Houve um tempo em que a sorte dos acusados de crimes dependia, entre outros fatores, de sua resistência física. Submetidos a terríveis provas e duelos, declarava-se a absolvição daqueles que se saíam vencedores em tais embates, certamente ungidos com a proteção divina somente outorgada aos inocentes.
Nessa época, um só órgão desempenhava as funções de acusar, de defender e de julgar; e de semelhante modelo não poderia resultar senão esta perversa conseqüência: com o processo, não se pretendia alcançar a verdade, para condenar os culpados e absolver os inocentes, mas apenas extrair a confissão dos acusados, para cujo êxito era empregada, em larga escala, a tortura.
Hoje, seguramente pode-se dizer que vivemos sob a égide de sistema mais justo: se ‘fulano’, ‘beltrano’ ou ‘sicrano’ é suspeito de crime, não basta que a polícia, na fase do inquérito, o considere culpado; não é tampouco suficiente que o Ministério Público venha a acusá-lo formalmente do delito; é indispensável que, por sentença definitiva, o juiz o reconheça como tal, após o curso de um processo em que lhe sejam garantidas amplas possibilidades de contraditar as afirmações do órgão acusador. Assim estabelece nossa ordem jurídica, e assim gostaríamos que fosse, caso na ‘pele’ do acusado figurasse qualquer de nós.
O mais básico dos direitos
No entanto, quando a imprensa traz à tona crime brutal, que nos choca a todos, em não raras vezes somos levados a equívoco lógico que põe abaixo essa equação: do justificável desejo de que sobre o criminoso recaiam as penas da lei, passamos a imaginar que disso siga, como inferência imediata, a conclusão de que o respectivo culpado seja necessariamente aquele a quem se imputa o delito. Ignora-se que, à diferença de momentos históricos precedentes, o processo já não serve para ‘encontrar’, a qualquer preço, um culpado: interessa-lhe tanto a punição do autor do crime, quanto a absolvição de quem, acusado, não o praticou.
Tal observação aplica-se ao propósito da cobertura jornalística sobre a trágica morte da menina Isabella: é impossível não notar, aí, certa predisposição a antecipar eventual condenação do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança. O ‘tempo’ do processo (que sequer começou) não é o ‘tempo’ da imprensa: o primeiro é demorado e sujeito a formas rígidas (para o nosso próprio bem); o segundo é rápido como um raio e exige dos atores da ‘justiça’ bem mais do que cada um pode dar. Diante disso, toma corpo a tendência de precipitar a solução do caso: se a resposta do judiciário virá tardiamente, por que não confiar desde logo nas convicções da polícia, respaldadas que estão por laudos de inegável valor científico? ‘Foram eles’, proclamou, com veemência, determinado semanário. Ilustre comentarista de jornal televisivo chegou a acusar o casal de ‘abuso do direito de defesa’, simplesmente porque os dois insistem em declarar-se inocentes. Numa palavra: nega-lhes o mais básico dos direitos do acusado, em um regime democrático – o de recusar-se a admitir a própria culpa.
Deduções podem ser inválidas
Deveríamos, então, a partir de agora, classificar os processos criminais em dois tipos? De um lado, aqueles em que é cabível o exercício de semelhante direito; de outro, os casos nos quais as ‘evidências’ encontradas pela polícia dispensam tal ‘formalidade’? E a quem tocará enquadrar cada caso numa ou noutra classe? À polícia? Ao invés das diatribes do comentarista ‘justiceiro’, resigno-me a refletir, por ora, sobre a advertência cautelosa de Francesco Carnelutti, jurista italiano falecido há pouco mais de 40 anos: ‘Devagar, no julgar, porque é muito fácil equivocar-se’.
De fato, a polícia, como qualquer outra instituição composta por seres humanos, não está livre de equívocos. Tanto os exames periciais por ela levados a cabo podem conter vícios técnicos, quanto as deduções feitas, a partir de exames corretamente executados, podem ser inválidas, ou, quando menos, conduzir a resultados apenas prováveis. Não é impossível sequer (por mais improvável que seja) que a polícia queira simplesmente reafirmar, de qualquer jeito, a hipótese que desde o início sustentara, ao temor de que viesse a ser execrada, se, porventura, o inquérito fosse concluído sem o indiciamento de alguém.
Raciocínio simplório
Aqui não vai crítica à autoridade policial condutora do inquérito. Particularmente, penso que ela está apenas fazendo seu trabalho, o qual, ao fim do processo, será tão julgado quanto os futuros acusados o serão. Refiro-me tão-somente a hipóteses ‘possíveis’, não ‘prováveis’, ou ‘inevitáveis’.
Um dos mitos que o século 20 sepultou de vez foi a idéia de que os padrões humanos de ‘verificabilidade’ das proposições (seja na ciência, na história ou mesmo no processo) estão imunes ao erro. O que me admira é que, apesar disso, vozes autorizadas de nosso jornalismo sugiram que retrocedamos a períodos antecedentes, de dolorosa memória. Deveriam, contudo, levar até o fim o simplório raciocínio: se é vedado pôr em dúvida as conclusões da polícia (não apenas neste caso, mas em qualquer outro), por que precisaríamos de advogados, do Ministério Público ou de juízes? Afinal, um só órgão poderia fazer, com maior eficiência e justiça, o trabalho dos três.
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Procurador da República, São Luís, MA