Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ferreira Gullar

‘O principal argumento dos que se opõem à proibição da venda de armas de fogo é que, se o bandido está armado, o cidadão comum tem o direito de também se armar. O que é um argumento legítimo em filmes do faroeste, onde impera a lei da bala.

Sim, porque, na vida real, a coisa se passa de maneira muito diferente: termos uma arma na cintura ou na gaveta da cômoda não quer dizer que estamos protegidos do assaltante armado; na maioria das vezes, é o contrário, pois o fato de estarmos armados pode nos levar a atitudes desastradas e desastrosas.

E sabem por quê? Porque não basta possuir uma arma para ser capaz de fazer uso dela. Além disso, nem todo mundo tem sangue-frio (ou coisa pior) para ser capaz de matar uma pessoa, ainda que seja um bandido. Eu, pessoalmente, não tenho.

Imaginemos a cena. Façamos de conta que tenho uma arma em casa, guardada em alguma gaveta. Acordo ao ouvir um ruído estranho na sala. Será que o gato decidiu bagunçar meu coreto a essa hora da madrugada? Mas vejo que não: ele ressona enrodilhado e tranqüilo ao pé da cama. Corre-me um arrepio de medo pelo corpo: pode ser um fantasma?! Não, não pode ser, porque não acredito em fantasmas! Isto é, acho que não acredito…

A essa altura, penso ouvir passos no corredor, ou melhor, algo parece se mover ali… Seria meu neto Mateus? Não pode ser, porque ele não tem a chave do apartamento e, mesmo que tivesse, não entraria em minha casa a essa hora e desse modo. Mais assustado ainda, sinto que aquela presença estranha se aproxima de meu quarto.

– E se for um ladrão?!

A hipótese de que poderia ser um ladrão me deixa ainda mais assustado do que se fosse um fantasma.

– Se é um assaltante, deve estar armado! -digo a mim mesmo e acrescento: por sorte, ainda não tinha sido aprovada a proibição da venda de armas; pude comprar a minha.

E, ao pensar isso, me ocorre que não me lembro de onde a guardei, o que me causa enorme desagrado, mas não surpresa, já que quase todas as coisas que guardo somem, nunca consigo saber onde as guardei. E isso se tratando de coisas que estou sempre usando; imagine agora um revólver, que está guardado desde o dia em que o comprei.

– Não vou encontrá-lo! -digo para mim mesmo em pânico. E o ladrão, armado, está a poucos passos de mim, no corredor!

As possibilidades são várias. Lembro-me de ter decidido que o melhor lugar para guardar o revólver era a gaveta da mesa de cabeceira, aqui ao lado da cama, pois estaria a meu alcance no caso de um assalto como esse que ocorre agora. Sim, foi aqui que o guardei! E me volto, abro a gaveta, tateio com uma das mãos. Nada de revólver!

– Mas tem que estar aqui!

Penso em acender a luz do quarto, mas logo desisto: o assaltante ficaria sabendo que estou acordado. Insisto em buscar o revólver na gaveta, levanto-me cuidadosamente para melhor procurá-lo, quando me vem à lembrança que o tirara dali. Sim, quando Paloma esteve aqui com Francisquinho, achei melhor pôr o revólver noutro lugar, fora do alcance do menino… O problema é: onde?

Era urgente lembrar onde pusera a arma, porque o ladrão não iria ficar esperando no corredor até que a localizasse.

Admitindo-se que ele preferiu se dirigir ao escritório, que está sempre de porta aberta e, àquela hora, vazio, dediquei-me a tentar descobrir onde, pela lógica, teria escondido o maldito revólver.

– Terá sido no guarda-roupas? Mas, se foi ali, em qual das gavetas? Tem quatro gavetas externas e várias menores internas, onde guardo camisas, cuecas, meias… Na gaveta das cuecas não foi, porque essa eu abro todos os dias… E me vem então um pensamento aterrador: vai ver pus na estante menor do escritório. Se foi, estou perdido; o assaltante vai ter dois revólveres e eu, nenhum! É azar demais! Começo a me arrepender de ter comprado a arma.

Mas aí uma luz acende no meu cérebro e me faz lembrar do lugar exato onde guardara a arma: sim, na única gaveta da cômoda que tem fechadura! Foi lá, tenho certeza. Mas e a chave da gaveta? Onde será que pus a chave da gaveta da cômoda?!

Vamos admitir, por mais implausível que seja, que me lembrei de onde pusera a chave. Vou lá, pego-a, abro a gaveta e o revólver está efetivamente lá. Seguro-o, nervoso, saio andando na direção do bandido, que, supõe-se, está no escritório buscando o que roubar. Da porta, vejo-o agachado, mexendo na gaveta da escrivaninha. Ao clarão da luz da rua que entra pela janela, percebo que se trata de um garoto de uns 16 anos e que está armado. Aponto o revólver, mas não consigo atirar: é um menino. Fico com a arma apontada e grito-lhe:

– Largue a arma. Está preso!

Ele se rola no chão e, deitado, dispara um tiro certeiro em meu peito e me mata!

Antes de soltar o último suspiro, ainda penso:

– A polícia é que deve cuidar da segurança dos cidadãos. Afinal de contas, para que se paga imposto?’



José Paulo Lanyi

‘O Brasil em 2105’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 13/10/05

‘O debate sobre a proibição ou não da venda de armas no País é uma afirmação da nossa Democracia. Foi-se o tempo em que só se discutia futebol neste País, o que me enche os olhos. Uma das peculiaridades dessa polêmica é a ‘desideologização’ da escolha. Como bem sublinhou o Moacir Japiassu, esta não é uma porfia esquerda x direita. Graças a Deus (ou a Marx), pois falta de criatividade haveria, afinal, de ter limite.

Tenho recebido e-mails de colegas SIM e de colegas NÃO. Jornalistas não podem e não devem se furtar de influenciar, em um momento histórico crucial. Daí a profusão de mensagens, seja por e-mail, seja pelo Orkut, ou em artigos e bate-papos etílicos.

Há bons argumentos de ambos os lados, a escolha é mesmo espinhosa. Nenhuma das opções é a ideal, talvez essa seja a única conclusão pacífica.

Quando se pensa que tudo já foi dito, vem-me à mente um pensamento que poucos têm levado em conta. É disso que vou falar aqui para explicar o que me leva a votar pela proibição.

Não enxergo o jornalismo como um mero espelho do dia-a-dia. Vejo-o também como uma grande máquina projetora da História. É assim que, daqui a cem anos, esta mesma Nação poderá conhecer-se pelas linhas do passado.

Tudo o que for publicado hoje poderá ser lido em dezenas, centenas de anos. Basta que se arquive.

Uma curiosidade: como será este Brasil em 2105? Pacífico ou violento? Será que a população continuará embaraçada pelos bandidos e pela inoperância estatal? Ou seremos, enfim, uma civilização? Vejamos a etimologia dessa palavra, conforme o dicionário eletrônico Houaiss: ‘civilizar + -ção, por inf. do fr. civilisation (1721) ‘jurisprudência’, (1757) ‘o que torna os indivíduos mais sociáveis’, (1760) ‘processo histórico de evolução social e cultural’, (1767) ‘estado ideal de evolução material, social e cultural para o qual tende a humanidade’; f.hist. 1833 civilisação’.

Não sabemos o que será de nós, o que torna ainda mais difícil a nossa opção, pois seremos cobrados pela nossa escolha, no dia seguinte ao do referendo e daqui a duzentos ou trezentos anos.

Como omissão quase sempre é sinônimo de covardia, ao menos de negligência e de egoísmo, proponho-me a considerar algumas idéias.

Sou um pacifista, portanto armas não combinam com o meu ideal – ainda que se diga que dois países que detenham a bomba atômica estão fadados a se suportarem (até o dia, respondo eu, em que aparecer uma meia-dúzia de dementes para apertar o botão).

Filho de oficial do Exército, só vim a disparar uma arma de fogo há uns cinco anos, levado por um amigo, juiz de direito, ao GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), da Polícia Militar. Atirei com revólveres e pistolas de diversos calibres: 38, 45, 765, 357. Também estraçalhei o meu alvo com uma 12 e com uma submetralhadora Uzi. Uma estréia e tanto. Apesar da novidade, não gostei da experiência. Fiquei me perguntando como alguém que se diz civilizado pode desfrutar o prazer de destruir o que quer que seja.

Atirar me pareceu estúpido.

O que vou dizer agora não é um raciocínio a favor do SIM, é apenas um fato coincidente: anos depois soube, chocado, que o soldado que me orientou naquele dia foi pego, tempos mais tarde, furtando armamento do quartel. Acusado formalmente, com a vida em frangalhos, o ‘sniper’ ainda perdeu a mulher, que lhe reprovara a atitude. Ela foi embora e envolveu-se com um soldado do Corpo de Bombeiros. Transtornado, o PM pediu-lhe que voltasse. Ela recusou-se. O soldado então invadiu a casa dos ex-sogros e, na frente do filho, assassinou a mulher e matou-se em seguida com um tiro na cabeça.

Não gosto de armas, como não gosto de malucos.

O que importa mesmo, em minha análise, é a bestificação, a sensação brutal implícita naquela fração de segundo seguinte, em que se ouve uma explosão, simultânea ao ‘tranco’ que se impõe à mão, e algo muito feio se sucede lá do outro lado.

Impressões à parte, volto a um parágrafo anterior para afirmar que não teremos uma civilização enquanto pensarmos e agirmos como um bando de macacos armados e ‘cheios de razão’. Não podemos pensar apenas no minuto seguinte, temos de olhar para o futuro, temos um compromisso histórico com a evolução da humanidade (por piegas que isso possa parecer a alguns).

É evidente que a proibição não vai resolver tudo, isso todo mundo sabe. Mas deverá amenizar algumas conseqüências desse grande equívoco cultural, dando margem a cobranças altissonantes da sociedade, que, impaciente, terá o maior dos argumentos a seu favor na luta contra a criminalidade resultante da omissão do Estado: o exemplo.

Há quem vá pagar com a própria vida, no hiato entre a incompetência estatal e o aprimoramento paulatino da segurança pública? Sem dúvida, eu mesmo posso ser um desses. Mas a História é assim, é ingrata e traiçoeira, sempre haverá sacrifícios. Não podemos, contudo, deixar de agir por medo de que as coisas fiquem como estão. Não, a exigência é um dos motores da civilização, o grito é uma condição da Democracia, que seja exercido por todo o sempre.

É preciso, pois, começar.

Mais de cem anos atrás, a Lei Áurea despejou milhões de negros na inexorabilidade da miséria. Teria sido preferível que fossem tratados com a dignidade que se deve a todo cidadão? Sem dúvida. Teria sido preferível que, libertados dos ferros, recebessem todos os instrumentos necessários para a construção da sua cidadania? Sem dúvida.

Ainda hoje os negros brasileiros estão sofrendo, manietados pelo passado. Mas pergunte a qualquer um deles o que acharia se, sob o pretexto de apenas libertá-lo sob as condições ideais, houvessem adiado a sua alforria para quinhentos anos depois. Teríamos, até hoje, o espetáculo horripilante das casas-grandes e das senzalas, da negação literal e absoluta da condição humana. ‘Ah, a miséria é pior do que isso…’, tal é a cantilena recorrente dos hipócritas. Por que não vão à praça pública defender o agrilhoamento dos favelados? Aguardo sentado a primeira passeata pela escravidão dos pobres.

Eis o ponto de vista que me faz falta nos debates jornalísticos sobre o referendo: a perspectiva histórica, o olhar civilizatório. Que o futuro nos julgue a todos. A gente conversa em 2105.’



FEBRE AFTOSA
Eleno Mendonça

‘Cortando a própria carne’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/10/05

‘Faz uns 20 dias recebi um e-mail de uma grande amiga que foi morar na Suíça. Ela, que foi acompanhar o marido, um cientista na área farmacêutica, queria saber se eu tinha informações sobre como importar carne do Brasil. A sua intenção era, e é, acredito, montar uma empresa para levar à região onde ela mora, na divisa com a Alemanha, coisas do Brasil. Ela me contou que na cidade onde mora apenas o dono de um restaurante vende carne do Brasil. Ela me dizia que carne é produto raríssimo e que por isso os estrangeiros ficam malucos quando encaram no Brasil uma churrascaria do tipo rodízio. Para completar, ela me contou que um quilo de carne na sua cidade era vendido por algo em torno dos R$ 80. Comecei a pesquisar o assunto, para informar a minha amiga: não deu tempo.

A febre aftosa veio e mudou o rumo de um ciclo que vinha muito bem. Se é verdade que o governo, entre seus cortes, deixou o segmento sem recursos, fica caracterizada a economia burra, quando você, que está ganhando num setor, baixa os custos ao máximo, quando deveria aplicar ainda mais para assegurar sua posição. Mas o ministro da Fazenda , Antonio Palocci, disse na China no domingo que não foi a falta de recursos que causou a febre aftosa no Mato Grosso do Sul, e que todas as solicitações [de verbas] para a área de defesa animal e vegetal foram atendidas prontamente. O que o ministro quer dizer é que talvez a ganância do fazendeiro, ou por não vacinar seu gado ou por contrabandear de país sem controle de aftosa, seja a grande causa desse problema. Acontece que a fiscalização deveria ser rigorosa e, mais, a punição a quem descumpre a lei.

Bem, o certo é que será preciso muita conversa no exterior, muitos churrascos em embaixada para devolver o prestígio da carne brasileira. Os mais pessimistas falam em anos.

