Jorge Luís Borges conta-nos em O estranho redentor Lazarus Morell que “em 1517, o Padre Bartolomeu de las Casas sentiu muita pena dos índios que se consumiam nos penosos infernos das minas de ouro das Antilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros para que se consumissem nos penosos infernos das minas de ouro das Antilhas”.
Márcio Cotrim afirma em O pulo do gato 3: o berço de palavras e expressões populares (Editora Geração Editorial, p. 123) que na Guerra do Vietnã “um herbicida de monstruosos efeitos era chamado de agente laranja por causa do tom de sua embalagem”. Foisua aplicação naquele conflito que teria gerado a expressão que conhecemos como “agente laranja”. Diz ele: “O agente laranja, com fumaça amarela, encobria os soldados, assim como o laranja atual encobre o verdadeiro autor de negócios escusos”.
Falta explicar os complexos caminhos que a expressão fez para entrar na língua portuguesa, sendo um dos mais prováveis o uso do mesmo agente, décadas depois, para devastações na floresta amazônica, amplamente denunciadas pela imprensa brasileira, que depois repercutiram também na mídia internacional.
Sem aviso
Em 13 de dezembro de 2006, o jornal Hora do Povo dizia em manchete que um cientista, trabalhando para uma multinacional, vendera um parecer em que negava, mesmo sabendo ser verdadeiros, os efeitos cancerígenos do “agente laranja”.E prosseguia: “O jornal inglês The Guardian revelou que o cientista Richard Doll, aliás, Sir Richard Doll, considerado o precursor dos estudos que determinaram que o cigarro causa câncer de pulmão, já falecido, recebeu durante 20 anos pagamentos das corporações químicas, ao mesmo tempo em que investigava os produtos dessas empresas”.
O jornal revelava que na verdade Sir Richard Doll, apontado como cientista exemplar, era remunerado pelos fabricantes do “agente laranja”. Isto é, o próprio autor dos trabalhos ditos científicos era um laranja das empresas. Com efeito, a pedido do governo australiano, Doll dera um parecer de que “não havia evidência” de que o agente laranja causasse câncer.
Estas são amostras do contexto em que a expressão agente laranja, depois reduzido a apenas laranja, mudara de significado, passando a designar, não mais a substância armazenada em embalagem de cor amarela, mas uma pessoa que fazia as vezes de outra, a quem ocultava, como o agente laranja encobria os soldados. Não podendo ou não querendo apresentar-se defendendo a substância, a empresa contratara, a US$ 1.500 por dia, um cientista para fazer isso.
Em abril de 2007, em newsletter, Comunicação em Agrobusiness & Meio Ambiente, alertava os jornalistas das redações: “O CIB – Conselho de Informações sobre Biotecnologia circula pelas redações brasileiras apregoando o milagre da biotecnologia, as vantagens dos transgênicos e o atraso da agricultura tradicional”.
Dizia também: “O CIB manteve durante um bom tempo uma coluna (com direito a chamada de capa no suplemento agrícola do Estadão) a favor dos transgênicos (que pregava, inclusive, a dispensa de licenciamento ambiental)”. O Estado de S.Paulo informava tratar-se de “Informe Publicitário”. Quando, porém, a coluna era transcrita em outras publicações, desaparecia o aviso esclarecedor. A coluna deixou de ser publicada depois que a Lei de Biossegurança foi aprovada no Congresso.
Língua viva
Esses são os indícios do nascedouro da expressão, depois largamente consagrada até consolidar-se na língua portuguesa. Atualmente, os laranjas estão na ordem do dia e, como de costume, revelam-se ou estão sendo revelados a contragosto na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que está investigando os crimes atribuídos a Carlos Augusto de Almeida Ramos, mais conhecido como Carlinhos Cachoeira.
Pode ter havido, porém, importante mutação no laranjal. Há algum tempo estão aparecendo laranjas involuntários, cujo rendimento é pouco maior do que o salário mínimo, que não são cúmplices de crime nenhum, cujos nomes e dados bancários foram utilizados sem o conhecimento deles e por cujas contas bancárias, sem que eles soubessem, passaram milhões.
Neste segundo caso, eles foram tidos por outra fruta, a banana, abundante e barata, diferentemente da laranja, que é igualmente abundante, mas não barata. Veja o preço de um suco. De todo modo é abundante o número daqueles que ganham como teto o salário mínimo. Esses, porém, não foram tomados como pessoas frouxas ou sem energia, como querem os dicionários. O critério foi o preço vil com que seu trabalho involuntário é remunerado, pois foram pagos, não a preço de banana, mas uma quantia mais baixa ainda, zero.
O estranho redentor Lazarus Morell termina seus dias em 2 de janeiro de 1835, quando, segundo a fértil imaginação de Borges, estava “capitaneando sedições negras que sonhavam enforcá-lo” ou “enforcado por exércitos negros que ele sonhava capitanear”,as quais explorara com falsas promessas de liberdade, mas que, depois de descobrirem a verdade, queriam matá-lo. E, apesar de a Constituição americana garantir a igualdade, os negros só se tornariam livres após sangrenta guerra civil, que teve lugar algumas décadas depois.
Ainda não sabemos como vão terminar aqueles que vêm usando laranjas para seus negócios escusos. Mas é provável que terceirizem também eventuais condenações e o cumprimento das penas.
Até lá a língua portuguesa, uma entidade viva e dinâmica, terá criado novas expressões que vão demorar a entrar para os dicionários. Não vão demorar tanto como antes, uma vez que os dicionários agora podem ser eletrônicos, e talvez demorem a ser esclarecidas ou nunca o sejam cabalmente.
PS – Agradeço a Ari Riboldi e a Cláudio Moreno as conversas que tive com eles sobre o tema.
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[Deonísio da Silva é escritor e professor, tem 34 livros publicados e é vice-reitor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro]