A crise da chamada ‘bolha imobiliária’ norte-americana, que bateu no teto na semana passada, promete deixar várias seqüelas. Nós, da mídia, somos parte do problema. Para avaliar melhor o grau da nossa responsabilidade é preciso entender, primeiro, o caráter dessa bolha.
Em inglês ela foi batizada com um título que correu o mundo e entrou para o jargão do economês: subprime mortgage crisis. Em português isso poderia ser traduzido como ‘crise das hipotecas dos devedores de segunda classe’. Este é o significado mais próximo da origem do problema, embora não seja a tradução literal.
A crise começou no mercado imobiliário norte-americano, onde qualquer cidadão empregado e com renda mínima pode comprar uma casa a juro baixo, com prazos de 30 anos para pagar, ou mais. No mercado prime ficam os abonados, a turma com grana suficiente para dar uma entrada (down payment) e liquidar o saldo em prazos mais curtos. No subprime fica o bloco de menor renda, os imigrantes recém-chegados que querem se legitimar através de um endereço próprio, os latinos, os asiáticos, os negros moradores dos guetos.
Volúpia mancheteira
Quando trabalhei em Washington como correspondente do Jornal do Brasil (1976-1979), aluguei uma casa num subúrbio acessível para um jornalista (Reston) ao lado de um campo de golfe, que me foi oferecida por pouco mais de 70 mil dólares para compra. Como o valor das prestações da hipoteca ficava muito perto do valor do aluguel, a oferta era fascinante.
Casas semelhantes no mesmo lugar valem hoje mais de 1 milhão e meio de dólares. Casas muito maiores e mais confortáveis, em lugares igualmente aprazíveis perto de São Paulo, podem ser compradas por 300 mil dólares.
Crédito farto a custos baixos fomentou o mercado subprime nos Estados Unidos; os preços dos imóveis foram para a lua (Reston é hoje um bom exemplo disso) e um pouco de inflação veio junto. Outros fatores que afetaram a economia norte-americana levaram o Federal Reserve a aumentar a taxa básica de juros para segurar a inflação e isso logo se refletiu nos custos das hipotecas.
Na teoria, a direção estava certa: em julho o custo de vida crescia em média 4,5% ao ano, segundo dados do Bureau of Labor Statistics. Uma inflação de 5% ao ano nos Estados Unidos colocaria a credibilidade do dólar, já pressionado pelas importações e pelos megadéficits na balança comercial, na marca do pênalti.
Na prática, a alta dos juros provocou o reajuste das prestações das hipotecas e a corda, como sempre, rompeu no lado mais fraco: 1 em cada 4 mutuários subprime estava com as prestações atrasadas quando a bolha estourou, começando pelos fundos financiadores da rolagem de hipotecas no mercado interbancário. Uma coisa leva a outra e as portas da rolagem de créditos fecharam para os fundos mais alavancados, isto é, aqueles fundos que usam o caixa de terceiros para a rolagem de posições. Alguns desses fundos não fazem hedge (proteção), mas em geral são nivelados nessa categoria como hedge-funds.
O resto da história todo mundo conhece. O que pouca gente sabe explicar é por que a crise pulou de um mercado para outro e desembarcou no Brasil arrastando o mercado de ações e ameaçando levar o país junto. Em larga medida, isso aconteceu porque um pedaço importante da mídia brasileira costuma em importar crises, sem traduzir o que elas significam ou podem significar para o país em termos reais.
Importamos a crise dos subprime com a mesma volúpia mancheteira que importamos a crise do México, a crise da Rússia, a crise dos Tigres Asiáticos, a crise da China. Isso não significa que o mercado pode ficar imune ao que acontece em Wall Street, onde muitas empresas de capital aberto no Brasil vão buscar investidores. Ou que devemos ignorar a dor de quem perdeu a casa num subúrbio de Miami.
A confusão se alastra
Significa apenas que não assimilamos com espírito crítico e uma bem dosada ironia profissional o que acontece em outras economias: simplesmente transportamos a crise para dentro de casa com uma espécie de fatalismo ingênuo, tecnicismo caboclo e curandeirismo financeiro.
Chamo de ‘tecnicismo caboclo’, a título de exemplo, a volúpia com que algumas editorias usaram as imagens dos pregões de viva-voz dos mercados futuros de juros e câmbio para ‘ilustrar’ a baixa do mercado de ações.
O volume aumenta nas rodas de contratos futuros quando há crise porque os agentes do mercado disparam ordens para fixar preços (realizando uma operação de hedge, ou cobertura). Essas rodas foram usadas para ilustrar a ‘crise das Bolsas’ e houve até o caso da editoria de um grande canal de TV que confessou a intenção de continuar usando as imagens sem identificar o que significavam, mesmo depois de ser advertido sobre os conteúdos diferentes entre o mercado de ações e o mercado de juro e câmbio.
Um repórter especializado (e há muitos) reconheceria na agitação das rodas imediatamente o que elas significavam: mais negócios nas mesas dos especialistas em coberturas (hedge). Como, durante as crises, as manchetes pulam das editorias mais técnicas para as editorias generalistas, a confusão se alastra, transportando o clima de falência subprime do Brooklin de Nova York para dentro da casa do morador do Brooklin paulistano.
‘Curandeirismo financeiro’
Vamos agora ao ‘fatalismo ingênuo’. Chamo de fatalismo ingênuo a submissão dos editores que citam oráculos das empresas de rating (classificadoras de risco) internacional, quando ‘vaticinam’ (a palavra é arcaica mas é ótima) que o Brasil ainda não pode ser investment grade (bom para empréstimos a juros baixos) porque não se enquadra em alguns dos seus cânones sagrados. Essas empresas de rating falharam escandalosamente, deixando de identificar os problemas dos fundos alavancados que provocaram a bolha dos subprimes.
