Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Estatus e expectativas de cidadania

A insuficiência na compreensão da cidadania deve-se ao hábito de definir esse termo em um esquema de análise prévio como, por exemplo, o estatus, as práticas e as instituições. Desta forma, aceitam-se reduzir as expectativas de cidadania ao nível mental, representações que os indivíduos projetam quando perguntados sobre o que esperam de tal ou qual medida social.

Frequentemente prevalece o ponto de vista do desenvolvimento e a mídia passa a mensagem de representações sobre o que as pessoas esperam de seus representantes ou dirigentes, se os aprovam mais ou menos, de tal sorte que o conceito de cidadania e a capacidade dos eleitores para os direitos civis e políticos resta subentendida em maneira indiferenciada, como um modelo a mais para a pesquisa de opinião.

Cidadania é mais do que um objeto de preferências subjetivas individuais a escolher entre alternativas preestabelecidas, e se as sondagens e enquetes têm o mérito de valorizar a opinião coletiva restringem as expectativas ao plano do modelo de representação de interesses, passando a crença de que a sustentação de um regime democrático depende exclusivamente dos representantes políticos.

A orientação que ali é exercida sofre a influência das metodologias aplicadas aos estudos de mercado em detrimento do caráter sociológico implicado na cidadania, ao passo que a sociologia é tanto mais solicitada nesta matéria, em que se tratam atitudes coletivas que ultrapassam os limites das abordagens conceitualistas.

Conceito de cidadania

Com efeito, posto que a língua utilizada pela coletividade constitua um sistema de símbolos, no qual tomam parte as metodologias de pesquisa, os conceitos de análise e interpretação sociológica revelam-se mais bem dotados para os estudos de cidadania porque levam em conta a inadequação da função simbólica.

A língua utilizada pela coletividade como sistema de símbolos serve ao mesmo tempo de resposta antecipada às questões postas e de expressão incompleta das significações e idéias compreendidas pela coletividade, que fala tal língua e a utiliza em seu próprio pensamento.

Aliás, o fato de as mentalidades e as consciências coletivas e individuais utilizarem um vasto aparelho simbólico prova o caráter social da vida mental, o caráter social do elemento psíquico.

Ao levar em conta a inadequação da função simbólica, a sociologia reconhece em especial a afirmação do significado em sua autonomia relativa a respeito do significante, quer dizer, o sociólogo compreende os símbolos sociais como presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências.

O conceito de cidadania só será adequadamente desenvolvido se levar em conta tal inadequação, o que pode ser conseguido com a colocação das expectativas de cidadania em perspectiva de ação, isto é, em perspectiva das eleições e do ato de votação.

O estado psicossocial

As expectativas de cidadania se verificam a posteriori lá onde a identificação participativa dos eleitores é constatada (veja aqui meu artigo anterior, link: http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=556CID005). Ou seja, se há identificação participativa dos eleitores a razão operativa compreende retroativamente que as expectativas de cidadania estão em vias de efetuação.

O artigo 25 ICCPR (veja aqui http://www2.ohchr.org/english/law/ccpr.htm) tem interesse especial para dirimir dúvidas por ser um documento internacional que faz menção expressa e traz a compreensão justa do perfil do cidadão.

Trata-se do dispositivo assegurando a todo o cidadão o direito e a oportunidade de votar sem restrições irracionáveis em periódicas eleições genuínas, o qual se completa com a exigência de que seja garantida livre expressão da vontade dos eleitores (Art.25, ICCPR: ‘Every citizen shall have the right and the opportunity…’).

A noção de expectativas de cidadania deve ser tirada deste artigo.

O cidadão é ali reconhecido como estando naturalmente, sem impactos nem constrangimentos, em direito de esperar ter acesso e exercer o direito e a oportunidade de votar… Tal a expectativa de cidadania, que se afirma antes como uma orientação integrada ao esforço coletivo do que disposição de conduta na extensão de papéis ou círculos sociais.

O que diferencia o indivíduo que se eleva à cidadania é o estado psicossocial, o modo de ser e agir (a) em direito de esperar… (b) ter acesso e exercer o direito e a oportunidade de votar… (c) sem restrições irracionáveis em periódicas eleições genuínas, sendo garantida livre expressão da vontade dos eleitores.