Essa história faz lembrar um case, falso ou não, que os especialistas em marketing contam em suas palestras. Dizem que havia um homem que ficou rico na Europa fazendo bolo de amêndoas. Mandou então o filho estudar fora e na volta, com toda a sabedoria, assumiu a fábrica, achou vários defeitos e começou os ajustes, sobretudo nos custos. Passados seis meses as vendas, em vez de subirem, caíam fragorosamente. O senhor, então, resolveu ir aos pontos de venda ver o que tinha acontecido. Descobriu, estupefato, que o corte nos custos tinha atingido também o componente mais caro da matéria-prima, justamente as amêndoas. Logo, o bolo tinha deixado de ser de amêndoas.

O governo, na melhor das intenções, saiu cortando. Só que a tesoura não poupou nenhum setor e acabou matando a galinha dos ovos de ouro. Entre os especialistas, os mais pessimistas falam que levará cinco anos para que esse cenário de maior vendedor mundial de carne seja recomposto. É pena, pois se trata de um segmento importante na geração de divisas, na criação de vagas, na melhora da imagem do País no exterior, na fixação do homem à terra.

Enfim, não será desta vez que os suíços de Basel terão o prazer de saborear a carne brasileira. Minha amiga, que entrou em contato assim que soube da notícia, agora está pensando em café. Tomara que essa cultura não tenha problemas ou que o caso da carne sirva de lição para uma revisão geral em vários segmentos.

De todo modo, também é preciso dizer, o prestígio do Brasil e de seus produtos renderam bons preços. Por isso, nessas horas, muitos ficam torcendo para que a mídia amplie ao máximo a cobertura num foco de aftosa como esses, que afeta e representa apenas um pontinho no mapa de um País do tamanho do nosso, mas permite uma supernegociação de preço, para menos, é claro.’



BRASIL NO NYT
O Globo

‘‘NYT’ critica devastação’, copyright O Globo, 17/10/05

‘Numa reportagem de meia página, o jornal ‘The New York Times’ denunciou ontem que o desmatamento da Amazônia continua crescendo aceleradamente, apesar das medidas do governo para coibir o corte ilegal de árvores. ‘Assim que a estação seca chega, os madeireiros começam a agir’, informa o correspondente do jornal no Brasil, Larry Rother. Uma foto de um caminhão com carregamento ilegal de madeira ilustra a reportagem.

Sob o título ‘Madeireiros, desprezando a lei, devastam a floreta Amazônica’, o Times defende que, mesmo com as ações do governo brasileiro, a devastação da floresta está vivendo um boom. A conclusão é apoiada em depoimentos, como o de um presidente de uma associação de fazendeiros, que conta que o tráfico dos caminhões pela Transamazônica durante a noite para transportar madeiras cortadas ilegalmente é tão grande que ninguém consegue dormir. Ou do presidente do Greenpeace, Paulo Adário, que aponta o paradoxo de as exportações brasileiras de madeira crescerem, propiciando um faturamento de quase US$ 1 bilhão, embora cerca de 60% dessas vendas sejam reconhecidas pelo próprio governo como ilegais.

– Como é possível que, mesmo com a suspensão das permissões de corte desde julho de 2004, as exportações de madeira continuem crescendo tão ameaçadoramente? – argumenta o representante do Greenpeace.’



REGIONALISMO & MÍDIA
O Globo

‘Tese mostra que imprensa do Sudeste retrata mal a região’, copyright O Globo, 16/10/05

‘Quando o inverno começa nas demais regiões do Brasil, é verão na região Norte. Segundo o pesquisador paraense Paulo Oliveira, essa informação passa despercebida no noticiário e contribui para criar uma imagem errada sobre o Norte do país. A cobertura da imprensa do Sudeste sobre a região amazônica é o assunto da tese de mestrado que ele defendeu na Escola de Comunicação da UFRJ. ‘Amazônia, mitos e realidade’ mostra que o desconhecimento sobre o Norte se deve em grande parte à falta de informação na mídia.

– As maiores agências de notícias estão no Rio e em São Paulo, e a imagem produzida por elas sobre a região Norte não corresponde à realidade do local – diz.

No noticiário recente sobre a redução do volume de água dos rios da Amazônia, o pesquisador defende que se use a palavra estiagem para tratar do fenômeno e não seca:

– O que temos lá agora é a estiagem, a queda do volume de água dos rios.

O pesquisador cita ainda as notícias meteorológicas veiculadas na TV.

– A moça do tempo diz que vai começar o inverno em quase todo o Brasil, e não informa que no Norte, que representa quase a metade do país, é o contrário.

Oliveira critica ainda a falta de reportagens nos cadernos de turismo informando que a melhor época para se visitar a Amazônia é em junho, por causa do verão lá.’