Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ficção e realidade na crise bancária

Os repórteres e analistas em geral estão insistindo, catolicamente, em separar a economia real da economia irreal, a ficção, da realidade.

Primeiro, a economia real, diziam, estava imune à economia irreal, que está implodindo na crise bancária americana e européia. Agora, também, ela, a real, entrou na dança. Se entrou é porque está ligada à outra. Seria possível uma sem a outra?

Essa é uma discussão que não foi feita ainda, com profundidade, pela imprensa brasileira, simplesmente porque a interatividade dialética entre ambas, realidade e ficção, paira além da visão mecanicista que freqüenta as redações.

A colônia, escravizada pelos juros, copia a metrópole. Não pensa com sua própria cabeça. Fica no idealismo imaginado nos laboratórios dos neoliberais e suas caixas de ferramentas salvacionistas.

Como diz Mário Juruna, no filme de Armando Lacerda Jururã, o espírito da floresta, ‘brasileiro pensa pequeno com cabeça de estrangeiro’.

Insuficiência de consumo

A economia capitalista, no século 20, continuou sendo interpretada pelos neoliberais, juristas da periferia capitalista, com a cabeça do século 19. Chega-se, agora, ao século 21 sequer com a cabeça do século passado, mas do retrasado.

O pensamento econômico crítico não freqüenta as redações. Prevalece dentro delas, o pensamento marginalista, equilibrista, do tempo do padrão-ouro, neoclássico, quando a moeda era ainda, como Ricardo denominava, valorímetro, meio de troca, falsamente, neutra, como se pairasse, incólume, acima das classes sociais.

Ou seja, produto da imaginação esquizofrênica.

Marx, professor indispensável para entender o capitalismo, como destaca Delfim Netto, já tinha mostrado que a realidade iria derrotar o capitalismo e a ficção seria chamada em seu socorro.

A totalidade do valor recebido pelos trabalhadores em forma de salário, disse, não consegue comprar a totalidade do valor correspondente às mercadorias produzidas. Há uma disparidade entre o valor-capital que se acumula e o valor-salário que se desvaloriza.

Pinta uma crônica insuficiência de consumo global. É o preço cobrado pelo investidor capitalista, que visa ao lucro, e não à satisfação do consumidor, como prioridade fundamental.

A ficção da moeda estatal

O real não suporta as suas próprias dores. Precisa do irreal. A insuficiência consumista produz um estoque crônico cuja lógica reduz os preços e destrói o capital e os salários, na deflação.

O que fazer com o estoque?

Imaginaram os neoliberais que a saída seria o comércio internacional. Se não há mercado interno, massacrado pelo subconsumismo, exportar é a solução.

Mas, se todo mundo exporta… a contradição final do sistema explode, disse, no mercado mundial interligado, globalizado.

Marx detonou o pensamento neoliberal do século 19. Analisou que o capitalismo, nesse período, se baseia em dois setores: o departamento I (D1), produtor de bens de produção, bens de capital, e o departamento II (D2), produtor de bens de consumo.

Concluiu que a contradição entre ambos, entre produção e consumo, D1 e D2, isto é, entre mercadoria e dinheiro, levaria o sistema à crônica insuficiência de demanda global, dado seu caráter intrínseco de marchar, dialeticamente, para a sobreacumulação.

De um lado, sobreacumulação; de outro, subconsumismo. Resultado: sobreacumulação e crise sob a moeda falsamente neutra.

D1 + D2 se autoanulariam, no limite da contradição, o que exigiria sua superação em D3, departamento III, que representaria o Estado, conforme prevê o autor de O Capital.

O que é D3? A ficção que surge para ressuscitar o real, D1+D2, com a moeda estatal. A moeda-ouro, no padrão-ouro, transformara-se, dessa forma, como reconheceu Keynes, em relíquia bárbara.

Fator exterior à realidade

Essa formulação de Marx em O Capital repetiu o que Malthus já havia dito nos anos de 1850. A eficiência do capitalismo, impulsionado pela ciência e tecnologia, gera oferta maior que demanda, cujo resultado é queda de preços.

É necessário, frisou, que nasça o oposto da eficiência, isto é, a ineficiência. Se o setor privado é eficiente e produz tanto que leva o sistema à crise, se o Estado repetir tal eficiência, igualando-a ou superando-a, para gerar, como o mercado privado, insuficiência de demanda global, para que o Estado? Agravaria a situação em vez de resolvê-la.

Malthus falou a verdade e, por isso, foi excomungado.

A ineficiência estatal, que assusta tanto os analistas econômicos, como se estivessem frente ao próprio diabo, é a solução, já que o capitalismo não suporta o desenvolvimento das forças produtivas em sua potência máxima deixada ao livre jogo dos mercados. Olha o caos aí, no mercado imobiliário. Precisa mais prova?

Apenas reduzir salários, para elevar a lucratividade na exploração da mais-valia, não asseguraria a sobrevivência do capital. Seria necessária, disse, uma demanda suplementar. Qual? O Estado, D3.

Os liberais e os neoliberais desdenham a formulação macroeconômica malthusiana-keynesiana, analisada criticamente por Marx, porque vêem a moeda como fator que fica no exterior da realidade, como fator neutro, acima das classes sociais antagônicas, no processo de acumulação capitalista.

Contradições do livre mercado

A demanda complementar proporcionada pelo Estado, com moeda estatal sem lastro, expressão maior de D3, não encaixa na formulação neoliberal porque os neoliberais não entendem ser válido que a moeda, sob o comando do Estado, constitua um fator econômico decisivo, já que, essencialmente, pela visão neoliberalizante, parcial, é apenas meio de troca.

Essa fase dezenovecentista da cabeça neoliberal separou o Estado da produção privada, quando a produção privada, no século 20, somente conseguiu sobreviver, depois da crise de 1929, mediante intermediação da moeda estatal. Esta entra em cena na circulação para dinamizar os setores que haviam perdido gás na grande crise.

Essa visão neoliberal do Estado de que os gastos do governo criam desajustes no setor privado de modo que é preciso que haja enxugamento forte da demanda estatal para que a economia capitalista seja sustentavelmente suficiente e eficiente, é, tão somente, sonho de noite de verão. Completamente anti-histórico.

A moeda estatal que Marx previu, mas não viveu para ver em ação, é a expressão de D3, sua representação essencial em forma de moeda estatal sem lastro, fictícia. O valor da moeda passa a ser o que dissera Hegel, sopro do Estado num pedaço de papel.

Ao contrário da moeda que ainda vigora no imaginário da cobertura econômica, com seu caráter de neutralidade, pairando acima das classes sociais antagônicas, como se o século 21 estivesse no século 19, a nova moeda, no século 20, não tem nada de neutra.

O Estado, entidade política, emite sua moeda política, para tentar organizar e dinamizar aquilo que tinha sido paralisado pelas contradições do livre mercado.

Dinamização do capitalismo na guerra

O cenário da crise bancária atual é comprovação histórica desse caráter básico da economia monetária, fetiche monetário, predominante no século passado que entra em colapso.

A ficção movimenta o real, que havia sido destruído pela crise de 1929. O irreal nasce para ressuscitar o real. Não há, do ponto de vista macroeconômico marxista, no seu processo de análise das contradições, divisão entre o real e o irreal.

O autor de O Capital disse que o sistema, contraditoriamente, desenvolveria ao máximo as forças produtivas, entraria em senilidade e passaria a desenvolver as forças destrutivas, na guerra.

O prêmio Nobel de economia Josef Stglitz reconhece que a guerra do Iraque, com custo superior a 2 trilhões de dólares, é a própria dinamização do capitalismo americano, na guerra.

Uma ciência lúgubre

Com a moeda estatal, não-moeda sem lastro, o governo não compra a mercadoria que dinamizava o capitalismo anterior a 1929. A mercadoria que passa a adquirir é o oposto, uma não-mercadoria, conceito desenvolvido por Lauro Campos, em A crise da ideologia keynesiana (Campus, 1980).

Vale dizer, a economia capitalista pós-29 é dinamizada pela não-moeda que viabiliza a não-mercadoria consumida pelo governo, que vai tirar da crise a economia das mercadorias de consumo social que havia explodia no crash.

O capitalismo bi-setorial, D1+D2, rígido, mecânico, apoiado no padrão-ouro dezenovecentista, fora superado pelo capitalismo tri-setorial, D1+D2+D3.

O Estado, D3, com a não-moeda compra a não-mercadoria que destrói, para gerar renda e consumo de bens duráveis que deixaram, depois do crash, de ser o carro-chefe da reprodução capitalista, dando lugar ao novo carro-chefe, D3, os gastos do governo.

Para a cabeça mecanicista é difícil entender que a não-moeda surge, dialeticamente, para aumentar o consumo sem aumentar a oferta.

Separar os gastos do governo dos gastos do setor privado que busca reprodução lucrativa é querer tirar a corcunda do sujeito porque ela o deformou. Mata o caboclo.

Somente o Estado pode consumir não mercadorias – produtos bélicos e espaciais, gastos acima da receita, desperdícios necessários, para dar via à ciência econômica capitalista, segundo Malthus, uma ciência lúgubre, dado seu caráter auto-destrutivo.

