podiam começar com personagens.

Mais tarde entendeu que, de fato, ali não era seu lugar e se mandou. Conseguiu uma vaga no Correio Braziliense como revisor. Pouco depois, foi parar no Centro de Documentação do jornal, onde elaborava pequenos textos a pedido da redação. Ali, mostrou que tinha condições de avançar. Um ano depois de formado, a convite da direção, pisou pela primeira vez na redação. Era, enfim, um repórter.

Se, por um lado, o entusiasmo de escrever tomou conta do jovem jornalista, por outro ele logo percebeu que também ali encontraria resistência. ‘Eu acho que você devia escrever novelas. Jornalismo não é para você’, disse-lhe uma de suas primeiras editoras. Vieram muitas dificuldades. Muitos chefes classificaram o trabalho dele como subjornalismo, piegas demais para estar no jornal.

A situação só mudou quando Ricardo Noblat, então editor-chefe do Correio Braziliense, percebeu que as matérias de Marcelo davam leitura e começou a fazer pesquisas entre os leitores. Constatou que as historinhas dele estavam sempre entre as matérias mais lidas do dia. Chamou-o à sua sala e deu a ordem que ele precisava receber para deslanchar: ‘Faça como você sabe fazer’.

Ele obedeceu. De lá para cá, conta boas histórias, sejam elas dramáticas, alegres, inusitadas. Vê histórias onde menos se espera. Onde outros jornalistas não vêem. Entra nas casas das pessoas, pede um cafezinho, senta-se no sofá e se dispõe a ouvir. As matérias que dão pico de leitura no dia seguinte nascem de uma boa conversa, de poucas perguntas e muita escuta.

‘Voltar a ler jornal’

Sem qualquer formação psicológica ou psicanalítica, diz, com toda a convicção do mundo, que conhece gente como ninguém. ‘Sou especialista em gente’, reconhece. Basta um telefonema, um olhar, poucas palavras, para que ele comece a desenvolver uma história cheia de detalhes, rica em emoção.

Marcelo Abreu tem consciência de que os donos de jornais são pragmáticos e que, acima de tudo, o respeitam porque descobriram que suas matérias dão leitura. Sabe também que suas matérias são motivos de discussões ferrenhas nas faculdades de Jornalismo. Já se incomodou muito com tudo isso. Hoje, não mais.

E não se incomoda mais porque também sabe o que os leitores acham do seu trabalho. Isso, para ele, basta. Ele está tão consciente do papel que exerce na vida desses leitores que não tem mais medo de nada. ‘Não sei se o que faço é mais ou menos jornalismo. Só sei que é jornalismo e que esse jornalismo as pessoas querem dentro de suas casas. Quer queiram, quer não, vão ter de me aturar’, desabafa.

Ele faz planos de deixar o jornal. Não o jornalismo. Vai continuar fazendo o que sabe fazer: contar histórias. Em breve, um livro reunirá as melhores delas. Longe da redação, ele desejará uma única coisa: que a revolução da qual participou tenha continuidade. ‘Quero voltar a ler jornal’, conclui.

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Marcelo Canellas

Marcelo Canellas pertence ao quadro de jornalistas da TV Globo. Mas seu estilo foge ao padrão da emissora. E isso, longe de ser um problema, o coloca em posição de destaque. Ele é a materialização do ensinamento de um dos ícones do jornalismo, Cláudio Abramo, de que ‘a ética do jornalista é a ética do cidadão’. É natural que transforme o que o incomoda como cidadão em matéria-prima do seu oficio.

Para ele, o Brasil é hoje uma democracia baseada na concentração de renda, de terras e de oportunidades, onde a Constituição não é respeitada e a desigualdade encontra terreno fértil. Um país que, apesar de todas as potencialidades humanas e físicas absolutamente privilegiadas, escolheu um modelo de desenvolvimento excludente, que não se preocupa com a realidade das pessoas.

‘O Brasil não é pior nem melhor do que a democracia que ele construiu. Existe hoje uma corrida na qual já se sabe quem são os vencedores. E cinicamente se diz que todos têm oportunidade. Vivemos numa sociedade profundamente desigual. Quando as leis são aplicadas, percebemos que uns são mais iguais que outros’, discorre.

Ele não almeja a carreira política. O único cargo que deseja ocupar por toda a vida é o de repórter. Nunca deixou para trás o idealismo de que o jornalismo poderia ser capaz de mudar o mundo, e ainda acredita nisso. ‘A profissão serve para mostrar o que está oculto, escondido, para raspar o verniz e tirar a casca’, acredita.

O problema das barragens

Saber o que quer desde cedo o ajudou a dar passos largos também precocemente. Aos 24 anos, um ano depois de formado, já era repórter especial, função que exerce até hoje. A relação com os chefes, apesar do respeito mútuo, sempre foi tensa. Entendimentos diferentes, disputa de argumentos e choques de idéias.

‘Cada um tem sua prerrogativa. A minha é a de propor e retratar um fato da maneira como manda o figurino. A da empresa é veicular ou não. Essa é a regra do jogo. Às vezes consigo emplacar, às vezes não. Mas isso não significa que eu tenha de abdicar das minhas convicções e adivinhar a linha que aquela matéria tem que seguir porque a empresa acha tal coisa’, comenta.

Canellas revela que já teve reportagens barradas. Há 15 anos, uma edição do Globo Repórter sobre reforma agrária, produzida em cerca de dois meses, não foi ao ar porque, na avaliação da chefia, o conteúdo não estava equilibrado. Ele discordou do argumento, ficou chateado, mas resolveu dar continuidade ao trabalho. ‘É assim que funciona. O tipo de imprensa que temos hoje é reflexo da nossa sociedade’, resume.

Entre os assuntos que ele não tem carta branca para tocar, mas ainda deseja abordar com profundidade, está a situação dos milhões de brasileiros atingidos pela construção de barragens. Como o país precisa do investimento em energia para crescer, é difícil falar do problema na mídia. Há anos tenta, sem sucesso, convencer a chefia da importância de tratar desse tema.

Criatividade e os elementos da TV

As dificuldades não o tiram do foco. Canellas conta que nunca foi obrigado a fazer matérias que não quisesse e que jamais foi ameaçado de demissão por causa de seu estilo. Deixa claro que não faz política em suas reportagens. Acredita piamente na objetividade, mas discorda da imparcialidade e neutralidade jornalísticas. Na opinião dele, o jornalista precisa e deve assumir uma posição. No entanto, condena o que classifica como ‘falso esquerdismo’, ou seja, ‘quando se usa do jornalismo para defender uma causa’.

Diz que o trabalho que faz é jornalismo acima de tudo. Sente-se lisonjeado quando consideram seu texto poético ou literário, mas não gosta de fugir da raia. O que faz é jornalismo e ponto. Ao falar em jornalismo social ou Novo Jornalismo, é cauteloso. Para ele, se partir do princípio de que a profissão trata das contradições da vida, a nomenclatura pouco importa.

Canellas não tem medo da teoria. É a favor de que o jornalista tenha subsídios teóricos para fazer a leitura da realidade e refletir sobre a prática. ‘É uma questão de humildade intelectual. A não ser que a pessoa seja um moleque de recados, papagaio, alguém que simplesmente reproduza alguma coisa’, comenta. A teoria, para ele, está nos livros, mas também na formação ética e nas experiências pessoais do profissional.

Para fugir do padrão da TV Globo, não lhe bastou apenas vontade. Ele teve de aprender a dominar a língua e a linguagem da televisão, com todas as suas especificidades. Nas escolas de Jornalismo, o texto dele hoje é tido como referência, bem articulado de maneira criativa com os elementos narrativos da TV, como imagem, som, ruídos, ritmo e musicalidade.

Assuntos delicados

Com 20 anos de profissão, ele não gasta mais de 20 minutos para escrever uma matéria. Conta que um dos segredos para escrever bem é abusar da simplicidade. ‘Não se pode fazer poesia do jornalismo. Reportagem não é poema. Acho enfadonho e irritante um texto que seja excessivamente meloso. O rebuscamento e a literatice, ao contrário do que às vezes a pessoa que está escrevendo pensa, empobrece, em vez de enriquecer’, argumenta.

Para ser simples, porém não simplório, indica a necessidade de deixar a emoção aflorar. Reconhece que utiliza elementos comuns ao jornalismo e à literatura, como o uso de metáforas, comparações, pausas, mas considera a vontade de contar uma boa história como diferencial do seu trabalho. Ao longo dos anos, amadureceu a maneira de escrever, familiarizou-se com o bom senso, estabeleceu um estilo pessoal e hoje é profundamente respeitado dentro da emissora.

Sejam matérias de comportamento, cultura ou ligadas aos direitos sociais e humanos, quando ele se propõe a contar uma história, a chefia já tem idéia do resultado. ‘No começo, foi um problema. Afinal de contas, era um foca que estava escrevendo diferente de como manda o manual. Agora eles não reclamam, aceitam’, relata o jornalista.

Canellas é responsável por diversas matérias premiadas que foram exibidas no Jornal Nacional. Entre elas, destacam-se as séries sobre fome no Brasil, sobre o cerrado e sobre a população ribeirinha da Amazônia. Já tocou em assuntos delicados, como trabalho escravo, prostituição infantil e concentração fundiária, mas também deixou o telejornal mais leve, ao mostrar os bastidores do Festival de Cinema de Brasília, por exemplo. ‘Há momentos em que a gente precisa dar uma sacudida e há outros em que as pessoas merecem ver que nem tudo está perdido’, avalia.

Sonho da grande reportagem

Independentemente do assunto abordado, procura sempre estar disposto a revisar as próprias certezas e convicções. Não gosta de encarar o jornalista como alguém que se apresenta como perguntador diante dos entrevistados. Para ele, o ideal é se colocar como interlocutor, como alguém que está ali para ouvir o que a pessoa tem a dizer. Quando trata de temas espinhosos, de dramas da vida humana, a regra é o respeito profundo à dignidade das pessoas.

Uma das técnicas utilizadas por ele é chegar às residências dos entrevistados com o equipamento ligado. ‘Naturalmente a pessoa leva um susto, mas à medida que eu vou conversando, ela vai absorvendo o impacto e percebendo que quem está ali não é uma máquina, uma empresa ou a TV Globo, mas, sim, uma pessoa igual a ela, que quer ouvir a história dela para depois contá-la’, explica.

O jornalista diz que durante toda a carreira não lembra de ter sido acusado de sensacionalista uma vez sequer. Para conseguir captar aspectos extraordinários dos entrevistados, ele afirma que basta abandonar a postura de inquisidor. A pré-produção das matérias, garante, é muito rudimentar. Isso porque gosta de fazer da entrevista um bate-papo e, assim, ser surpreendido quando vai a campo.

Depois das gravações, o material é cuidadosamente revisto e decupado. Nesse processo, a reportagem já vai sendo desenhada na cabeça do jornalista. Feito isso, é só sentar e escrever. Comumente, edita as próprias matérias.

O gaúcho de Santa Maria sempre foi muito tímido. Mas, desde criança, admirava o jornalismo. O pai, agrônomo, viajava muito pelo Rio de Grande Sul e, de presente, levava ao filho um jornal das cidades por onde passava. A coleção chegou a ter quase 200 títulos diferentes.

Em 1987, Marcelo Canellas formou-se pela Universidade Federal de Santa Maria e resolveu fazer teste para o único emprego que existia na cidade, na RBS, filiada da Rede Globo com central em Porto Alegre, que estava com uma vaga aberta. Até então, não pensava em trabalhar em TV. Durante os quatro anos do curso, assim como a maioria dos colegas de faculdade, sonhou em fazer grandes reportagens para jornais impressos.

Refúgio num sítio

Fez o teste e passou. Nos seis meses em que permaneceu na empresa, atuou como apresentador, repórter, editor, produtor. Buscou aproveitar toda a experiência que uma emissora de TV numa cidade pequena tem para oferecer e acabou se apaixonando pela televisão. A contratação pela TV Globo foi rápida. Teve de mudar-se para o Rio de Janeiro e virou repórter especial.

Atribui a guinada tão instantânea na carreira que tinha acabado de começar à postura crítica que assumiu desde o início. ‘Uma das principais prerrogativas da função de repórter é tentar interferir na agenda de cobertura dos lugares onde trabalha. Engana-se quem acha que sendo vaca de presépio ou moleque de recado vai crescer na profissão’, diz.

Casado com a igualmente jornalista Márcia Canellas e pai de dois filhos, não se considera escravo da profissão. Atualmente mora em Brasília, e tem um escritório particular, onde passa a maior parte do tempo quando não está na redação. Nos finais de semana, refugia-se com a família em um pequeno sítio, em Sobradinho (DF), local propício para manter viva a origem interiorana.

A busca do bem comum

Além das matérias e séries de reportagens produzidas para a TV Globo, Canellas escreve crônicas para o Diário de Santa Maria e para outro pequeno jornal de Ribeirão Preto (SP), onde trabalhou durante uma rápida passagem pela EPTV, também filiada da Globo.

Em 2006, percorreu dez universidades brasileiras para dar palestras. Entre os estudantes, é visto como ídolo. Uma comunidade dedicada a ele no site de relacionamentos Orkut tinha, em abril de 2007, 168 integrantes. ‘Morro de vergonha disso. Mas acho bacana’, confessa.

Com uma situação estável dentro da maior rede de televisão do país, Canellas diz ter hoje ainda mais prazer pelo jornalismo do que quando iniciou a carreira. ‘O que cansa é a batalha para interferir na agenda de cobertura, o enfretamento, convencer de que certos assuntos devem estar na agenda. Isso é o que dói’, desabafa.

Ele defende uma mudança total no modelo de desenvolvimento do país. Só assim, acredita, poderá tornar-se possível o sonho de uma sociedade construída com base na partilha e na busca do bem comum. ‘Enquanto essa situação de desigualdade persistir em nosso país, estarei insistindo para tentar mostrar isso’, avisa.

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José Rezende Júnior

José Rezende Júnior é prova de que a literatura e o jornalismo não são excludentes. Cada um tem seu espaço bem definido, é verdade. E ele sabe disso. Tanto é que abandonou a carreira de repórter para virar exclusivamente escritor. Mas nada impede que em algum momento os dois universos se relacionem. Assumidamente jornalista literário, Rezende, por onde passou, deixou claro que era possível fugir do convencional sem deixar de fazer bom jornalismo.

Apenas contando histórias da maneira que achava que deveriam ser contadas, arriscou muitas esquisitices que deram certo. Relatou fatos aparentemente banais, entrevistou gente que, para muitos, não teria muito a acrescentar. Sem muito mistério, fez um jornalismo instigante, ao explorar o ser humano e a complexidade da vida.

Desde menino, queria contar histórias. Nasceu e morou até os 14 anos em Aimorés, interior de Minas Gerais. Ali, as professoras chegavam a duvidar de que fosse ele o autor das redações. Eram boas demais para terem sido escritas por alguém tão jovem. Nos contos e nas poesias, não gostava de deixar nada explícito. Jogava alguns elementos para que o leitor descobrisse a essência da história e os sentimentos que ela transmitia.

Talvez sua veia artística carregue um componente mineiro. O pai era um grande contador de causos, daí o seu interesse pela narrativa oral. Ainda antes de sua mudança para Belo Horizonte, onde cursou o ensino médio e a faculdade, viveu momentos fascinantes ao debruçar-se sobre clássicos como Cem Anos de Solidão, Dom Quixote, Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. Nas horas vagas, assistia aos pesados filmes de Ingmar Bergman.

Postura mais humana

Movido pelo fascínio de ler e escrever, resolveu fazer Jornalismo. Durante o curso, convenceu-se que a profissão poderia ser uma importante ferramenta para mudar a realidade social do país. Para fazer o jornal-laboratório da faculdade, acabou conhecendo de perto os problemas da periferia da capital mineira. Encantou-se ainda mais com a profissão ao constatar a possibilidade de fazer do jornalismo um canal de comunicação entre o pessoal da periferia e as autoridades.

O ponto alto da carreira viria a surgir em Brasília, dez anos depois de se formar. Foi no Correio Braziliense que ele deu vazão à sua criatividade. Com liberdade total para escrever, deslanchou. Começou a fazer aquilo que sempre quis e soube fazer: contar histórias de maneira atraente.

‘Se fosse para fazer um texto convencional, eu faria. Mas não teria o mesmo impacto nem a mesma força. Os recursos ficcionais e a estrutura narrativa da literatura ajudam a contar a história de uma forma que eu acho mais eficiente. As coisas não são cartesianas, ‘É pão, pão, queijo, queijo, é isso, aconteceu isso e tal’. O seu imaginário, o imaginário do personagem, a emoção, tudo isso conta. As pessoas são assim’, comenta.

Ele ousou, foi atrevido. Começou uma reportagem relatando, de maneira sutil, um dos sonhos de Paulinho, um rapaz que matou a mãe a facadas sem explicação. Fez uma adaptação de Grande Sertão Veredas ao contar a história de seu Manuelzão. Em meio à objetividade que o ofício o obrigava a ter, preocupava-se em se aproximar dos entrevistados com uma postura mais humana.

Tristeza e dor se impõem

‘Se você perde a capacidade de se surpreender, de se assustar, de ficar perplexo, não é nem só uma questão de não estar mais apto para exercer o jornalismo da maneira que eu acho que ele deve ser exercido; você já é um ser humano que está indo ladeira abaixo. Se você já viu tudo, não se surpreende nem se assusta mais com nada, então seu tempo já passou, você está só cumprindo tabela’, defende.

Rezende diz que o bom repórter é aquele disposto a ouvir, a aprender e a entender que a maneira como homens simples encaram a vida pode ensinar coisas muito mais valiosas do que anos de estudos e profissão.

‘Já me perguntaram como manter a perplexidade numa matéria sobre jardim, por exemplo. Os jardins podem ser iguais, mas a maneira como a dona Margarida lida com o jardim dela pode ser diferente. Mesmo que não seja uma coisa complexa e inovadora para mim, pode ser para aquela pessoa de quem vou contar a história’, exemplifica.