Os europeus já acenderam luz vermelha para essas agências. Quem representa essas empresas no Brasil? Essas pessoas têm nome? Quem são os nossos ‘classificadores’? Por que não foram ouvidos ou simplesmente calaram quando podiam contribuir para diferenciar situações e evitar que uma crise localizada num determinado mercado levasse o resto de cambulhada?
Chamo de ‘curandeirismo financeiro’ o colunismo viciado em análises marxistas e fabianas sobre os mercados, particularmente os de derivativos, que em geral consideram arte do diabo. Aí vai uma informação para fabianos e marxistas:
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O estoque de contratos de derivativos abertos em bolsas de futuros, segundo o Banco de Acordos Internacionais (BIS) chega a mais ou menos 87 trilhões de dólares. Algo como 7 ou 8 vezes o PIB dos Estados Unidos.**
Ora, o estoque dos derivativos abertos no chamado Over The Counter (OTC, ou Mercado de Balcão) ultrapassa 400 trilhões de dólares. Algo como 40 vezes o PIB dos Estados Unidos.As caixas pretas do balcão
O mercado de balcão é aquele em que compradores e vendedores, ou tomadores e doadores de dinheiro, acertam negócios diretamente, caso por caso. Esse mercado não é obrigado a revelar preços e spreads (diferenças entre as duas pontas de um negócio). Não trabalha com liquidação garantida por sistemas de compensação (clearing) e o operador de um balcão não enxerga nem confia nas garantias tomadas pelo outro operador, pois não tomam garantias padronizadas ou facilmente conversíveis em dinheiro. Além disso, o balcão (OTC) não é obrigado às mesmas práticas de auto-regulação que se aplicam às Bolsas.
O mercado de balcão é importante, mas tem um lado vulnerável. A crise dos subprime foi gerada no lado vulnerável balcão. Como é difícil analisar o que acontece nas caixas-pretas (black box), a reportagem que pega carona nas crises virou todas as câmeras para onde ‘havia imagem’, ou seja, os pits (ou rodas de negociação) das Bolsas, não importa onde elas estivessem.
Alguns dos maiores curandeiros do colunismo caboclo atribuíram a causa da agitação no Brasil à dança das cadeiras dos comprados e vendidos em câmbio e juros, estabelecendo um link fantástico entre o mercado de juros interbancários do Brasil e o mercado de empréstimos imobiliários norte-americano. Esqueceram o spread (brecha) existente entre os juros brasileiros em giro no OTC e os juros internacionais, pois isso poderia parecer uma alfinetada no Ministério da Fazenda. Provavelmente, o ministro da Fazenda adoraria pajelança mais competente: uma que o ajudasse a impor às caixas-pretas do balcão (black-box do OTC) o mesmo rigor auto-regulador que se aplica às Bolsas.
Código de conduta
O subproduto dessa crise, em resumo, é a tendência para explorar o tripé do fatalismo ingênuo, tecnicismo caboclo e curandeirismo financeiro com a ajuda de uma quarta categoria de mídia: os aceleradores da crise, aqueles que acham que podem contribuir para o ‘fim do capitalismo’ com um empurrão das manchetes.
Se essa turma analisar as estatísticas da NYSE (Bolsa de Valores norte-americana) sobre a fatia dos fundos de pensão dos trabalhadores no mercado de ações verá que está dando um tiro no pé. A despeito do crescimento fenomenal dos cidadãos que cada vez mais investem em ações para fazer um pé de meia, os grandes investidores são os fundos de pensão que zelam pelos velhinhos e velhinhas do mundo todo.
A aceleração da crise pode conseguir algo bem diferente do que os torcedores desejam, a menos que seja isto mesmo que querem: chamar a censura dos tempos da linha dura.
Tão ruim ficou o noticiário e o conflito de interesses, em alguns casos, que está crescendo o apoio à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para fixar um código de conduta ou normas aplicáveis ao noticiário econômico e financeiro.
E você, ‘companheiro’?
Se o que sobrar desse debate for semelhante ao que aconteceu em outros mercados, como o norte-americano, onde os jornalistas volta e meia são chamados a depor na Securities and Exchange Commission (SEC) com severas cobranças de responsabilidade, tudo bem. No topo da pirâmide, o burocrata se curva à emenda constitucional que garante a livre manifestação do pensamento e contra a qual nenhuma autarquia ousa elevar a voz.
Infelizmente, o Brasil é um país onde o desejo de censura pode ir além e a iniciativa (correta) da CVM pode abrir a porta para os stalinistas enrustidos. Muitos empresários e políticos que navegam na impunidade também adorariam a mordaça na mídia.
Quando Marcelo Trindade (grande ex-presidente) estava de saída da CVM, mandei-lhe uma carta escrita à mão e assinada lembrando, com base nos quatro anos que vivi em Moscou como correspondente do Jornal do Brasil e depois do Estado de S.Paulo, em plena Guerra Fria, que fui testemunha de um fato notável: os russos gastavam mais dinheiro com a torre de Ostankino (de onde irradiavam ondas de interferência nas rádios estrangeiras) do que os estrangeiros gastavam para irradiar para Moscou.
Quem ganhou a Guerra Fria?
O país onde se exerceu o estado-da-arte da censura (União Soviética) se desintegrou. Ao passar recentemente por Xangai e Pequim, depois de ter visto e revisto a Ásia várias vezes nos tempos de Mao, vi que as zonas mais prósperas da China são as que se abriram para o mundo, e não vice-versa.
De que lado você fica, ‘companheiro’?
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Jornalista, diretor de Comunicação e Mídia da BM&F; este artigo reflete apenas opiniões pessoais