Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Faltam informações sobre direitos adquiridos nas reportagens da reforma da previdência

A imprensa tem revelado recentemente que mais de 100 mil servidores, já aptos a se aposentar, podem abandonar o serviço ativo, temerosos de serem prejudicados com a reforma da Previdência, que acaba de ser encaminhada ao Congresso pelo Presidente da República.

Essa projetada reforma trata-se de um projeto de emenda constitucional que busca alterar regras previdenciárias sobre a aposentadoria na iniciativa privada e no serviço público.

Embora o governo diga que a reforma não prevê mudança para quem já tenha direito ao benefício, a imprensa não tem dado o tratamento adequado para a questão, gerando bastantes dúvidas no seio da sociedade.

O objetivo deste artigo é esclarecer os pontos sobre os quais nem o governo nem a imprensa estão dando a devida atenção, e, assim, conceder maior segurança jurídica aos servidores que já tenham direito a se aposentar e podem continuar na ativa sem riscos.

A questão diz respeito não apenas a direitos individuais dos servidores, mas a garantias constitucionais, que pareceram tão relevantes ao legislador constituinte, que ele as consagrou por expresso na Lei Maior. Segundo o art. 5º, XXXVI, da Constituição, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Ora, o projeto de emenda constitucional, entre outros pontos, prevê: a) aumento da idade mínima para aposentadoria; b) fixação de tempo mínimo de contribuição; c) eliminação da aposentadoria apenas por tempo de contribuição; d) fixação de alíquotas progressivas para contribuir com a Previdência; d) regras de transição para a passagem para o sistema novo.

Aqueles que já têm tempo para se aposentar pensam que, aposentando-se já, ficarão totalmente livres das amarras que poderão ser trazidas pelo novo sistema. Pois aqui é preciso esclarecer bem as questões envolvidas.

A verdade é que as novas regras não podem prorrogar o tempo nem aumentar os requisitos necessários para aposentar-se em relação a quem já tenha preenchido as condições exigidas pela legislação atual. Quem já tem direito de se aposentar pelas regras hoje vigentes não pode ser atingido pelas mudanças dessas regras, mesmo que essas mudanças venham sob reforma constitucional, pois a nova lei só pode dispor para o futuro, não para o passado.

Dentre as cláusulas pétreas da Constituição (inalteráveis mesmo em sede de reforma constitucional), inscrevem-se os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, da CF). Não se admite que o poder constituinte derivado suprima ou diminua garantias individuais. Assim, nenhuma alteração pode ferir o direito à aposentadoria já adquirido pelas regras anteriores à reforma – mesmo as emendas constitucionais não podem atingir direitos adquiridos.

O direito se reputa adquirido não no momento em que é efetivamente exercido, mas sim desde o momento em que já pode ser exercido mesmo que não o seja (cf. art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.). “Vindo a existir o direito, é este um direito adquirido” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Poder constituinte e direito adquirido, RT, 745/18 e 24).

Por isso, disse Francisco Campos: “quando se cumprem todas as condições para que o funcionário possa aposentar-se, configura-se para ele o direito adquirido à aposentadoria; não importa que ele não exerça desde logo esse direito. O exercício do direito não cria o direito; este, ao contrário, é que autoriza, legitima e torna possível o seu exercício” (Direito administrativo, II/129).

Direito adquirido não é só o que se forma nas relações do direito privado, e sim também o do funcionário em face da Administração. Assim, o legislador infraconstitucional (e nesta categoria se insere o poder constituinte derivado) deve obrigatoriamente respeitar o direito adquirido, consagrado na própria Constituição (art. 5º, XXXVI), em seu cerne fixo (art. 60, § 4º, IV), tornando-se irretroativa a norma editada pelo poder constituinte derivado.

O princípio da isonomia exige tratamento igual para os que estão na mesma situação, e diferente, para os que se apartam da situação comum. Há relevantes diferenças, inclusive e principalmente impedimentos distintos, entre a iniciativa privada e os servidores públicos, que devem ser levados em conta na disciplina de ambas as situações.

Os servidores públicos têm vedações e impedimentos próprios, distintos e até mesmo inconfundíveis com os da iniciativa privada, e mesmo díspares entre os próprios servidores entre si, não sendo possível alterar direitos fundamentais das pessoas sem levar em conta as diferenças e sem a rigorosa obediência aos limites da Lei Maior.

É sobretudo imperioso reconhecer a necessidade não só de preservação dos direitos de todos os que já se aposentaram validamente sob as regras vigentes, como também daqueles que, embora ainda não se tenham aposentado, já conquistaram o direito à aposentadoria voluntária antes da eventual promulgação das emendas.

Ainda há mais a considerar. As leis de transição não podem igualmente desconsiderar a justa expectativa de quem, fundado no estatuto jurídico vigente — consagrado na própria Lei Maior, que, por definição, tem mais estabilidade — já gastou a maior parte de sua vida útil a serviço das instituições de Estado, e agora pode ver-se colhido pelas mudanças às vésperas de completar o tempo até então exigido para licitamente ingressar na inatividade — e sem que tenha mais o tempo de reorganizar sua vida e seus planos previdenciários e complementar aquilo que os governantes do momento procuram tirar-lhe quando já não terá mais idade para recomeçar a vida profissional e fazer um condizente plano previdenciário privado.

Enfim, para reformar a Constituição Federal, não se podem desconsiderar as regras básicas, pois até mesmo uma emenda constitucional pode ser declarada inconstitucional, se não for feita na forma e dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, como já o reconheceu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939-DF, ao decretar a inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional n. 3/93.

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Hugo Nigro Mazzilli é advogado e professor emérito da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.