Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Encruzilhadas, soluções lineares e paradoxos

À medida que o ano se aproxima do fim, cresce a sensação de que, de alguma forma, somos sobreviventes. De uma bala perdida, de um assalto violento, de um ônibus queimado, de um erro médico, de uma enfermidade inesperada (a febre maculosa, a raiva transmitida por morcegos), de um desmoronamento de valores produzido por um movimento insidioso que os sismógrafos não detectam.

Como sobreviventes nos agarramos à primeira tábua, ao primeiro destroço capaz de fornecer uma idéia dos acontecimentos, de como as coisas eram um pouco antes e a que ficaram, inesperadamente, reduzidas.

A semana iluminada pelo Sol brilhante desta passagem de primavera/verão começa com estrondos esparsos, às vezes mais próximos, outras mais distantes como uma batalha cadenciada pela escassez de munição.

Um canhão faz seu disparo e só depois um outro responde, para reafirmar sua vigilância, mas apenas confessando impotência em pôr fim a um conflito de raízes generalizadas, que se estende por toda a Terra.

Os disparos do amanhecer, comemorando uma vitória sub judice do Corinthians segundo as primeiras páginas dos jornais, ecoam com certa irrealidade, fundidos a restos de sonhos distorcidos.

Uma cena de Cabul onde a personagem central de Khaled Hosseini em O Caçador de Pipas, procura acertar contas com seu meio-irmão assassinado pelo Taliban. Nas areias quentes do Iraque onde a morte flui com a viscosidade do petróleo, nas ruas das metrópoles brasileiras que, às vezes, são Cabul e Bagdá simultaneamente, mesmo sem declaração de guerra formal.

Impressão pessoal?

Sentido lógico

Na página A2 da Folha de S.Paulo de segunda-feira (5/12), João Sayad, economista que ao lado das estatísticas sempre cultivou humor e ironia fina, temperos fundamentais da boa vida, teve outros sonhos. Mas revela a mesma sensação de sobrevivente historiando sua experiência de baby-boomer sob o sugestivo título de ‘Calma’, terminando com a idéia de que ‘a natureza é sábia e nos protegerá, estaremos surdos e não conseguiremos mais ler os jornais’.

Talvez deixar de ler os jornais seja a solução, por paradoxal que possa parecer à primeira vista. Afinal, existem duas classes de soluções para toda a natureza dos problemas possíveis: a linear e a paradoxal.

A solução linear comporta os encaminhamentos simples. Pode ser a opção da maioria das pessoas, ainda que nem sempre a mais apropriada. A paradoxal abrange as questões mais complexas – o que, na essência, é a natureza última de todas as questões, ainda que sociólogos, economistas e especialmente jornalistas, com suas abordagens de lide (a estrutura de abertura de uma notícia) costumem defender o contrário.

Quando se perguntou o que ocorreria se pudesse acompanhar a viagem de um pacote de luz, um fóton, Einstein adotou a solução paradoxal e com ela descobriu que o tempo varia de acordo com o estado de um observador. Por esta via chegamos ao Paradoxo dos Gêmeos e ao Paradoxo do Avô.

No Paradoxo dos Gêmeos, se Einstein tivesse um irmão univitelino, nascido do mesmo óvulo, e tivesse se decidido a acompanhar a viagem de ida e volta de um fóton até Alfa do Centauro, sistema estelar triplo mais próximo do Sol, no retorno estaria mais jovem que seu irmão que permaneceu na Terra.

É como se voltássemos de alguma forma a Aristóteles e, mergulhando no espaço supralunar, onde reinaria a perfeição da esfera das estrelas fixas, o tempo deixasse de fazer sentido. Enquanto no espaço sublunar continuaria atormentando os homens com uma seqüência de eventos torturantes.

No caso do Paradoxo do Avô, uma eventual viagem no tempo faria com que Einstein pudesse alterar o futuro, entre outras chances eliminando seu avô, impedindo o nascimento do pai e, com isso, inviabilizando sua própria existência, o que não faz qualquer sentido lógico.

O problema destes tempos é que cada vez as coisas todas têm menos coerência lógica e por isso mesmo são cada vez mais vazias de sentido.

Violência e elegância

No campo esportivo, onde o futebol é considerado por muitos como uma sublimação da guerra (embora com freqüência e acerto prévio pela internet, se descambe, nos estádios e nas suas imediações, para a guerra mais primitiva, engendrada a pau e pedra), as manchetes desta manhã de quase transição de estações também não fazem sentido.

Dois times, simultaneamente, se proclamam campeões e o critério, neste caso, não é o do empate.

A Justiça, que tradicionalmente é descrita como cega para não privilegiar nenhuma das partes envolvidas (mas no Brasil parece ter um olho atento sob sua venda, exatamente para distinguir de quem se trata no julgamento), pode ter a solução final. Com isto voltaremos a mergulhar nas águas malcheirosas não só da corrupção que teria alterado o resultado de algumas partidas, mas da lentidão dos julgamentos.

Uma novela das oito desdobrada ao infinito, aguardando o retorno de um viajante a Alfa do Centauro. Estaremos todos envelhecidos quando ele finalmente retornar e seus relatos também não farão sentido.

E como se não bastasse, exatamente na seção de esportes está a evidência, transparente como o cristal das feiticeiras medievais: ‘Tevez, um sobrevivente’ (O Estado de S.Paulo, pág. E9, 05/12).

A sensação de sobrevivente é uma referência recorrente, à medida que o tempo flui.

‘Carlitos’, o argentino proscrito, eleito herói da vitória sub judice de seu time é, rigorosamente, o único sobrevivente do ‘Forte Apache’, a favela mais violenta das que cercam a elegante Buenos Aires, a mesma cidade que os suplementos de turismo dos jornais da semana passada garantem ter superado as dificuldades econômico-sociais e retomado a elegância próspera que cultivou nos anos 1930.

Onde os suplementos de turismo da semana anterior colocaram o miserável ‘Forte Apache’, confinamento em que duelos primitivos levaram à morte a maior parte dos amigos de infância do heróico ‘Carlitos’?

Complexa e torturante

A imprensa usa o mesmo recurso da justiça e é cega (ou não) ao que lhe convém. Os exemplos dos últimos tempos são uma evidência que beira à exaustão. A exaustão do náufrago, do que escapou à morte num acidente aéreo, do sobrevivente, com todos seus complexos de culpa por ter sobrevivido, por continuar respirando o ar fresco desta transição primavera/verão, enquanto os outros partiram, sem deixar pistas de seus destinos.

Na página A3 da Folha de S. Paulo de segunda-feira (5/12), a evidência do olho nada cego da Justiça materializada na ambição política do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o astucioso ministro Nelson Jobim, segundo comentário de Cláudio Weber Abramo, diretor da Transparência Brasil, organização voltada ao combate à corrupção.

Sobreviventes, estaremos mais uma vez ameaçados pela campanha política das eleições de 2006.

Não só balas perdidas. Tacapes, bordunas, setas envenenadas, armadilhas e fabulações, como a falsa questão por trás do plebiscito do desarmamento, são e serão as ameaças seguintes. Com o conluio da imprensa que cada vez mais, como a justiça injusta, estende um olho para o cravo e outro para a ferradura. Numa batalha em que, algo nos diz, não haverá vencedores – apenas perdedores, todos vítimas da solução linear.

Daí talvez a procedência da previsão de Sayad, de que não conseguiremos mais ler os jornais. E da confirmação da solução paradoxal para uma questão que, longe de simples, é cada vez mais complexa e torturante. O que eventualmente pode ser a fonte da idéia desagradável ao estômago, de que somos meros sobreviventes.