Temas coletivos reais

Não é propriamente a possibilidade do acesso que varia com o estatus, mas, antes disto, será a percepção de esse estar em direito de esperar que certamente sofre variação com o ‘estatus’ ou em função de uma camada, nível de vida ou estrato social, mas com certeza varia em função do mundo da comunicação social, em função da atuação das mídias (seja favorecendo o conhecimento dos temas coletivos reais, seja promovendo, por exemplo, a facilitação dos registros civis).

Não há determinismo social ou sociológico que estabeleça previamente uma correspondência entre certos estratos sociais ou certas faixas de renda e a possibilidade de acesso ao direito de votar. Pode-se supor que os níveis de renda menos desfavorecidos tenham maior progressão em escolaridade e que, em razão disto teriam privilégio em aceder a esse direito. Se tal circunstância eventualmente acontece e observam-se faixas de baixa renda com reduzido acesso será antes decorrência do retardamento das localidades respectivas, sobretudo ausência dos meios de comunicação.

A união prévia que a língua falada pressupõe preserva a possibilidade de acesso e de capacidade participativa da coletividade, mas não assegura a percepção do estar em direito de esperar (…), que leva à afirmação do indivíduo como estando em vias de orientar-se para as prerrogativas do eleitor.

Antes de projetar representações gerais como as imagens ideológicas, a percepção do estar em direito de esperar implica os temas coletivos reais, a progressão no conhecimento que se produz em meio de relações com outrem formando o ambiente indispensável às reivindicações sociais, base da motivação política dos eleitores: o conhecimento dos Nós, grupos, classes, sociedades, para o que o exercício da comunicação social e seus meios são historicamente indispensáveis.

‘Tempos em ausência de intenção’

Em relação às estritas expectativas de cidadania, embora esteja integrada à formação das reivindicações sociais, a percepção do estar em direito de esperar… vem a ser diferenciada, já que além de integrada à mencionada formação social e mesmo tornando-se um reclamo, ‘esperar ter acesso e exercer o direito e a oportunidade de votar…’ implica a identificação participativa dos eleitores em correntes transversais aos agrupamentos de localidades, que se verifica a posteriori com base em um Nós multifário, recorrente no conjunto dos eleitores votantes e que se apresenta somente nos períodos de eleições.

Mas não é tudo. Quando se fala de conjuntos práticos encontra-se que as unidades coletivas são mais do que os números frios dos estudos sobre expectativas do mercado.

Os autores de ciência jurídica observam, por exemplo, as expectativas em relação ao que chamam direito futuro, reconhecendo desta maneira o problema dos tempos sociais na realidade da vida do direito.

Para o sociólogo, por sua vez, atento ao fato de que a língua utilizada pela coletividade constitui um sistema de símbolos, como presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências – como foi mencionado, há inadequação da função simbólica – o futuro atual posto pelas expectativas de cidadania expressa em fatos sociais uma dimensão mais ampla e profunda da realidade social correspondendo à experiência humana da autonomia do significado a respeito do significante. Quer dizer, as expectativas de cidadania existem e são apreendidas coletivamente como manifestações particulares de um estado de carência/aspiração constituindo e existindo efetivamente nos tempos sociais.

Trata-se como vimos de uma subjetividade coletiva, já que, por serem integrados na realidade social, os elementos do psiquismo individual e coletivo passam à própria realidade social suas energias ou emanações subjetivas, de tal sorte que a aspiração aos valores não se deixa reduzir ao aspecto mental, mas penetra a realidade social inteira.

Se, no histórico da sociologia, Durkheim encontrou esse problema ao desenvolver sua compreensão dos valores ideais (Ver na Web da OEI meu ensaio ‘Cultura e Consciência Coletiva-2’), nos debates do século vinte este problema está na raiz da divergência de Jean Paul Sartre ao não reconhecer as evidências de que, além de individual, a subjetividade é coletiva, levando-o a desprezar os problemas da microssociologia dialética e reduzir a realidade social à filosofia dogmática da história.

Por fim, o problema da subjetividade coletiva, como estado vago de carência/aspiração existindo efetivamente nos tempos sociais e imprimindo-lhes um caráter de transição, pode ser igualmente reconhecido no que, referindo-se exatamente à transição de 1920 na acelerada modernização da Alemanha, Ernst Bloch chama ‘tempos em ausência de intenção‘ (ver meu artigo a respeito de Sartre na minha página junto ao OpenFSM; ver igualmente meu e-book na Web da OEI ‘O Tradicional na Modernização: Leituras sobre Ernst Bloch’).

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Sociólogo, Rio de Janeiro, RJ