Para o leitor/ eleitor mediano, torna-se bastante difícil conhecer o terreno onde pisa, nos tempos que vive o Rio Grande do Norte e, por extensão, o Brasil. O jogo da nossa política, o quadro da nossa representação, não são apenas sujos. Pense numa cloaca. Dir-se-ia um monturo de lixo que se avoluma, porque aprisionado a um continuum. Num crime político que se reproduz, se multiplica e se eterniza. No caso da mídia, em especial da imprensa escrita, que seria o chamado Quarto Poder, não se vislumbram muitos entusiastas do bom combate. Em especial, entre os formadores de opinião.
No caso potiguar, raras são as vezes em que o leitor-eleitor se depara com artigos, opiniões, editoriais, matérias, reportagens que falem direto ao seu coração, sendo seus óculos, tocando no assunto, dissecando, esclarecendo. A imprensa potiguar, adotando uma posição de ‘não é comigo’, fica em cima do muro. De modo que colabora, estimula e promove esse quadro de horrores, permitindo que ele se conserve mais 200 anos, e percamos, nós que agora vivemos, os melhores anos de nossas vidas, explorados e extraviados por quadrilhas de ‘espertos’, na sua maior parte desqualificados, que assomaram o poder e que posam impunes, apenas ricos materialmente com o resultado dos seus butins, a desfrutar os lucros de roubos e pilhagens do patrimônio público.
José Ingenieros (1877-1925), médico, filósofo e escritor argentino, que teve profícua produção nas décadas de 1910 e 1920, escreve, em O homem medíocre, como se olhasse para o Rio Grande do Norte e para o Brasil dos dias que correm. ‘Políticos sem-vergonha houve em todos os tempos e sob todos os regimes, mas eles encontram melhor clima nas burguesias sem ideais’.
Descreve, com vivacidade e propriedade, um quadro em tudo semelhante ao que nos deparamos nas ruas, nos salões, na mídia, nos mercados e gabinetes. Sobre a decadência moral das classes dirigentes, ele acredita que tenha início nas primeiras décadas do século 20. E escreve, como se estivesse dissecando a vida potiguar de 2006: ‘Em cada comarca, uma facção de cavadores detém as engrenagens do mecanismo oficial, excluindo de seu seio quem quer que desdenhe ter cumplicidade em suas empresas. Aqui são castas emergentes, ali sindicatos industriais, acolá facções de tagarelas. São quadrilhas e se intitulam partidos. Tentam disfarçar com idéias seu monopólio do Estado. São bandoleiros que buscam a encruzilhada mais impune para espoliar a sociedade.’
Deve-se ressaltar, contudo, as exceções, jóias reluzentes que restam nesse negrume, com intervenções freqüentes ou intermitentes, mas muito poucas, diante da situação extrema que vivemos. São vozes isoladas – justiça seja feita – que vez ou outra se levantam, como fósforos que se acendem, mas logo se apagam, no horizonte de breu que é a rotina do estado.
Com o perdão das omissões que certamente serão cometidas, pode-se citar profissionais como Marcos Aurélio de Sá, jornalista e professor de Ética no Departamento de Comunicação Social (para futuros jornalistas) da UFRN, administrador-proprietário do Jornal de Hoje, com seus eventuais editoriais, antológicos, que poderiam ser reunidos em livro, à guisa de se perenizarem. Vez ou outra, escreve artigos corajosos, esclarecedores, seguindo a filosofia do seu jornal, de ‘defesa da livre iniciativa’.
Presença da maior importância no espectro da nossa imprensa responde pelo nome de Gaudêncio Torquato, filho de Portalegre (RN), especialista em comunicação organizacional e marketing político e eleitoral, e figura de expressão nacional, como jornalista, professor titular da USP e consultor político. De leitura obrigatória são seus artigos aos domingos, na segunda página de O Poti/Diário de Natal, com análises circunstanciadas não apenas sobre a política paroquial, mas enfocando a vida pública no âmbito nacional.
Voltando ao Jornal de Hoje, destaca-se a coluna do jornalista e publicitário Alex Medeiros, que eventualmente joga alguma luz sobre a cena do crime político que nos prostra. Como na quinta-feira (31/8), quando nos presenteou com as seguintes notas, que merecem reprodução:
Terror – A matéria na página 11 do JH Primeira Edição de ontem merecia capa dos mais importantes jornais brasileiros e manchetes dos grandes telejornais. Desde a matança no Iraque, eu não tinha visto ainda algo tão aterrador, tão medonho, tão safado, escroto e criminoso. Jack, o estripador, ficaria com inveja.
Terror II – O serviço público de saúde está tratando pessoas, seres humanos, gente do povo, como se fossem brinquedos quebrados. Pacientes estão sendo amputados, supridos de partes dos seus corpos, por causa da falta de estrutura no SUS para atender problemas causados por diabetes, por exemplo.
Apatia – Não existe qualquer sintoma de que a população brasileira esteja ou ainda vá se interessar pela campanha eleitoral. O povo começa a perceber que políticos e partidos não têm essa importância toda que a cultura nacional tentou impor durante toda a história da República.
Imposição – O voto é um direito adquirido após a ditadura militar, mas não pode ser um dever, imposto por lei ao povo. O Brasil é uma republiqueta, um paiseco sem importância no contexto internacional, apesar das loas cantadas pela mídia tupiniquim. O voto obrigatório é um acinte ao mundo civilizado e democrático.
O voto – É apenas um voto que se dá a alguém que quer mudar de vida, mas jamais irá mudar a vida do eleitor. Só quem muda a nossa vida somos nós mesmos, dentro das perspectivas abertas pelo mercado. A propaganda do TSE sobre o voto é um exagero, ele não é essa coisa tão imprescindível assim.
A política – Um político é apenas um funcionário público que soube se dar bem num país sem formação. Os estados e as cidades são como empresas cooperativas, onde todos resolvem nomear alguns representantes para geri-las. Portanto, os políticos são apenas os empregados eleitos para tomar conta do que é da sociedade e não deles.
O político – Não é preciso o tom solene, a babação, a formalidade quando nos dirigimos a um político. Por mais que um título de senador impressione, lembre-se que o dito cujo é apenas um cara que só tem aquele bom emprego porque você assim o quis, dando-lhe o voto. Não é o voto que é tão bom quanto o Brasil. Boa é a cidadania que não precise dos políticos para ser plena.
Moral
Da nossa imprensa, José Ingenieros diria:
‘Cada ajuntamento humano crê que a verdadeira moral é a sua moral, esquecendo que existem tantas morais quantos rebanhos de homem. Uma pessoa é infame, viciosa, honesta ou virtuosa no tempo e no espaço. Cada moral é uma medida oportuna e convencional dos atos que constituem a conduta humana. Não tem existência esotérica, como não a teria a sociedade abstratamente considerada.’ (O homem medíocre, José Ingenieros).
Há colunas que merecem acompanhamento e lembrança no Jornal de Hoje 1ª Edição, como a de Robson Carvalho (‘Espaço Cidadão’), a de João Ricardo Correia (‘João Ricardo Correia’), a de Túlio Lemos (‘Política’), que, cuidando das searas da política e da cidadania, embora essencialmente informativas, muitas vezes trazem denúncias próprias a um jornalismo de primeira linha.
No Diário de Natal, destaca-se a coluna ‘Roda Viva’, de Cassiano Arruda Câmara, decano do colunismo político, formador de opinião de mérito e prestígio, mas que utiliza com parcimônia a artilharia pesada de que dispõe. Ele que é um dos mais bem-informados homens de imprensa da nossa terra, com um histórico que equivale a um apreciável patrimônio. Responsável pelos editoriais do DN, lança diariamente, em conta-gotas, informações de cocheira e informes insinuantes e reveladores, oferecendo, contudo, apenas os rastros, signos, trilhas, vestígios, pistas das grandes negociatas que se maquinam e se realizam sob os narizes dos leitores/ eleitores, que ficam, nesse caso, aflitos e ansiosos, vivendo a agonia da informação truncada, do ‘galo cantou, mas ninguém sabe onde’.
Os prefeitos tremem
Jornalista consciencioso e meticuloso, profissional de atividades plurais, seja como diretor de negócios e consultor da Agência Art&C, seja como colunista no jornal Diário de Natal, com uma das colunas mais lidas da imprensa potiguar, professor da UFRN, Cassiano legou ao Rio Grande do Norte um verdadeiro tesouro, com suas lições de jornalismo no livro Um Repórter na Roda Viva (2002), onde narra a trajetória de três décadas escrevendo sobre o Rio Grande do Norte. Mas não se pode deixar de mencionar as excentricidades que algumas vezes comete, como o invejável profissional que é, com atributos intelectuais e uma capacidade de trabalho que desafia a média potiguar, ao ficar dando conta de que ‘o senador José Agripino Maia se encontra em Nova York, onde foi visitar o neto Lucas’, quando se sabe que o Lucas se instalou na Grande Maçã às custas do sofrido e desorientado povo norte-rio-grandense. De qualquer maneira, o leitorado potiguar muito aproveita o talento de Cassiano, que se dispõe a prestar assistência informacional concedendo valiosas comunicações.
