Havia feito a promessa de parar com essa bobagem de ler diariamente todos os principais jornais, como sempre fiz desde priscas eras. Um troço que não serve pra nada. Vem do tempo em que os jornalistas procuravam saber qual o colega que havia dado o furo do dia. Para quem não chegou a conhecer essa raridade, explico: furo é a notícia exclusiva. Anda tão fora de moda que um dos últimos furos dados por aí – a descoberta, pela repórter Rosa Costa, do Estadão, da existência do caseiro Francenildo, revelação que culminaria com a queda do czar da economia de Lula – nem chegou a finalista do Prêmio Esso, a maior láurea do jornalismo brazuca. Dar furo não vale mais nada, importante é não levar. Daí porque os jornais andam tão parecidos uns com os outros.
O tempo passa, o tempo voa, mas a louraça Vera Fisher continua muito boa. Embora a Lusitana não rode como antes por causa dos buracos nas estradas, ainda lembro, saudoso, do tempo em que o furo era comemorado a brindes com cafezinho e tapinhas de inveja nas costas do autor. Ah, essas recaídas de romantismo saudosista… Pelo menos evitei a expressão ‘sinfonia das máquinas de escrever’. Mas, vamos em frente.
A pessoa humana bem informada
Hoje, os jornais andam iguais (grande novidade). Ler um, é ler todos (outra grande novidade). Por isso, desenvolvi uma técnica especial para descumprir, sem dor na consciência, a promessa de ler todos os jornais (e sem deixar de ler todos eles). O truque é simples: leio apenas UM jornal – o Estadão, por exemplo. Aliás, não leio. Ih, esse troço está ficando confuso, mas prometo que me farei entender, é só ter um pouco de paciência. É assim: não leio o jornal TODO porque já conheço praticamente todas as notícias, algumas porque já saíram em sites como o UOL e o Terra, que acessei na véspera; outras, assisti na Globo News ou na Band News; e, outras tantas conheço porque foram apresentadas pelo Bonner ou pela Ana Paula Padrão na TV aberta, à noite. Portanto, resta pouco a ler nos jornais.
Minha técnica (enfim cheguei a ela) é bem simples: corro os olhos pelo jornal, leio – MESMO – um ou outro lide, e chega. Ficam faltando apenas as análises. Vou então às páginas de opinião e às colunas dos comentaristas políticos e econômicos de todos os jornais (estes, sim, os únicos que conseguem fazer com que esta cabeça dura e cada vez mais velha entenda alguma coisa da política e da economia). Ao cabo dessa operação, de nariz empinado, sinto o orgulho que sentem as pessoas bem informadas. Até hoje não entendi muito bem para que serve ser uma pessoa bem informada, mas, por inércia, sigo em frente.
Há muito tempo venho empregando essa técnica, e com sucesso. Sem ter de ler todos os jornais, sobra tempo para alguma vadiagem intelectual como reler Quintana, ouvir o último cedê de Seu Jorge ou abrir os e-mails com as piruetas dos golfinhos e as belezas do Taj Mahal que o José Nêumanne me envia. E ainda sentar à mesa do botequim suficientemente informado para esculhambar o governo – qualquer governo – com conhecimento de causa. Suspeito que deva ser esta a serventia de a pessoa humana ser bem informada.
Mudar a cabeça de quem faz jornal
Mas – oh, destino! – nas últimas semanas comecei a apresentar às 8 da manhã um programa na TV Câmara que consiste no comentário das notícias dos jornais, uma tentativa de fazer o telespectador entender um pouco o mundo dos políticos e dos economistas. Como tenho menos de meia hora para percorrer todos os jornais do dia e selecionar as notícias que serão objeto de análise no programa, percebi, assustado, que o fato de os jornais andarem cada vez mais iguais poderia me deixar em maus lençóis.
O jeito foi transformar essa deficiência em aliada. Em vez de selecionar os jornais, seleciono as notícias (que conheço desde a véspera). E aí saio procurando qual o jornal que publicou tal notícia da forma mais atraente, aí incluídas as fotos, as ilustrações, os boxes e os infográficos. Tenho de pensar no visual delas, afinal estou fazendo televisão e tenho de mostrar os jornais na telinha. As visualmente mais ricas ganham destaque. Como as notícias exclusivas são cada vez mais raras, raramente dou uma notícia rara.
E quando descubro uma raridade – como a denúncia sobre a máfia dos remédios, irmã gêmea da máfia dos sanguessugas, publicada pelo Correio Braziliense – trato o assunto como um garimpeiro de Serra Pelada que acabou de encontrar uma pepita de duas toneladas. Tem dado certo.
A conclusão a que cheguei – na pista aberta pelos estudiosos do assunto – é óbvia como uma manchete de jornal: ou os jornais se diferenciam, ou estão condenados a se extinguir por se terem transformado em inúteis dinossauros. Aliás, inúteis, não. O jornalista TT Catalão já advertiu que os jornais (esses de papel, que conhecemos), ainda devem durar algum tempo porque são ótimos para forrar o chão quando se pinta parede. Ninguém, que eu saiba, tentou ainda, mas é pouco prático forrar o chão com teclados de computador.
Brincadeiras à parte, acredito que o papel dos jornais é cada vez mais fugirem da notícia que todo mundo tem, e buscarem a exclusividade. Na falta dela, centrar fogo na contextualização, na análise, na opinião e, sobretudo, na previsão das conseqüências de fatos que já saíram na web ou nos canais de news. Óbvio? Sim. E falta realçar ainda uma outra ululóbvia constatação: para se chegar a isso, é preciso mudar a cabeça das pessoas que fazem os jornais (grande novidade!). E é preciso mudar também as cabeças das pessoas que fazem as cabeças das pessoas que um dia irão fazer os jornais – refiro-me aos professores das faculdades de comunicação.
Sou um deles. Já estou aprendendo a me olhar no espelho e identificar nele o idiota que sempre fui mas tenho a esperança de um dia deixar de ser, a fim de que, no futuro, ainda existam empregos nos jornais para meus alunos trabalharem depois da formatura.
É preciso que os jornais mudem, e logo. Até porque, se os jornais não mudarem, meu programa matinal na TV Câmara corre sério risco de a qualquer hora sair da grade da programação. Ah, estou pensando em pintar uma parede lá de casa. Se alguém aí tiver teclados de computador que não sirvam mais, por favor, mande pra mim. Quero ir treinando.
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A doce vingança
TT Catalão (*)
Não só forrar o chão, caro amigo: os jornais experimentam uma sobrevida por ser extremamente difícil acertar uma barata com o mouse; ainda são impressos pela possibilidade real de acidentes nas partes pudendas se levarmos um monitor de alta voltagem para as leituras em, digamos, salas íntimas; estão nas bancas porque as peixarias entrariam em colapso se perdessem tal meio popular de embalagem; continuam, pois deselegantes ficariam os mortos anônimos em vias públicas se não recebessem tal mortalha midiática; crise também para os taxistas que perderiam muita receita em lavagens extra de tapetes.
Sabemos que as manchetes impressas servem como leitura de bordo, mesmo desatualizadas – afinal, o jornal do dia já sai ‘velho’, antecipado que foi pela TV, o rádio, os blogs etc. E para manter um pouco mais a permanência dos jornais prevalecem as famigeradas leis de mercado, quando os jornais se consideram produtos empresariais e daí, geralmente (raras as honrosas exceções), tratam notícias como mercadorias (pecuniárias ou ideológicas). Enfim, meu caro confrade, somos candidatos em lápide e lamúria a vítimas oculares da história.
PS: Ahh, e quanto a TV, ainda fico com a grande definição de Fellini: ‘É um ótimo eletrodoméstico’. Mas que dá saudade dá, de ferver em uma redação. Sinto falta do belo caos criativo de um fechamento. E de cutucar poderes com varas cíveis curtíssimas. E pensar que a gente se matava no Correio Braziliense para fazer uma ‘revista’ diária com opinião, participação radical dos leitores, bossas para contextualizar, pesquisas, narrativas visuais e muito charme para dar um plus na notícia sem perder o prazo de validade. Enfim…apuremos a pontaria. Tremei baratas insensatas! Os e-mails de amor não são perfumados. Doce e última vingança.
(*) Jornalista
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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação