A polícia passou dois anos investigando, a promotoria tentando acelerar o processo, a defesa tentando protelá-lo ou extingui-lo e agora se gasta muito dinheiro para organizar o julgamento, convocar um júri e, finalmente, estabelecer se o casal Nardoni foi ou não responsável pela morte da menina Isabella. Nada disso era necessário. Os Nardoni não precisam de júri, já que a imprensa já os julgou.
Uma passada d´olhos na Folha de S.Paulo de quarta-feira (24/3) dá mostra da suprema onisciência do jornal. ‘Defesa dos Nardoni não consegue negar laudos’, diz a primeira página, aquela que os donos de bancas estampam bem grandona para que leitores e não leitores habituais da Folha possam ver na sua corrida diária.
E qual é o problema com a chamada? É que ela não é factual. Os que não conhecem os meandros do jornalismo podem muito bem não saber que quando há juízo de valor num texto, algo de jornalístico já foi descartado dele. Um jornal tradicional estamparia algo como ‘Defesa contesta laudos do caso Isabella’, pois o advogado Roberto Podval realmente contestou-os. Se queria estampar uma frase que provocasse a ovação da galera, que há dois anos está com sede do sangue dos acusados, o jornal poderia dizer: ‘No júri, delegada diz ter convicção de culpa dos Nardoni’. Pois isso de fato aconteceu.
Vítimas e acusados do mundo-cão
Direis então, ora, não é verdade que os advogados de defesa não conseguiram negar os laudos da acusação? Responderei de pronto: não sei. Nem vós. Nem o papa. Nem, diga-se, os repórteres da Folha de S.Paulo. E aí é que está o erro. Pois quem vai decidir se a estratégia da defesa foi eficaz em negar os tais laudos é o júri. É para isso que servem os jurados. Mas essa decisão só virá no fim do julgamento. Até lá, ou os repórteres estão se fiando excessivamente em sua bola de cristal ou estão apenas pegando carona no sensacionalismo que já vem atrapalhando este caso desde o dia da morte da garota.
Há grupos de acompanhamento do caso, formados por mães comovidas e pessoas desocupadas, deliciados por finalmente haver chegado o dia que há tanto vinham esperando. Há comentaristas de polícia do porte de um Marcelo Rezende invadindo revistas e programas de variedades no meio da tarde. Os Nardoni podem apodrecer na cadeia a partir dos próximos dias, mas hoje eles são verdadeiros campeões de audiência. São o hit. São o uó.
Citei Marcelo Rezende e lembrei-me de uma entrevista que ele dera anos atrás para criticar – preste atenção à ironia – o sensacionalismo. Foi o caso do Gugu Liberato e aquela falsa entrevista que ele divulgou no seu programa com o PCC ameaçando Rezende, entre outros. Defendendo-se, indignado, o repórter deu-se um minuto de condescendência ao dizer: ‘Mas precisamos lembrar que os nossos programas e as nossas TVs não têm propósito educativo.’
Ele estava certo. Também acho que não há lógica em pedir que José Luiz Datena profira aulas de matemática nas tardes da Band, em lugar de mostrar vítimas e acusados do nosso mundo-cão.
Espetáculo justifica a notícia
O que não dá é para embarcar numa comoção pública quando ela, por si mesma, desrespeita todos os princípios que norteiam os diversos códigos de processo, principalmente o penal, quando estes códigos têm o intuito de evitar que a Justiça seja, ironicamente, injusta. É por isso, por exemplo, que o júri, depois de convocado, é posto em isolamento. Ele não pode ter contato com jornais nem pode receber pressão de manifestantes – não, pelo menos, antes que os diferentes interesses ocultos deles tenham sido igualmente julgados, coisa que nunca acontecerá.
Assim, espera-se que os jurados, antes de proferirem a sentença, não tenham sabido que, segundo a Folha, a ‘defesa não conseguiu negar os laudos’ do caso durante o julgamento. É bom mesmo que eles não leiam o jornal. E não falo somente da capacidade de a mídia influenciar a decisão final do júri. Lembro também que seria lícito, ao tomar contato com a chamada da Folha, que um jurado mais cônscio se perguntasse: ‘Então, que cazzo eu estou fazendo aqui?’
Mas, e é aqui que eu quero chegar, os jurados já tiveram dois anos para ler jornais e ver TV antes de serem postos em isolamento. Nesse meio tempo eles tiveram contato com muitas e muitas manchetes do estilo desta que hoje a Folha estampa. E, pior de tudo, já puderam se contaminar com o inescapável clima do permanente espetáculo, já que hoje em dia é somente o espetáculo que justifica que qualquer fato se torne notícia.
Quando alegou que não havia condições para que o julgamento se desse de maneira imparcial, Roberto Podval não estava tentando atrair ódio ou simpatia. Ele estava dizendo simplesmente a verdade.
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Jornalista, Santo André, SP