Era o 14º Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), passaporte para as universidades públicas ou para uma bolsa do Programa Universidade Para Todos (ProUni).
Os estudantes estavam apreensivos. Não era para menos. Em passado recente, tinha havido vazamento das provas e de dados pessoais de cerca de 11,7 milhões de estudantes que tinham feito o Enem em anos anteriores.
Veio, então, a decisão da doutora Karla de Almeida Miranda Maia, que ganhou as luzes da mídia pelo entrevero havido entre a sociedade e as autoridades educacionais. Ela suspendeu o Enem em todo o país.
A sociedade há de perguntar: e quem paga a conta? De quem foi a responsabilidade de mandar imprimir uma prova com erros tão simplórios? É preciso apurar quem foi o responsável por enviar à impressão o material com erros.
Todavia a mídia tem sido muito rigorosa com os tropeços do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais ‘Anísio Teixeira’), mas excessivamente generosa ou omissa com seus próprios erros. O Inep e a mídia erram pela falta que faz um revisor. Os tropeços de um e de outra não vão nos deixar de infernizar tão cedo.
O acento e o corte
Como os erros do Inep já foram comentados ad nauseam, vamos refrescar a memória dos críticos da mídia. A conversa clara e o trato justo são os melhores detergentes.
Eis pequeno exemplo, recolhido de qualquer jornal, rádio ou televisão. As matérias começavam assim: ‘A juíza federal do Ceará Karla de Almeida Miranda Maia…’. Para, para, para! Não existe juíza federal do Ceará, nem juíza federal de qualquer outro Estado da federação. E se estivesse certo, ainda assim por que não pôr vírgula depois de Ceará? Ela pode ser juíza federal no Ceará, jamais do Ceará. Muitos jornais deram a notícia corretamente: ‘A juíza federal no Ceará, Karla de Almeida Miranda Maia…’ (alguns escreveram ‘Carla’).
Adiante prosseguiam e, comentando a ação de Oscar Costa Filho, autor da ação que pediu a anulação do Enem, designavam o procurador da República no Ceará por ‘procurador federal do Ceará’. E mais: ‘Em seu gabinete na Procuradoria Geral da República do Ceará…’ (O Globo, 14/11/2010, pág. 13). O Ceará é república independente desde quando?
Ah, a falta que faz um revisor! Esse profissional não se ocupa apenas de erros de língua portuguesa. Ocupa-se de todos os erros que podem desvirtuar um texto. Desvirtuar é perder a virtus, a força. E a palavra, bem operada, é arma mais poderosa do que a espada, o revólver, o canhão, o míssil, a bomba. Do jeito que escrevem, o leitor tem todo o direito de perguntar, de matutar em dúvidas de diversa natureza. Se erraram os cargos, não erraram mais nada? O médico que diz ao cliente rouco que ele precisa fazer uma cirurgia para extirpar um ‘polípo’ (errado) e não um ‘pólipo’ (certo), deixa o paciente em dúvida: se o doutor errou o acento, acertará o corte?
A juíza é integrante do Poder Judiciário e o procurador da República é integrante do Ministério Público, que é assim descrito no artigo 127 da Constituição:
‘O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’.
Aparência e essência
Os estudantes tinham o direito de fazer provas corretamente elaboradas. Como houve erros que lhes deram prejuízos incalculáveis, o Ministério Público agiu em defesa desses ‘interesses sociais e individuais disponíveis’, não? Pois que ainda estão disponíveis… Quando o autor dessas linhas era jovem como os atuais estudantes e precisava fazer provas, tinha pela frente um Ministério Público que ajudava a ditadura a perseguir os moços pelos simples ato de pensarem de modos diferentes dos do regime imperante. E ainda há quem tenha saudade da ditadura, valha-me Deus. Critiquemo-nos mutuamente, temos muito a melhorar nos dias que correm, mas celebremos que o fazemos em liberdade.
No âmbito estadual, atua pelo Ministério Público o promotor de Justiça da Procuradoria Geral do Estado. A chefia da instituição está a cargo do Procurador Geral de Justiça, porque não há hierarquia funcional no MP. No âmbito federal é o procurador da República, chefiado pelo procurador geral da República. O atual ocupante desse último cargo é o doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos, nascido no Ceará e formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antes de ser nomeado, foi sabatinado pelo Senado.
Não era sábado… Mas ano sabático também não é aquele ano em que você não trabalha aos sábados. As palavras enganam. Escrever é discernir, esclarecer sutilezas, pois nos detalhes mora o demônio das pequenas coisas que causa grandes prejuízos e pode derrubar um avião, como sabemos, quanto mais uma tese, quanto mais uma notícia.
Se essência e aparência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Roberto Gurgel, por exemplo, é muito parecido com Jô Soares, e a mídia vive brincando com as fotos de um e de outro em ‘separados ao nascer’.
Ah, para escrever, assim como para ler, são indispensáveis sutis complexidades. [Atualizado às 14h15 de 17/11]
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PS. Parabéns à Editora Record, que levantou a discussão do Prêmio Jabuti. O cantor e compositor Chico Buarque, nem bem lança um romance, ganha o Jabuti. Já foram três! E os escritores brasileiros? Devem lançar cedês para serem percebidos e premiados?
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa); seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas