Meu doutorado teria sido muito mais completo se, à época (1994), além das dicas de meu orientador e das bibliotecas da PUC e da USP, eu dispusesse do Google e da Wikipédia (a despeito da velocidade e do anonimato que aconselham cautela nas consultas a estas ferramentas nativas do século 21 e orgulhos do pai da Web por seu potencial de democratização de acesso e produção de informação). Mas o grande ausente na minha tese é o site, que me seria ainda mais útil: as bibliotecas não dão conta de tudo e, hoje em dia, arremato o exemplar de qualquer livro que preciso para minhas pesquisas ou leituras no precioso acervo de quase 14 milhões de livros cadastrados de centenas de sebos de todo o Brasil.
A última delícia que localizei (na verdade nunca deixei de encontrar nada que procurasse ali) foram O Exílio e o Reino e Diário de Viagem, ambos de Albert Camus, nos quais o autor menciona a passagem por Iguape na sua visita ao Brasil, em 1949. O primeiro é um livro de contos editado pela Livros do Brasil, de Lisboa (sem data, como acontece em Portugal). Em bom estado, restaurados e a preços módicos, como a maioria dos livros da estante.com.
Mas a tese teve seu momento de descontração quando arrolava semelhanças e distâncias entre Arte e Ciência. Arrisquei um chiste: a diferença é que o artista pode trabalhar drogado, e o cientista, não. Hoje, acrescentaria que a classe artística não se preocupa só com o Ibope, mas com o Bope (tropa de elite do filme do mesmo nome). Nosso cinema volta e meia homenageia o gênero que consagrou o estadunidense: sintaxe de ação com sangue – é nisso que se baseiam mesmo os sofisticados Scorcese e Tarantino (que não são só isso, mas são isso também). Onde a delicadeza de um John Ford, ou as lições de gentileza que nos dão o cinema mundial (iraniano, japonês, chinês, argentino, sueco, tcheco e outros tantos que nos chegam, parcamente, mas chegam)?
A tradição da sátira
Curioso como as telenovelas vão pelo mesmo caminho. Globo e Record optaram pelo princípio da ação com pitadas de esoterismo. Num único capítulo, Caminhos do Coração exibiu quatro cenas de perseguição, que é a seqüência linear clássica dos filmes de ação: três a pé e uma de lancha. Isto depois de Luz do Sol ter fechado o bloco com a execução do personagem Leonardo Brício, seqüestrado junto com a filha, depois do assassinato de uma vizinha e seu cachorro. Um dos sets da principal novela da Record é uma delegacia de polícia.
A Globo, que já produziu bons títulos no gênero, teme a concorrência e alinha-se a esta: eliminou-se o plot humorístico da novela da nove, embora Letícia Spiller esteja se esforçando. Aguinaldo Silva também tenta descontrair o seu Antena, mas Fagundes é sutil como Faustão, de modo que o personagem fica mais boçal que engraçado. A última gargalhada no horário nobre, quem conseguiu foi Glória Perez, com seu Gomes, de América. Mas o custo era alto (tínhamos de suportar a lacrimosa Sol e seus saltos ornamentais para lavar os pratos do Tio Sam).
É uma pena que a Globo entre na pilha da Record e apele para a violência, ao invés de seguir a tradição de grandes autores de novelas, como Dias Gomes, que entendia de cultura brasileira e se especializou em satirizar com estilo os personagens da arena nacional.
Perversidades e bom-mocismos
É uma pena também que ninguém esteja vendo que Marília Gabriela é uma boa atriz, o que já se sabia pelo tempo que ela levou para desfazer a parceria com Gianechinni, apenas para continuar a ser a mulher mais invejada/admirada do Brasil pelas mulheres mais desinformadas do Brasil. Francamente. Ela o seria se declinasse em favor de uma violonista pantaneira, uma escritora maldita, uma sertaneja com 17 filhos, o que seja; a informada é ela. Qualquer uma, menos uma profissional da Globo, que tem uma lista de gente que não pode entrevistar e uma lista de perguntas que não pode fazer. Nunca é demais lembrar que, no início dos anos 1980, a revista Imprensa divulgou uma pesquisa sobre o jornalista com mais credibilidade do país: Cid Moreira. Está passando da hora de fazerem esta pesquisa de novo. Dependendo de quem consultem, dá Bonner.
Mas, voltando às novelas, por que temos que nos filiar à tradição estadunidense de narrativa? Não precisa nem ser tão leve quando a Dance, dance, dance, da Bandeirantes, (à qual, por ironia, falta ritmo) – que até arrisca, ao entregar seu plot de humor a atores iniciantes, e aborda, sempre suavemente, temas como alcoolismo e prisão – nem tão sentimental quanto o SBT que, em Amigas e Rivais, parece querer fazer concorrência ao TV Fama da RedeTV. Trata-se de evitar a polarização extrema, a exposição de perversidades antagonizadas a bom-mocismos patéticos, melosos, religiosidades gratuitas e falta de graça, autocrítica e criatividade que afugentam o charme. Se falta humor, falta inteligência. Se falta tudo isso, falta Brasil.
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Em tempo: Justiça se faça a Walter Negrão, não falta mais: ‘Brasil’ é o nome do divertido personagem que ele compôs para sua Desejo Proibido, um soldado atrapalhado da novela das seis que estreou na Globo na segunda-feira (5/11), com outros tipos igualmente hilariantes, como o padre de Marcos Caruso e o bem-temperado prefeito de Lima Duarte, além de atores-comediantes num show de sotaques caipiras para fazer esquecer o fiasco da antecessora Eterna Magia (ao contrário dos celtas jecas, os passapertenses têm noção de suas origens). Melodrama tragicômico bem ao estilo brasileiro, começando pela abertura singela e de bom gosto (apesar da música melosa cantada manhosamente) e terminando com o personagem do charlatão, sempre bem-vindo em tramas onde a fé religiosa é posta à prova. Enfim, uma boa notícia para os telenoveleiros.
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Pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa