O ano de 2008 vai entrar para a história como um dos mais pobres em matéria de times, craques e feitos memoráveis na rica mitologia de nosso futebol. Tão modesto foi o balanço futebolístico que o grande destaque da temporada não calçou qualquer das esfuziantes chuteiras da moda, não envergou a dez de algum grande e muito menos balançou as redes adversários – na verdade sequer foi preciso adentrar aos gramados para ser decisivo. Estou falando de sua excelência, o torcedor, que carregou seus times nas costas na base do grito, com seus cantos de incentivo, sua fidelidade canina. E ponha fidelidade nisso para suportar sem desanimar o futebol chinfrim que a crônica especializada não só fez de conta que não viu, como ainda teve o caradurismo de encher a bola.
A mídia está na dela, é claro. Tanto faz se o produto é bom ou ruim, pois como diria aquele antigo e festejado cronista dos tempos do Lusíadas FC, faturar é preciso, jogar não é preciso. Com direito ao repertório de odes e hipérboles que os arautos ludopédicos tanto apreciam. E nem poderia ser diferente, não só por força do hábito lapidado através dos tempos, que resultou até em literatura da melhor qualidade, como para compensar a atual aridez dos campos. O que não é nenhuma mixórdia: convenhamos que tirar água de pedra não é para qualquer um. Se bem que o nivelamento por baixo acabou sendo uma mão na roda para todos, ao postergar o interesse pela disputa do Brasileirão até a última rodada, coisa que aconteceu pela primeira vez na era dos pontos corridos.
Tábua de salvação foi a precariedade
Para entender melhor a coisa, é preciso reconhecer que há duas maneiras clássicas, digamos assim, de encarar o futebol hoje em dia. Uma, sob o ponto de vista do torcedor inveterado, para quem o próprio espetáculo é secundário desde que sua equipe vença. Este torcedor pode ser fanático ou comedido, ou seja, aquele que vai empurrar o time nas arquibancadas, o tal décimo segundo jogador que ultimamente anda fazendo toda a diferença, como foi dito de início, e aquele que fica amoitado, por racionalismo ou senso profissional, travestido em narrador, comentarista e afins. Que também é filho de Deus e, portanto, tem todo direito de nutrir lá suas paixões clubísticas, ainda que camufladamente.
Neste gênero, há até os que não escondem o jogo e mesmo assim se fazem respeitar exatamente por abrir o coração, por não deixar que o passionalismo tenha a palavra final. Ou seja, sabem separar a paixão da razão, ou pelo menos se esforçam para tal, que afinal ninguém é de ferro. Um dos nomes mais antigos e conhecidos a seguir a linha consagrada por Nelson Rodrigues, com sua veneração pelo Fluminense, é o folclórico jornalista gaúcho Paulo Sant´ana, cujo gremismo exacerbado, exposto em coluna e blog de leitura obrigatória no jornal Zero Hora, e normalmente intempestivas participações na rádio Gaúcha, não o impede, a exemplo do que fez este ano, que leve os próprios gremistas ao paroxismo, com o alto grau de exigência que costuma extravasar em relação ao time tricolor.
Pois não deixa de ser curioso que um cronista assumidamente comprometido com as cores gremistas, como Sant´ana, tenha sido um dos raros a destoar da rasgação de seda da maior parte da mídia a um campeonato cuja tábua de salvação foi, na verdade, a própria precariedade do futebol exibido pelas equipes, mesmo pelo campeão, o tricampeão São Paulo. Que chegou a estar virtualmente afastado na luta pelo título, ao ficar 11 pontos atrás do então líder Grêmio, na virada de turno, e ainda assim recuperar o terreno perdido a partir do momento que passou a jogar um pouquinho de bola. Graças também, é claro, ao desandar do Grêmio e de postulantes ainda mais trôpegos, como Cruzeiro, Palmeiras e Flamengo.
Máfias patrocinadas por empresários
São poucos os que, como Sant´ana, mesmo amantes do futebol e assumindo suas preferências clubísticas, se recusam a perder o senso da dura realidade de nosso futebol em contraposição à grande maioria que, por comodidade ou conveniência, prefere o velho e matreiro jogo do faz de conta. Para estes, problemas como o colapso dos clubes, em função de uma legislação inicialmente caótica e que vem sendo precariamente remendada, cuja maior conseqüência foi deixar nosso futebol à mercê da pirataria e do mercenarismo de empresários, dirigentes e mesmo de jogadores, são tabus que estranhamente passam ao largo das quilométricas resenhas futebolísticas que infestam as programações.
Mais do que o pecado da conivência, a mídia tem sido cúmplice de uma situação que vai se agravando inexoravelmente, na medida em que a cada ano cresce o êxodo de atletas, como atesta o novo recorde de transferências verificado em 2008,com quase 2 mil jogadores se transferindo para todos os quadrantes do planeta. E com um detalhe ainda mais grave: o cerco maior agora é em torno de meninos mal saídos dos cueiros. O esquema vem crescendo de tal maneira que já não são poucas as escolinhas de futebol espalhadas por todo o país e custeadas por clubes europeus.
O que explica por que cada vez mais desconhecidos brazucas, como são chamados, se destaquem em outros países, a ponto de se naturalizarem e acabarem jogando por essas seleções. Como está por acontecer com Amauri, da Juventus (Itália), que saiu daqui ainda como jovem desconhecido e hoje é um dos melhores atacantes do futebol italiano.
Nada disso é novidade para os macacos velhos de nossa imprensa que, no entanto, não têm a coragem de usar seu prestígio para zelar por causas absolutamente essenciais para a sobrevivência de nosso futebol. Como encontrar meios de proteger os clubes da rapinagem de empresários que, beneficiados pela legislação, fazem um verdadeiro trabalho de aliciamento junto aos jovens atletas, solapando o trabalho de formação dos clubes no nascedouro nas idades mais tenras? A ponto de legítimas máfias se alojarem nos clubes, patrocinadas por empresários que plantam agentes e financiam funcionários e dirigentes a fim de se apossar dos direitos sobre os garotos que despontam.
A turma que não dá nem tira folga
Este é talvez o grande nó a ser desatado para que os clubes readquiram sua autonomia e dignidade. Ou tem cabimento que clubes tradicionais e de tantas conquistas dependam cada vez mais de parcerias paliativas com os próprios empresários e investidores para poder montar equipes que dêem para o gasto? Sim, pois como sonhar com grandes equipes num cenário em que um jogador mal se destaca e o clube já é compelido a vendê-lo? Em que o prazo de validade das equipes mal chega aos seis meses? Um processo tão rápido que as reposições vão se tornando um desafio cada maior, sem falar na gradativa perda de identidade e respeitabilidade dos clubes junto a seus próprios torcedores, pois não são poucos os desencantados com os rumos que as coisas tomaram.
Outra questão subtraída dos debates e praticamente arquivada pelo grosso da imprensa é a velha aspiração da inclusão na legislação esportiva de leis que enquadrem os dirigentes, tanto de clubes como de entidades. Sobretudo, o da responsabilização pessoal no desempenho de suas funções e o veto a praga do continuísmo, de longe o maior flagelo que aflige os clubes e entidades que regem não só o futebol como as demais modalidades. A começar pelo reinado irrevogável de Ricardo Teixeira e Arthur Nuzman à frente da CBF e do COB, respectivamente.
É decepcionante, para dizer pouco, que mesmo num período de recesso geral, normalmente dedicado a reflexão e balanços, nem assim a imprensa se disponha a discutir a conjuntura de nosso futebol, preferindo rechear suas programações com a xaropada de sempre, ou seja, retrospectivas, festividades, matérias requentadas e o supra-sumo da encheção de lingüiça: as impagáveis prosas em forma de entrevistas, reunindo a turma que não dá e nem tira folga nem nas férias.
Como diriam uns e outros, ‘nóis’ merece.
Bom ano novo a todos.
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Em Tempo: Entre a redação deste texto e sua publicação, o programa Arena Sport TV do dia 31/12, sob o comando do competente Kleber Machado, deu uma mostra de que quando quer nossa crônica esportiva dá conta do recado. Em instigante entrevista com o presidente corintiano Andrés Sanches, soube-se, por exemplo, que o clube é o primeiro a reformar seu estatuto no sentido de coibir o continuísmo, estabelecendo aquilo que muitos defendem para o próprio país, ou seja, o fim da reeleição.
Escaldado pelos abusos cometidos pelo ex-presidente Alberto Dualibi, a volta ao poder só será permitida após duas eleições, no caso do Corinthians, portanto, em seis anos. Um belo exemplo, que prova estar nas mãos dos clubes o poder de erradicar os males que afligem nosso futebol.
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Jornalista, Santos, SP