No último dia 31 de outubro, teve fim mais um processo eleitoral no Brasil. A candidata petista, Dilma Rousseff, saiu vitoriosa não apenas nas urnas, mas também na sua relação com os meios de comunicação. Desde a redemocratização do país, em 1985, quando José Sarney assumiu a presidência da República e acabou o regime militar, percebe-se, mesmo com toda dificuldade imposta pela mídia, um amadurecimento da sociedade em períodos decisivos para os rumos nacionais. Ao mesmo tempo, momentos fundamentais para a vida brasileira – como os anteriores às eleições, incluindo as definições internas de cada partido – são conformados longe dos olhos da maior parte dos eleitores e, para piorar, encobertos pelas lentes distorcidas dos grupos de comunicação hegemônicos.
Basta observar quais pautas estiveram em destaque nos canais de TV durante os dois meses e meio de campanha, como tais temáticas foram abordadas e, além disso, quem foram os protagonistas destes fatos, para perceber que a disputa de 2010 se deu bem ao gosto dos canais comerciais, com factoides para todos os lados. As reportagens cômicas do Jornal Nacional (JN), ao fim favoráveis ao candidato tucano, José Serra, e as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Portal Terra, em repúdio a alguns órgãos de imprensa, contrastando com sua postura nos oito anos de governo, estão, ao menos, obrigando os meios de comunicação a assumir que têm lado.
Quebra de sigilo e tráfico de influência
A investida do PSDB para desqualificar sua principal adversária contou com a acusação a petistas de quebra do sigilo fiscal da filha do candidato peessedebista, Verônica Serra. Uma manobra arriscada, que rendeu acusações de ambos os lados, repercutiu no segundo turno e esquentou mais os ânimos entre os partidos. Na busca por alcançar a candidatura do PT, os tucanos miraram com força em Erenice Guerra, então ministra-chefe da Casa Civil. Antes de assumir esse cargo, ela atuava como secretária-executiva de Dilma, porém, após a acusação de tráfico de influência na Casa Civil, teve de ser afastada e execrada pelo governo. Os veículos de comunicação aliados à candidatura de Serra não fizeram nenhum esforço para demonstrar a propalada imparcialidade durante a cobertura dos fatos e, tão logo os ânimos se acirraram, o jornal Estado de S. Paulo, por exemplo, assumiu em editorial apoio inequívoco ao candidato do PSDB.
As agressões pessoais e as denúncias de irregularidades, envolvendo nomes próximos aos dois candidatos que despontaram para o segundo turno, passaram a ocupar o espaço das discussões, sobrepondo-se ao debate dos projetos políticos para o país. Ao invés de propostas, petistas e tucanos apresentaram suas imagens, tentando descolá-las de qualquer indício de participação nos casos investigados pela Justiça. O rebaixamento do discurso foi ruim para os dois lados, mas revelou-se ainda pior para a credibilidade da política nacional, pois o processo democrático acabou arranhado, mais uma vez, em função do debate egocêntrico dos candidatos e da cobertura cenográfica da mídia. É a política sem política, numa reconstrução pós-moderna dos processos de fixação dos rumos públicos.
Inversões e lavagem de dinheiro
O que os tucanos não queriam aconteceu. Após as denúncias da quebra de sigilo de Verônica Serra, as investigações da Polícia Federal (PF) intensificaram-se e descobriu-se que a ação poderia fazer parte de uma guerra interna do PSDB. O jornalista Amaury Ribeiro Júnior ganhou destaque na mídia e garantiu à PF que agia em nome do jornal Estado de Minas, o qual, supostamente, estaria defendendo o nome de Aécio Neves nas prévias tucanas, como candidato à presidência. Conforme o próprio jornalista, sua atuação opunha-se ao deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ), o qual, a mando de Serra, faria o mesmo contra Aécio para assegurar a vitória de seu aliado numa possível disputa interna.
A exatos 11 dias antes da votação decisiva para o pleito presidencial, um despachante chamado Dirceu Garcia concedeu entrevista exclusiva ao repórter César Tralli, da TV Globo, confirmando que havia recebido dinheiro para intermediar todo o esquema. A reportagem tentou levantar suspeitas de que a quebra de sigilo estaria ligada à candidatura petista e não falou sobre o relatório Caribe, anexado ao inquérito da PF. A apuração feita por Ribeiro Júnior sobre a Operação Caribe deve render um livro chamado Os porões da privataria, no qual ele denuncia supostos crimes de lavagem de dinheiro e esquemas ilegais de financiamento durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Em meio aos escândalos, o trivial
As reportagens descontextualizadas acabam sendo de difícil compreensão e, até mesmo, pouco atraentes, para a média da população. Sendo assim, o JN investiu em outra matéria, também no dia 20 de outubro, fazendo referência a uma suposta agressão de militantes petistas ao candidato tucano. O episódio teve grande repercussão, contudo, não foi a esperada pela produção do telejornal. A entrevista com o médico Jacob Kligerman, falando sobre a necessidade de realizar uma tomografia em Serra, após ele ser atingido por um objeto, o qual, no dia seguinte, seria identificado pelo perito Ricardo Molina como um rolo de fita crepe, deu tons de comédia ao caso.
Assim os canais de televisão enfeitaram os últimos dias da campanha. O escárnio feito com a inteligência do público pode ter contribuído para afetar a relação entre maioria dos telespectadores, mídia hegemônica e resultado eleitoral. Os programas de transferência direta de renda do governo Lula e as ações que provocaram o atual surto de desenvolvimento do país (com uma enorme expansão da classe média) são motivadores mais fortes no processo eleitoral do que um conjunto de acusações mal explicadas. Na verdade, os avanços na área social asseguraram uma melhora de vida considerável na maior parte da população brasileira, apesar das críticas passíveis de serem feitas, e isso não pode ser negociado no nível das agressões editadas ou, ainda, das liberdades midiáticas pouco discutidas.
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Respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, coordenador do Grupo de Pesquisa Cepos (apoiado pela Ford Foundation) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Facom-UFBA; e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, bolsista da Capes, membro do Grupo de Pesquisa Cepos e graduado em Jornalismo pela UCPel