Por tratar da vida e do ser humano, o jornalismo nem sempre aborda histórias agradáveis. Durante os sete anos em que esteve no Correio, dedicou-se também a produzir séries policiais. Descreveu, em detalhes, crimes bárbaros e trágicos. Assim, deixou muitos leitores zonzos, desconcertados.

Ele não se incomoda de ser acusado de sensacionalista, desde que tenha a oportunidade de se defender. Diz que, nesses anos como repórter, não se sentou diante do computador com a intenção de escrever coisas mórbidas, que levariam os leitores ao sofrimento. Mas reconhece que, quando se trata de pessoas que vivem em situação limite, é difícil não fazer assim. A tristeza e a dor se impõem.

Mais verdadeiro e jornalístico

‘Minha mãe (falecida em dezembro de 2006) só gostava de coisas alegres, de finais felizes. Ela me dizia: ‘A vida já é tão amarga, para quê a gente vai buscar mais isso?’ Talvez estivesse certa. Mas eu não consigo ver assim. Às vezes a vida é tão ruim que tenho quase que o compromisso de escrever e refletir sobre isso. Eu não estou interessado em fazer reportagem para levantar o astral das pessoas. Acredito na força do ser humano, na sinceridade, na bondade, na generosidade, mas acredito também… sabe? Em coisas que, se Deus existir, às vezes Ele é muito mau, muito cruel. Eu vejo coisas acontecerem que não me confortam’, desabafa.

Contar a história como ela é, com tudo que ela tem de bonito, de alegre, de triste, de cruel. ‘Claro que eu gostaria que acontecessem somente coisas boas, mas não é possível’, ressalta. Nos anos em que contou histórias reais, Rezende buscou ser fiel às pessoas que ouviu, aos cheiros que sentiu, às impressões que teve. Seus principais compromissos eram com os personagens das histórias e com a busca exaustiva da verdade. ‘Nunca se consegue captar todas as nuances. Sou humilde para dizer que busquei sempre a verdade, mas nem sempre a achei’, confessa.

Só depois que abandonou a carreira de repórter foi que ele conseguiu enxergar o próprio trabalho como jornalismo literário. Reconhece que não é fácil conciliar os dois campos, justamente porque não se pode perder de vista os fundamentos do jornalismo. Há uma história a ser contada, e essa história é real. Não há espaço para ficção, para invenções. É preciso relatar o que de fato se viu e apurou.

O desafio do jornalista literário é não deixar que um dos dois universos atropele o outro. Rezende defende que, em reportagens, a literatura pura e simplesmente não tem espaço, mas os seus elementos podem estar presentes. E isso, acrescenta ele, não é para deixar o texto mais bonitinho. Serve para torná-lo mais verdadeiro e mais jornalístico.

A credibilidade das tentativas

Os limites são tênues. Ele não tem receita mágica. É, antes de tudo, um fervoroso defensor do bom senso. ‘Tudo bem, você tem a regra. Mas se você apresenta uma solução que é melhor do que a regra, é uma burrice você não aceitar’, comenta, ao relembrar casos em que seu texto foi alterado por não estar nos padrões exigidos pelo veículo em que trabalhava.

Em um deles, uma matéria sobre o ‘Pacotão’, tradicional bloco de rua do carnaval de Brasília, o texto quase não foi publicado porque, na avaliação dos editores, não possuía lide, algo que Rezende nem gosta de assim conceituar. A técnica dos textos que escreve não está sistematizada em sua cabeça. Ele sabe que precisa transmitir a essência do fato e que não pode enrolar muito o leitor. Mas o assunto da matéria, as entrevistas que fez e as sensações que teve determinam como se dará a estrutura narrativa.

Ele conta que só foi entender a lógica da maneira como escrevia quando começou a dar oficinas sobre texto jornalístico. Ensinando como fazia, descobriu pequenos segredos e aprendeu muito mais sobre si. Não existe um ‘método José Rezende Júnior’ de escrever. No entanto, há dicas sustentadas na credibilidade de quem já fez diversas tentativas.

‘O que pude fazer, eu fiz’

Os críticos do jornalismo literário não gostam da idéia de o repórter tentar transcrever sentimentos e sensações dos entrevistados. Consideram um risco. Rezende não concorda. E, para ele, o motivo é simples. ‘Como é que eu sei o que a pessoa pensou? Uai, porque eu perguntei a ela. Eu perguntei: ‘O que é que você pensou naquela hora’? E depois perguntei de novo, e perguntei uma terceira vez para ver se a resposta era coerente, se ela não estava mentindo’, conta.

