A história é conhecida. Quando os portugueses invadiram e destruíram a França Antártica, que ficava onde hoje existe a cidade do Rio de Janeiro, os nativos que gravitavam em torno da urbe francesa nos trópicos fugiram para os morros e lá estabeleceram moradia, mantendo, acredito, uma relação de amor e de ódio com o povoamento português que foi construído.
Em razão de sua topografia e da falta de interesse do poder público, o Rio de Janeiro cresceu em direção aos morros, mas sempre fez isto através de um processo de exclusão. Nos morros se estabeleceram os colonos pobres, depois os negros libertos, depois os soldados das guerras brasileiras e por fim os migrantes nordestinos. A ditadura consolidou este processo de exclusão social e geográfica criando “condomínios”, como a Cidade de Deus.
As favelas cariocas são cidades que cresceram à margem da cidade do Rio de Janeiro. Elas contribuem para a formação do erário público pagando impostos indiretos (ICMS etc…), mas não recebem em troca os benefícios que a administração pública proporciona às “áreas nobres” da cidade. Em nenhuma outra cidade brasileira o uso da expressão “áreas nobres” é capaz de captar a essência, a história da ocupação urbana e de exclusão social, quanto no Rio de Janeiro.
Poderes paralelos
Nas cidades-favelas, o poder público compete com o poder local e este se construiu na ilegalidade. O pobre cidadão carioca, que já contribui para a manutenção do Estado legal, é também obrigado a ajudar a construir o poder paralelo ilegal (comprando drogas, botijões de gás e serviços de Gatonet e pagando proteção às milícias). Quando os dois poderes entram em rota de colisão, como ocorreu antes da realização do Pan Americano, é também obrigado a enterrar seus mortos (quer eles tenham ou não algum tipo de relação com as quadrilhas que controlam os morros).
O processo de ocupação dos morros pelas UPPs parecia estar pacificando os morros. Mas o problema da exclusão sócio-econômica, que não foi e pelo visto não será atacado pelo poder público (que arrecada impostos nos morros e os utiliza para construir a infraestrutura necessária à realização de eventos internacionais em benefício do empresariado da orla marítima), é maior do que a contenção da criminalidade. Nos morros, a criminalidade recruta seus novos soldados entre desempregados; nos morros, por maior que seja a propaganda da Rede Globo, o Criança Esperança atende apenas a uma pequena parcela das crianças e a maioria tem boas chances de se tornar os delinquentes adolescentes de amanhã. A reconstrução dos poderes paralelos recomeçou porque, como no passado, o Estado não se interessou por dar alternativas à população dos morros.
Questão social não é caso de polícia
As guerras entre policiais e soldados do poder paralelo já recomeçaram. E agora, até o Exército começou a participar deste conflito como prova a notícia do Último Segundo.
O uso do Exército num contexto urbano e social como o do Rio de Janeiro é absurdo e inadequado. O Exército não vai construir alternativas para as populações que tem sido martirizadas pelos poderes paralelos e esquecidas pelo poder público. A missão da polícia é conter a criminalidade dentro de limites toleráveis e proporcionar uma sensação de segurança à população. A missão do Exército é eliminar completamente os inimigos, destruindo tudo aquilo que ele usa ou pode usar para seguir fazendo a guerra. Se estes conflitos entre os marginais e os soldados do Exército continuarem, o número de pessoas mortas nos morros será maior do que o que ocorreu durante as operações de limpeza do Bope antes do Pan Americano. No limite, caso seus oficiais comecem a ser abatidos, o Exército vai destruir as favelas com tiros de canhão, com bombas de fragmentação e incendiárias.
A imprensa precisa urgentemente perceber que a questão social não é caso de polícia, nem motivo para guerra interna contra os pobres.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]