Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Em nome da diversidade

Felizmente, temos avançado – a passos de tartaruga, mas temos – rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Hoje, se um apresentador de TV brasileiro diz algo que soe minimamente crítico à homossexualidade, haverá uma forte cobrança e há chances de que ele seja condenado na justiça por discriminação sexual. O apresentador José Luiz Datena, do programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes de Televisão, foi denunciado pelo Ministério Público por ‘prática discriminatória’ contra travestis em função de comentários feitos no ar [Folha de S.Paulo. 2010. ‘Datena pode ser multado por discriminação a travestis no Brasil Urgente‘].

Recentemente, os casais homoafetivos ganharam o direito de declarar o companheiro ou companheira como dependente no Imposto de Renda [R7. 2010. ‘Casais homossexuais podem declarar companheiro como dependente no Imposto de Renda‘]. Candidatos a presidente são cobrados quanto ao posicionamento em relação ao casamento homossexual – embora se esquivem com respostas evasivas.

Sim, está-se longe do mar de rosas. Homossexuais são vítimas de crimes de ódio e há muita discriminação e preconceito oculto. Ao menos, no entanto, a cultura está mudando e ninguém se sente à vontade de declarar em público que discrimina os homossexuais – no mínimo, precisam começar com a manjada frase: ‘Não tenho nenhum preconceito, mas…’

Calabocadatena

Um grupo socialmente minoritário, porém, ainda é alvo de muito preconceito aberto. São os ateus.

Em 2007, o instituto CNT/Sensus, em uma pesquisa para a revista Veja, perguntou se as pessoas votariam em um candidato ateu para presidente. 59% dos entrevistados disseram que não (contra 34% que não votariam em um homossexual, 12% em mulher e 1% em negro) [André Petry. Veja. 2007. ‘Como a fé resiste à descrença‘]. Uma pesquisa conjunta do Instituto Rosa Luxemburgo e da Fundação Perseu Abramo de 2008 revelou que 42% dos brasileiros sentem aversão aos ateus (17%, ódio/repulsa, e 25%, antipatia): o outro grupo que tem rejeição similar é a dos usuários de drogas, 41% (garotos de programa, 26%; transexuais, 24%; travestis, 22%; prostitutas, 22%; gente muito religiosa, 22%; gays, 20%; lésbicas, 20%; ex-presidiários, 21%; gente muito rica, 20%; bissexuais, 19%; pessoas com Aids, 9% e pobres, 3%) [Gustavo Venturi. Fundação Perseu Abramo. 2008. ‘Intolerância à diversidade sexual‘].

O mesmo apresentador Datena sentiu-se à vontade para achincalhar os ateus [Daniel Sottomaior. Atea. 2010. ‘Datena e os ateus‘]. A mídia fez ouvidos moucos e não está a cobrir o movimento de revolta entre muitos ateus (no serviço de microblog Twitter, muitas manifestações foram postadas com a hashtag #CALABOCADATENA). Algumas organizações ateias e ateístas estão a organizar ações para que o ofensor seja devidamente processado, como a Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) [Daniel Sottomaior. Atea. 2010. ‘Datena‘] e a LiHS (Liga Humanista Secular do Brasil) [Pedro Almeida. 2010. ‘Instruções de denúncia ao MPF contra Datena‘].

Situação é grave

Em um país em que 97% da população acredita em Deus ou em uma força divina, segundo números do Datafolha de 2007 – e em que os ateus devem somar não mais do que 700 mil brasileiros – [Datafolha. 2007. ‘97% dizem acreditar totalmente na existência de deus; 75% acreditam no diabo‘], é fácil minimizar ou mesmo apoiar as barbaridades ditas ao vivo em rede nacional. Mas é justamente aí, na possibilidade de opressão contra um grupo tão minoritário, que devemos ser ainda mais vigilantes e intransigentes quanto à violação do direito à integridade moral dos indivíduos. A democracia se faz no respeito à diversidade e no reconhecimento do direito de minorias – de outro modo teríamos tão-somente a ditadura da maioria, expurgando de seu meio qualquer grupo considerado pária.

Se a mídia e a imprensa querem se postar como instrumento da democracia, não podem se omitir em relação a essa absurda transgressão à lei que veda explicitamente a discriminação religiosa (aos que objetarem que o ateísmo e a ateidade não são religião, a natureza da discriminação é religiosa, interferindo na liberdade de culto – que inclui a liberdade de não prestar culto algum – garantida pela Constituição Federal). Mesmo que não queiram tomar partido, a situação é suficientemente grave para que pelo menos tomem nota. (Não, não se condena antecipadamente o apresentador – considero que houve a infração, mas ainda assim é preciso que seja cumprido o devido processo legal.)

Nota: Não sou ateu. Tenho amigos ateus e ateístas, bem como amigos religiosos de diversas correntes e com diversos graus de religiosidade.

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Estudante, São Paulo, SP