Em 2001, ele saiu do Correio Braziliense, onde conquistou espaço e reconhecimento, e deixou de ser jornalista. Estava estressado, fisicamente cansado da rotina, dos plantões no fim de semana, cansado intelectualmente e sem tempo para realizar um de seus maiores sonhos: ser escritor. Não queria morrer antes de escrever um livro. O primeiro, um conjunto de crônicas, já está nas livrarias.

Acostumado a contar histórias reais, sentia falta de criar histórias. Pediu demissão e não esconde que foi doloroso abrir mão do jornalismo. ‘Está comprovado que eu fiz a escolha certa. Vou em frente. Publiquei um livro e vou publicar outros’, afirma, com autoridade.

Deixou a profissão sem mágoas ou decepções. O idealismo ainda vivo nos pensamentos prega que o jornalismo existe para fazer as pessoas refletirem, para fazer o mundo avançar. Com todas as histórias que contou, acha que lançou poucas sementes. Porém, diz que se dá por satisfeito se seus textos mudaram o ponto de vista de ao menos uma pessoa. ‘Eu só posso dizer que fiz a minha parte. Fiz muito, muito, muito pouco, mas o que eu pude fazer, eu fiz’, diz.

Paulo Paniago

O jornalismo que não se contenta em somente dar a notícia, que busca uma abordagem mais humana dos fatos e dos personagens, seria mais eficaz do que o convencional? Paulo Paniago, jornalista, professor e estudioso da linguagem literária, arrisca dizer que sim. Para ele, os repórteres têm se esquecido de que o jornalista deveria viver da ambição de explicar a experiência humana. Portanto, usar uma técnica literária, descrever sensações, emoções, tudo isso seria, sim, mais jornalismo.

A revista norte-americana New Yorker, referência em jornalismo literário, é o tema de sua tese de doutorado. Ele conta que, ao contrário do que ocorre atualmente com a maioria dos jornais impressos em todo o mundo, o lucro e a vendagem da publicação só aumentaram nos últimos anos, o que espanta qualquer possibilidade de crise.

Para o especialista, o jornalismo impresso não tem mais condições de concorrer com a velocidade da informação transmitida por outros meios como o rádio, a televisão e, principalmente, a internet. Nos Estados Unidos, relata, muitos donos de jornais já aceitaram essa idéia e mudaram a estrutura das redações.

Mais tempo e mais dinheiro

Em alguns periódicos norte-americanos, por exemplo, duas equipes são enviadas para fazer a cobertura do mesmo acontecimento. Uma se encarrega de transmitir a notícia da maneira mais rápida possível para a redação, enquanto a outra, sem pressa, se aprofunda no tema e prepara um material especial a ser publicado posteriormente.

No Brasil, Paniago acredita que os donos de jornais continuam ignorando o que as pesquisas indicam. Ele desafia o leitor a encontrar novidades nas edições diárias de qualquer jornal brasileiro. ‘Não vai encontrar. As notícias são as mesmas’, adianta. O fim da crise, defende ele, depende diretamente de os responsáveis pelos jornais entenderem que é preciso oferecer ao leitor algo mais do que as velhas manchetes políticas e econômicas.

Na avaliação do professor, os jornais estão encurralados. Mais cedo ou mais tarde, terão de ceder espaço ao jornalismo literário. ‘Onde houver inteligência, haverá lugar para jornalistas que não querem conversar cinco minutos com uma fonte por telefone, sentar diante do computador e escrever um texto para fechar buraco na página do jornal’, comenta.

No entanto, além da mudança de mentalidade dos donos dos jornais, ele aponta a necessidade de os próprios repórteres ousarem fazer algo diferente do que se estabeleceu como ‘certo’. Avalia que falta iniciativa por parte dos jornalistas em convencer os editores de que vale a pena escrever um texto mais longo, rico em detalhes, que requer mais tempo e, muitas vezes, mais dinheiro para ser produzido.

Desfazer mitos e destruir estereótipos

A linguagem literária encontra barreiras em todos os níveis do jornalismo. A maioria a encara como pseudo-jornalismo e não gosta da idéia de inserir muita emoção no texto. Mais que isso, sente-se incomodada pelo sucesso alcançado pelos colegas de profissão que seguem por esse caminho. ‘É todo mundo muito suscetível no jornalismo, com o ego muito inflamado. É claro que o jornal vai investir num cara talentoso que dá prêmios’, comenta.

O problema principal, para o especialista, é que o jornalismo brasileiro se acostumou a associar produtividade com quantidade, ou seja, se o repórter não escreve uma matéria todos os dias, por mais que ela não seja de boa qualidade, ele não está trabalhando como deveria. ‘O sujeito que escreve uma matéria por dia é o que produz. Mas o que escreve uma por mês, mesmo sendo ‘a’ matéria, não produz tanto assim. E aí? No final das contas qual matéria será lembrada?’, provoca.

Em sua opinião, passou da hora de quebrar certos dogmas do jornalismo. Para ele, é preciso buscar sem medo o refinamento nas técnicas de texto e apuração, mesmo que isso fuja às regras do jornalismo convencional. ‘Vai questionar só por que não está seguindo a técnica da pirâmide invertida? Ah, paciência. Se foi eficaz, deu o recado, qual o problema? Essa não é a função do jornalismo?’, acrescenta.

A linguagem literária prima por desfazer mitos e destruir estereótipos. Isso sem abrir mão dos fundamentos da profissão. ‘Os dados estão ali, o ‘dever de casa’ do jornalista está ali, ele apurou tudo direitinho, mas por que não fazer um texto bacana, inteligente, bom de ler?’, insiste Paniago, que também é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília e foi subeditor do suplemento semanal de idéias ‘Pensar’ do Correio Braziliense entre 2001 e 2003.

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Ricardo Noblat

O Correio Braziliense, principal jornal do Distrito Federal e um dos mais importantes do país, viveu um período histórico entre 2000 e 2002, quando a reforma iniciada em fevereiro de 1994 havia chegado ao seu auge. A equipe liderada pelo jornalista Ricardo Noblat protagonizou uma verdadeira revolução no modo de fazer o jornal. Ele passou a ser planejado com antecedência: a importância da notícia é que decidia o espaço que cada matéria receberia, novos conteúdos começaram a ser produzidos e as grandes reportagens voltaram a ser incentivadas.

Noblat, hoje mantenedor de um blog que leva seu nome, tem papel fundamental na trajetória de três dos quatro perfilados desta reportagem. Sem o apoio do jornalista, é certo que Ana Beatriz Magno, Marcelo Abreu e José Rezende Júnior – contemporâneos dessa época de mudanças no jornal – teriam tido mais dificuldade para conquistar o espaço que conquistaram. Editor-chefe à época, Noblat demonstrou sensibilidade ao apostar no jeito diferente de fazer jornalismo desses repórteres.

Nesta entrevista, ele reforça o conceito de jornalismo como a arte de contar histórias de gente, diz que falta coragem por parte dos responsáveis pelas redações para inovar e arrisca opinar que os jornais acabarão, mais cedo ou mais tarde, virando relíquias.

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Por que você apostou na Ana Beatriz Magno, no Marcelo Abreu, no José Rezende Júnior e no jornalismo que eles fazem?

Ricardo Noblat – O jornalismo não tem muita complicação, a gente é que complica. Jornalismo não é nada mais do que contar histórias que tenham pessoas. Ninguém gosta de história contada sem alma, sem sangue, sem gente. No caso dos três, apostei por acreditar nisso e justamente porque eles sabem contar histórias. Eles apenas fazem muito bem o serviço deles e a maioria dos outros faz mal. É só por isso.

Mas, querendo ou não, como editor-chefe, você precisava ter uma visão administrativa. E essas três pessoas vendem jornal.

O jornalismo que conta histórias de gente interessa ao público e, por tabela, ajuda a vender jornal. Mas ele também é muito mais caro. É mais barato você meter a mão no telefone, ouvir as pessoas e escrever sua matéria. Então poderia ser algo que não me interessasse tanto. Por um lado, ajuda a vender jornal, mas, por outro, é mais caro.

A aposta, então, não era apenas movida por uma visão pragmática de editor-chefe?

R. N. – Não, não. Ou as pessoas têm prazer de ler ou não têm. Esse tipo de jornalismo dá prazer. Eu imaginava que, por meio dele, poderia reter leitores ou até atrair novos, embora fosse um jornalismo mais caro. Nunca fiz a conta para saber essa relação custo-benefício.

E é justamente por que é mais caro que outros responsáveis por jornais não apostam nesse jornalismo?

R. N. – É um pouco por isso e um pouco por falta de visão da maioria deles, que não valoriza esse tipo de jornalismo.

Por quê?

R. N. – As redações foram enxugadas, estão sobrecarregadas, mal pagas e excessivamente jovens. Não se pode cobrar de um recém-formado o conhecimento que o leve a fazer coisas de qualidade extraordinária. O problema não é a juventude em si, mas sim expelir das redações pessoas mais experientes. Isso conspira contra a qualidade e ajuda a explicar por que se faz pouco esse tipo de jornalismo.