Vale registrar o fato lamentável de alguns periódicos de Mossoró, cidade que faz inveja à capital pelo mercado de trabalho que abriu com seus inúmeros jornais impressos, mas onde os compromissos são firmados muito mais em termos de confronto, devido à dimensão da urbe do Oeste. Não recomenda defender prefeitos do interior, justificando seus caprichos, no que diz respeito ao pagamento de royalties pela Petrobras pela atividade de exploração e produção de petróleo e gás natural na Bacia Potiguar, repassados em dinheiro a 92 prefeituras de municípios produtores de petróleo. Os editores do De Fato sabem que não ocorre o que se relata na matéria intitulada ‘Royalties melhoram infra-estrutura’. Nesses municípios, sabem as redações dos jornais, no mais das vezes, se alojam verdadeiros grupos de malfeitores em torno dos gestores a fim de administrarem, em caráter privado, as florescentes receitas conseguidas, cujos benefícios passam distantes dos bigodes de seus munícipes/ contribuintes/ cidadãos.
Tanto que os prefeitos tremem nas bases quando sequer imaginam que poderão ser objeto de fiscalização por parte da Corregedoria Geral da União (CGU), como aconteceu agora em Pendências, que fez parte do 17º sorteio, realizado em 16 de agosto de 2005, com uma lista dos municípios brasileiros que passariam pela fiscalização de recursos públicos por auditores da CGU. Os diretores do Jornal De Fato sabem que ter a juíza substituta da 8ª Vara da Justiça Federal, Maria Júlia do Carmo Pinheiro, acatado um pedido cautelar feito pelo Ministério Público Federal (MPF) culminou com o afastamento do cargo do prefeito Jailton Barros de Freitas e de mais nove servidores de sua confiança na prefeitura de Pendências, por desvios de recursos que chegam ao montante de quase R$ 3 milhões, levando de roldão inclusive o irmão do prefeito, Wilton Barros de Freitas, embora com a concessão de um prazo de 15 dias para apresentarem defesa à Justiça Federal.
Quadro dantesco
A verdade é que a grande imprensa do Rio Grande do Norte, em sua quase totalidade, se encontra comprometida, de uma forma ou de outra, com o jogo político institucionalizado, participando do ‘bate-bola’ com aqueles que o povo chama de ‘cachorros grandes’, obrigando os leitores/ eleitores/ contribuintes/ cidadãos a suportar e até alimentar esse quadro, de forma aparentemente impotente, entra eleição, sai eleição, entra-ano-sai-ano, no qual o único prejudicado se chama, efetivamente, o povo. Para alumiar a cena em que trabalhamos e vivemos na terra potiguar, recorra-se mais uma vez a José Ingenieros, de quem se recomenda leitura de toda a obra, mas especialmente de O homem medíocre, onde ele pondera:
Quando as nações dão em baixios, uma facção se apodera da engrenagem constituída ou reformada por homens geniais. Florescem legisladores, pululam arquivistas, os funcionários são contados por legiões, as leis se multiplicam, sem com isso ter sua eficácia reforçada. As ciências convertem-se em mecanismos oficiais, em institutos e academias, em que jamais brota a genialidade e o próprio talento é impedido de brilhar. Sua presença humilha pela força do contraste. As artes tornam-se indústrias patrocinadas pelo Estado, reacionário em seus gostos e avesso a toda previsão de novos ritmos ou de novas formas. A imaginação dos artistas e poetas parece aguçar-se em descobrir as brechas do orçamento e se infiltrar por elas. Em tais épocas, os astros não surgem. Folgam; a sociedade não necessita deles, basta-lhes sua coorte de funcionários. O nível dos governantes cai até chegar a azero. A mediocracia é uma conspiração dos zeros contra as unidades. Cem políticos torpes juntos não valem um estadista genial. Some dez zeros, cem, mil, todos os zeros da Matemática e não terá quantidade alguma, nem sequer negativa. Os políticos sem ideal marcam o zero absoluto no termômetro da História, conservando-se limpos de infâmia e de virtude, eqüidistantes de Nero e de Marco Aurélio.
E ainda:
‘Nesses parênteses de embrutecimento aventuram-se as mediocracias por caminhos ignóbeis. A obsessão de acumular tesouros materiais, ou o torpe afã de usufruí-los na ociosidade, elimina do espírito todo rastro de sonho. Os Países deixam de ser Pátria, qualquer ideal parece suspeito. Os filósofos, os sábios e os artistas estão sobrando. O peso da atmosfera estorva suas asas e eles deixam de voar. Sua presença mortifica os traficantes, todos os que trabalham por lucro, os escravos da economia ou da avareza. As coisas do espírito são desprezadas. Não lhes sendo propício o clima, seus cultores são muito poucos, não chegam a inquietar as mediocracias, estão proscritos dentro do país, que mata a fogo lento seus ideais, sem precisar desterrá-los. Cada homem fica preso entre mil sombras que o cercam e o paralisam.’
Esse quadro, ainda mais dantesco, poderá ser complementado, já que uma coisa que se cristaliza e que se mantém como certa nesse campo de trabalho, é que não existe mais lugar para ingênuos. Natal e o Rio Grande do Norte não são para principiantes. E quem milita na área compreende.
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Jornalista, escritor, colunista do semanário Jornal de Natal (http://radarpotiguar.bogspot.com)