Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Falta alguém na homenagem

A edição nº 1.941 da revista IstoÉ (de 10/1/2007) homenageia os 100 brasileiros mais influentes, versão 2007. Estão entre eles estão Fernando Gabeira, a menina Joana Mocarzel, MV Bill, Viviane Senna e padre Marcelo Rossi, todos dignos de nosso particular aplauso. Não questiono nomes; a revista tem lá seus motivos, sua linha editorial, suas pesquisas, mas, certamente, há omissões. Encontrei uma.


A mesma revista, na edição 1.940, assim como a mídia brasileira, de um modo geral, noticiou a despudorada iniciativa dos congressistas brasileiros de elevarem, no apagar das luzes de 2006, seus subsídios em 90,7%, num flagrante desrespeito para com o povo. Um amigo pessoal, inconformado, dizia-se desiludido e frustrado com os impostos que paga regularmente. Segundo ele, faltavam caras-pintadas e muita gritaria para tentar restabelecer um mínimo de decência nestas terras tupiniquins. Dizia ele: ‘Você vai ver, fica desse jeito mesmo. Ninguém reclama, ninguém diz nada… Somos um povo fraco.’


A homilia do arcebispo


Acertado (ou quase acertado) o superaumento, era hora de rezar, de agradecer a Deus por vivermos em um país tão pródigo de recursos, que não tem profundas desigualdades sociais, que não sofre com enchentes, com insegurança e, por isso, de bom grado, pode duplicar o salário de seus congressistas. Benza-nos Deus, amém! Para a missa de final de ano, no Salão Nobre do Congresso, convidou-se para celebrante dom João Braz de Avis, arcebispo de Brasília.


O que esperavam ouvir os congressistas na homilia? Certamente, apesar de tudo, algum elogio ao ano legislativo e, de lambuja, aquele lugar-comum de que o comércio deturpa o verdadeiro sentido do Natal. Terá feito isso o arcebispo? Não sei. Prefiro acreditar que, a seus olhos, os capitalistas honestos, que vendem mais e dão mais empregos no Natal, não se comportam como os vendilhões do templo.


Pedaço de vida que vale uma história


Mas o arcebispo escolheu um alvo. Contrariando meu amigo pessimista, ele somou-se às manifestações da CUT e da UNE, e, cara a cara com os presidentes da Câmara e do Senado, não fugiu à responsabilidade de ser a voz dos que não têm voz e fuzilou: ‘Como aceitar que um parlamentar brasileiro receba mais de R$ 800 por dia quando boa parte das pessoas que representa é obrigada a viver com R$ 12 por dia?’. E arrematou, a seguir: ‘Atitudes como as que temos visto matam o espírito do Natal.’


A fala do bispo, reproduzida em IstoÉ, foi também divulgada pela televisão. Os políticos ouviram o sabão público sem direito aos apartes, que tanto apreciam. Encanta na atitude de dom João a coragem de fazer a crítica na casa dos congressistas, em sua presença. Dom João não tergiversou, gerou um constrangimento público e uma reunião para rediscutir o assunto.


Depois da missa, os parlamentares recuaram. Àquela altura, é bem verdade, o Supremo Tribunal Federal já decidira que o assunto seria levado a plenário, não se aceitando a simples decisão dos líderes dos partidos, mas, mesmo assim, o reverendo não perdeu a oportunidade… Ajudou a esmorecer uma iniciativa que nos denigre enquanto nação que apregoa o viver sob o manto da democracia.


Na matéria de IstoÉ, que homenageia as personalidades, há um quadro informativo sobre a trajetória do laureado. No caso de dom João, estivesse ele entre os agraciados, bastaria a citação das aludidas frases corajosas, pedaço de vida que vale por uma história.

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Professor