Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ética, imprensa e vida privada

‘Nossos programas têm a vocação de tornar o telespectador disponível, isto é, diverti-lo, relaxá-lo para prepará-lo entre duas mensagens. O que vendemos à Coca-Cola é tempo do cérebro humano disponível.’ (Patrick Le Lay, PDG da TF1, em Les dirigeants face aux changements)

‘A grande maioria do público brasileiro não tem nenhum controle sobre o que escuta. Os estudantes universitários, meu público, só constituem 1% da população brasileira. Na França, o público se interessa por um tipo de música que a imprensa brasileira ignora. Nosso jornalismo tornou-se algo parecido com a TV: fotos enormes, sempre maiores que o texto, o que impede qualquer forma de análise.’ (Tom Zé, no jornal Le Figaro, 30/6/2005)

Essas duas epígrafes resumem o estado da mídia eletrônica e impressa no Brasil.

A primeira, apesar de ter sido escrita pelo président directeur général do canal que detém o maior ibope entre as TVs francesas, privatizado na década de 1980, poderia ter sido dita ou escrita por um homólogo brasileiro. O objetivo da TF1 é o mesmo dos canais brasileiros da TV aberta. Basta conferir a programação debilizante que oferecem ao telespectador para ver que apenas preparam seu cérebro, esvaziando-o, para receber as mensagens publicitárias.

Por outro lado, a observação de Tom Zé sobre a programação das rádios e a evolução da mídia impressa brasileira, que tem no USA Today o grande modelo, é muito justa.

Por que a autocrítica?

Há algum tempo assistimos a uma degradação geral na qualidade do que se ouve, se vê e se lê no Brasil. Nossos grandes jornais dão cada vez mais espaço ao jornalismo (?) de celebridades (?), com páginas inteiras para colunas sociais que publicam fotos enormes de nulidades de toda espécie. Um desperdício de papel e um acinte à inteligência dos leitores. Análise e reflexão encolhem, dando lugar a fotos gigantes e textos indigentes. Será que as pessoas que compram jornal estão interessadas nesse tipo de ‘informação’ sobre badalações noturnas de personagens que têm na vulgaridade o traço comum?

O tratamento da verdadeira notícia, por outro lado, toma um viés sensacionalista a cada dia. As primeiras páginas rivalizam em manchetes para seduzir os leitores nas bancas. Abre-se espaço exagerado para o noticiário policial, supervalorizado. A violência das ruas é o espetáculo de mau gosto oferecido diariamente em textos e fotos que deixam os leitores em estado de choque mas o preparam para a escalada, pois a cada dia se ultrapassa um limite. A política é a obscenidade que se vê todos os dias, em nível municipal, estadual e federal. Nisso, felizmente, os jornalistas não têm nenhuma responsabilidade.

Nesse contexto de deterioração da qualidade do que oferece a mídia impressa, por que fazer autocrítica e lamentar não ter sucumbido ao voyeurismo alguns anos atrás? Faço-me essa pergunta ao terminar a leitura do artigo do jornalista Ricardo Setti, publicado neste Observatório [ver remissão abaixo]. Nele, Setti analisa sua decisão de não publicar supostas verdades sobre a morte do escritor Pedro Nava, em 1984, quando era redator-chefe da IstoÉ. Ele conta que o jornalista Luiz Claudio Cunha teria dito, tentando convencê-lo a publicar a história do garoto de programa que teria chantageado Nava, levando-o ao suicídio: ‘Setti, mal comparando, é como se os jornalistas, preocupados com a repercussão de um tiro no peito, tivessem pactuado, em agosto de 1954, uma versão de que Getúlio morrera escorregando na banheira… É um absurdo não contar o que aconteceu’.

Um mínimo de respeito

Permitam-me discordar. A morte de Getúlio era um assunto de Estado. Getúlio se suicidou por motivos políticos. Não havia nada que justificasse o ocultamento da causa da morte. Nada a ver com o caso Nava. O escritor que dá um tiro no peito depois de receber um telefonema, supostamente de um garoto de programa, não é um affaire político. É uma história de sua vida privada. E vida privada é íntima, pessoal. O que ele manteve como privado em vida ninguém tem direito de tornar público depois de sua morte. Sobretudo porque ninguém pode provar que ele se matou por causa do telefonema do suposto chantagista. Um suicídio é um mistério humano, pode ter as causas mais secretas. Quem pode pretender conhecer as razões de um suicídio sem carta do suicida?

‘Não tenho a menor dúvida de que violamos nosso dever de jornalistas e deixamos de cumprir nossa missão para com o leitor. O preconceito foi mais social do que sexual. Poupamos o Nava por ele ser o Nava. Se fosse um modesto jogador de futebol ou cantor, teríamos publicado’, escreve Setti.

Permitam-me discordar. Ninguém viola o dever de jornalista ao se recusar o exercício do voyeurismo, ao se recusar a jogar lama sobre a vida privada de um morto. Vida privada é íntima, pessoal. Acho que o ser humano deve ser respeitado, seja jogador de futebol, cantor, compositor ou escritor reconhecido. Ou anônimo pobre, preto e favelado. Ser humano tem que ter sua dignidade respeitada. O silêncio respeitoso prova que havia, naquela época, justamente um mínimo de respeito pelo ser humano, o que hoje está desaparecendo da nossa sociedade e da nossa imprensa.

Reflexo da crise

Fiéis a uma ética que ainda predominava nas redações, os jornalistas de Veja e IstoÉ decidem não publicar a história contada por um garoto de programa. Por que se arrependem hoje de terem tomado uma decisão ética, ouvindo ponderações justas dos amigos de Nava, hoje qualificadas de ‘pressões’?

Fazer uma nova interpretação de uma atitude ética do passado é incompreensível. É preciso não confundir invasão de privacidade com dever de informar. Quem não tem um segredo em sua vida pessoal? Quem tem o direito de expor detalhes da vida íntima de um morto na praça pública? Em que o detalhe acrescentaria algo a uma reportagem sobre a morte de Nava? Vida privada deve ser respeitada.

Desde quando ceder à tentação de revelar detalhes aviltantes para a memória do morto, para a viúva e eventualmente para a descendência (que Nava não tinha) faz parte do ‘dever de informar’? Jornalismo e ‘dever de informar’ devem ser mais que publicar detalhes picantes da vida privada. Infelizmente, isso é moeda corrente de certa imprensa, pois escândalo vende jornal.

A deterioração dos valores éticos em nossa sociedade talvez explique a degringolada na qualidade dos nossos diários. A crise da sociedade brasileira deve-se à ausência desse ‘projeto Brasil’ que inclui a todos, de que fala Leonardo Boff no Jornal do Brasil (1/7/05). O individualismo exacerbado do ‘cada um por si’, a corrupção desenfreada de quem só pensa em ‘levar vantagem’ excluem qualquer respeito ao outro. Em seu magnífico texto, Boff resume a crise da sociedade brasileira. Nossa imprensa é um reflexo dessa crise.

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Jornalista