O espírito crítico da grande mídia, dominado pelo pensamento bi-setorial, rígido, mecânico, nada orgânico, evoluiu muito pouco. Teria evoluído bastante, se essa visão da moeda, no conceito de Marx, de Malthus, Keynes, tivesse sido mais debatida, sem preconceitos, criticamente.

Neutralidade monetária

A não percepção clara sobre a gênese da moeda capitalista no século 20 ficou ainda mais obscura e acrítica no plano da cobertura econômica, depois da crise monetária dos anos de 1980, provocada por excessiva oferta mundial de dólares, que levou o governo americano a aumentar brutalmente os juros. Imperou, desde então, escuridão, o mecanicismo total, vestido de princípio único detonador do fim da história.

D3, gastos do governo que movimentam a economia capitalista, foi eleito alvo preferencial a ser combatido porque interferiria negativamente na vida privada. Se o governo gasta mais do que arrecadada…

Visão mecanicista, que deseja demonstrar que o ideal de um governo é aquele expresso pela dona de casa: não gastar além da renda familiar.

O que é válido, do ponto de vista da parte, não o é do ponto de vista do todo. Destruir o Estado passa a ser o objetivo do poder midiático alienado.

Na base da ignorância, os neoliberais – e seus oráculos na grande mídia – na periferia passaram a pregar, nada mais, nada menos, que a destruição do próprio capital nacional, por desconhecerem, ou abafarem, o caráter não-neutro da moeda capitalista na fase pós-29 em que o Estado vira capital.

A neutralidade monetária era conveniente para os interesses dos bancos, cuja preocupação maior, depois da crise, foi a de receber, em dia, o pagamento dos juros.

Dois lados de uma moeda

Foi tão cega a visão acrítica que a grande mídia passou completamente batida na discussão do artigo 166, parágrafo terceiro, II, letra b, da Constituição, que confere, no âmbito do orçamento, causa pétrea ao pagamento dos serviços da dívida. Os banqueiros ficaram imunes, constitucionalmente, a qualquer contingenciamento possível ou imaginável.

Já os gastos com saúde, educação, investimentos em infra-estrutura etc., esses podiam ser amplamente contingenciados. Ao mesmo tempo, cerraram fileiras os neoliberais para destruírem, também, o art. 192, que fixava limite de 12% para a taxa de juro no país.

A Constituição, que acaba de fazer 20 anos, representa o domínio da bancocracia (Lauro Campos).

Resultado: sucateamento do Estado e, claro, também, da iniciativa privada. Afinal, sob a economia monetária, o Estado, abstração, o irreal, e a iniciativa privada, o real, são dois lados de uma só moeda, unha e carne, mediados pela moeda estatal sem lastro, durante todo o século 20.

O calote como solução

O fato novo, agora, com a crise americana, não é a derrocada neoliberal, mas a keynesiana, expressa nos déficits americanos que desvalorizam o dólar e jogam a economia global, com a implosão do setor imobiliário, seguido de bancarrota financeira, no empoçamento geral do crédito.

O lubrificante, a moeda dominante, está deixando de lubrificar as peças do sistema.

Keynes destacou que o sistema precisa fingir para si mesmo que o útil é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade. Máxima ideológica utilitarista inglesa cínica, que cobra preço alto ao próprio Keynes. Ele mesmo, com sua solução, está, na grande crise do governo keynesiano americano, indo para o buraco.

Novo Keynes, como clamam muitos, pode pintar, isto é, nova ficção, novo D3? Seria americano ou mundial?

O grande economista inglês pregou, em Bretton Woods, em 1944, a moeda mundial, o bankor, que representaria caixa de conversão geral, para equilibrar os desequilíbrios decorrentes do domínio dos ricos sobre os pobres por intermédio da moeda, via deterioração nos termos de troca, impondo senhoriagem.

Sua proposta não venceu, porque os americanos saíram da guerra com a força total, impondo o dólar como moeda mundial.

Tio Sam, agora, na primeira grande crise monetária do século 21, parece estar entre tomar uma dose monstra de viagra, para ver se recupera a potência, para continuar dominando unilateralmente o cenário global, correndo risco de ter um infarto, ou partir para o conselho, não mais de Keynes, mas de Adam Smith.

Em A riqueza das nações, Smtih não deixa dúvidas: a dívida pública, os déficits, existem para não serem pagos, mas rolados, indefinidamente.

A ficção que entra na moeda com um sopro do Estado pode se desmanchar, igualmente, com outro sopro, para salvar o real?

O calote emergiria como solução. Seria engraçado ver a grande mídia bater palma para o calote global, logo ela, que, religiosamente, condenou os calotinhos brasileiro e argentino depois do massacre neoliberal dos países ricos sobre os pobres, coordenado pelo Consenso de Washington e aplicado pelo capitão do mato, FMI.

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Jornalista, Brasília, DF