Depois da polícia, chegou a vez da imprensa.
Com alarde, a Folha de S.Paulolançou o seu “disque-denúncia”. O serviço, sugestivamente chamado de Folhaleaks, propõe estimular seus leitores a encaminhar de forma anônima denúncias que permitam produzir novas reportagens. Com uma semana de atividade, o jornal comemorou mais de setecentas mensagens sobre nepotismo, fraudes em licitações e favorecimentos a políticos. Estará aí, na crua expansão do denuncismo anônimo, um futuro seguro para a nossa democracia?
Desde que em seu 1984 George Orwell desenhou a onipotência do Estado pelas lentes de um Big Brother que a tudo e a todos vigia, a ameaça de uma sociedade de controle vem rapidamente se alastrando sobre nós. O extraordinário avanço tecnológico e a constante disseminação do medo como combustível da vigilância, tornaram o pesadelo de Orwell cada vez mais palpável. E o que temos feito para combatê-lo?
Reproduzimos as câmeras de segurança em nossos espaços privados, das escolas aos elevadores, entregamos a intimidade a empresas que nos prometem amigos virtuais e nos deliciamos com o voyeurismo que a simulação do controle nos proporciona em momentos de lazer. A câmera caricata do patrão sobre o Carlitos operário em Tempos Modernos se agrega hoje a outros instrumentos de controle no trabalho, como o monitoramento de computadores e revistas de funcionários após o expediente.
Polícia tem na mídia um complemento indispensável
Aderimos e legitimamos a contínua vigilância.
Em nome da segurança, a privacidade foi se tornando um conceito em extinção, lembrado com reverência apenas quando um réu abonado é objeto da justiça penal. Mas em uma sociedade de controle que se preze, e este é o ponto que nos interessa, a vigilância só se consolida quando é repartida por todos os seus membros.
Um pouco de policial em cada indivíduo é a regra perversa que paulatinamente mutila a mesma liberdade que promete assegurar. No televisivo Linha Direta, da rede Globo, os espectadores eram estimulados a procurar criminosos foragidos. No Folhaleaks, a fornecer dados para a investigação. É o cidadão cumprindo seu dever de vigilante da lei e da ordem, enquanto a imprensa faz papel de polícia e muitas vezes de juiz também. Ninguém duvida da importância de colocar limites à malversação de bens públicos, punir corruptos e corruptores e estabelecer regras que dificultem a apropriação privada de bens do Estado.
Mas a espetacularização do controle, com propósitos políticos ou comerciais, no entanto, é a ação que menos efeitos duradouros produz. Esgarça-se antes do próximo escândalo e se alimenta do sensacionalismo que retrata. Da mesma forma como a imprensa vem desempenhando funções de investigação, a polícia tem na mídia um complemento indispensável de seus trabalhos. Quase não se veem operações de vulto em que prisões não sejam fortemente alardeadas ou interceptações telefônicas que não cheguem diretamente aos telejornais. As punições muitas vezes se esgotam na simples exposição dos suspeitos.
Uma sociedade de controle
Mesmo quando se pretende proteger o interesse público, é preciso muita atenção ao casamento do denuncismo com a política do espetáculo. O resultado pode ser devastador. Que o diga Philip Roth, que pela boca do narrador de seu Casei com um Comunista, destrinchou a lógica do macarthismo dos anos 50 e 60 nos EUA. Em meio a comissões parlamentares de inquérito transmitidas pela TV e listas-negras produzidas por denúncias e delações, estabeleceu-se uma política de caça às bruxas sob o pretexto de reagir duramente aos inimigos do Estado:
“A virtude dos julgamentos-espetáculo da cruzada patriótica era simplesmente a forma teatralizada. Ter câmaras voltadas para aquilo apenas lhe conferia a falsa autenticidade da vida real. McCarthy compreendeu o valor de entretenimento da desgraça e aprendeu como alimentar as delícias da paranoia.”
É certo que o cidadão deve ter meios de se defender dos abusos do Estado e instrumentos para limitar o poder das autoridades. Mas assumir ele mesmo a função de polícia, a título de denunciá-lo, só pavimenta o caminho para uma sociedade de controle na qual suas próprias liberdades terminam em risco.
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[Marcelo Semer é juiz de direito em São Paulo e escritor]