Outra coisa é questão de mentalidade mesmo. Os responsáveis por jornais até são capazes de concordar que esse tipo de jornalismo é o caminho, mas na hora de fazer não fazem porque lhes falta coragem. É preciso mexer nas formas de trabalhar, de organizar a redação. E os chefes não querem porque dá trabalho. E os repórteres também não querem porque dá trabalho, eles preferem continuar fazendo esse ‘feijão com arroz’ absolutamente sem graça que fazem.

É um comodismo nas duas pontas da cadeia?

R. N. – Vai do presidente da empresa ao repórter mais simples, que se sente inseguro quando ouve que pode abandonar o lide. Ele não foi treinado para fazer assim. Ele foi treinado para entrar na redação, alguém dizer o que ele tem de fazer e ele fazer. Os responsáveis pelos jornais não querem renovar, ninguém quer mexer em nada.

Para que serve esse tipo de jornalismo? É para deixar o jornal mais leve, para fazer os leitores se emocionarem?

R. N. – Não, é para deixar o jornal muito mais interessante e para o leitor ler uma história bem escrita e bem contada, com começo, meio e fim. Não é para ser bonitinho nem fazer graça não. É simplesmente para refletir a realidade, que é feita de histórias de pessoas. É porque não existe outra forma de contar bem uma história.

Esse jornalismo é mais jornalismo do que os outros?

R. N. – Acho que sim. É muito melhor, muito mais próximo da realidade, muito superior.

É a saída para a crise dos jornais?

R. N. – Não sei. Eu sei que, do jeito que está, os jornais estão indo para o buraco. E irão para o buraco de todo jeito. É questão de tempo.

O que é ‘ir para o buraco’?

R. N. – Eles perderão cada vez mais importância, até eventualmente chegaram ao ponto de se tornarem relíquias. Não estou dizendo que desaparecerão por completo, mas parece-me óbvio que, se sobreviverem, serão poucos. Os jornais envelheceram pelo conteúdo e começaram a ser atropelados por outras formas de comunicação. A internet disseminou a cultura de que informação é algo gratuito. As pessoas não querem mais pagar por ela.

A tendência, então, é os jornais caminharem mais para um provável desaparecimento do que para mudanças?

R. N. – Acabará havendo mudanças. Vários jornais no mundo tentam se renovar em termos de conteúdo. Mas o jornal não vive só do exemplar que vende. Ele precisa da publicidade. E o certo é que ele teve de dividir o bolo publicitário. Isso não se recupera.

Por que existe preconceito contra quem exerce esse tipo jornalismo de que estamos falando?

R. N. – Primeiro, porque o jornalista tem dificuldade de fazer esse tipo de jornalismo. Segundo, porque, aos olhos da maioria, quem o faz são privilegiados, já que viajam mais, têm mais tempo para escrever. Mas, pelo contrário, eles ralam e se arriscam mais do que quem fica no dia-a-dia fazendo ‘feijão com arroz’. O que eles fazem implica investimento maior do jornal. Se eles são mal sucedidos, o prejuízo é mais notável. Eles não são privilegiados.

Você percebe que existe uma certa divisão entre jornalistas convencionais e não-convencionais?

R. N. – Existe e ela está errada. Mas é muito pequeno o grupo dos não-convencionais. Os veículos não apostam nisso. Querem ter três ou quatro repórteres que saibam fazer isso, mas não pensam em ter a redação povoada desse tipo de gente. Não é todo assunto que se presta a esse tipo de jornalismo, mas as redações deveriam ter todo mundo capaz de fazê-lo.

O Prêmio Esso de 2006 foi para uma série de reportagens sobre histórias de amor, produzida pela jornalista Conceição Freitas, do Correio Braziliense. Isso aponta para alguma mudança desse contexto?

R. N. – Espero que sim, mas acredito que não seja uma orientação que prevalecerá daqui para frente. Vai depender da comissão julgadora.

Valeu a pena implantar um projeto ousado no Correio?

R. N. – Valeu. Não existe um jornal brasileiro que faça o que o Correio fez entre 2000 e 2002. Houve uma mudança radical e concreta na apresentação do conteúdo, no projeto gráfico. Não era para fazer moda que fizemos aquilo, era porque a gente entendia que a importância da notícia tinha de ditar o jornal. As pessoas estão interessadas em ler boas histórias. Ofereça-me uma boa história, um texto que eu não consiga parar de ler, que eu leio. É muito simples.

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Jornalista, Brasília, DF