Em 23 de julho, o longa-metragem A Serbian Film (Terror Sem Limites), uma produção de terror classe C, teve sua distribuição e exibição proibida. O filme foi censurado. Não vi nem pretendo ver; mas acho que não preciso do Estado para me dizer o que posso ou não assistir. A polêmica vem de cenas perturbadoras, que mostram pedofilia da pesada, como o estupro de um recém-nascido. Vejam bem, é uma produção cinematográfica, uma obra de ficção, não pode nem deve ser confundido com realidade, mas foi considerado que faz apologia ao crime de pedofilia.
A censura no Brasil ocorreu por quase todo o período posterior à colonização do país, tanto cultural, quanto política. Entretanto, foi durante o regime militar – iniciado com o golpe de 64 – que foram elaboradas novas formas de perseguição. Após a promulgação do AI-5, todo e qualquer veículo de comunicação, bem como produto audiovisual destinado à exibição pública, deveria ter a sua pauta, ou roteiro, previamente aprovado e sujeito à inspeção local por parte de agentes do governo. Muitos materiais foram censurados nessa época de trevas, que parece esquecida, mas faz parte da história recente da República.
No período em que os militares estiveram no poder, tentava-se fazer com que a população não soubesse, ou passasse a desconfiar das torturas e mortes por motivos políticos. Até hoje existe grande número de pessoas desaparecidas durante a ditadura, gente desconhecida pela maioria, pois a censura usada na época cumpriu com eficiência seu papel. A violência do Estado era notada apenas em confrontos policiais, ou quando conhecidos desapareciam. Entretanto, de um modo geral, não era possível à maioria da população imaginar as proporções reais do que acontecia nos bastidores do poder. O silêncio era imposto para que menos pessoas se revoltassem e a governabilidade não fosse ameaçada.
A extremos
De certa maneira, mas sob um aspecto diferenciado, e de certa forma “mais brando”, o Brasil ainda possui formas de censura desde sua redemocratização. Neste exato momento da história, assistimos à tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 84/99, conhecido pela sociedade conectada como AI-5 Digital. O projeto de lei que se mostra, sob holofotes da mídia, como instrumento de repressão policial aos cibercrimes, parece mais um Ato Institucional, como aqueles dos tempos da ditadura. Dentre outros prejuízos à livre circulação do conhecimento, se este PL for aprovado, poderá tornar-se crime baixar música pela internet, ou digitalizar músicas de terceiros, usar bots ou códigos em games e, dentre outros absurdos, até desbloquear um celular em casa. Já existe movimento organizado e um abaixo-assinado, com quase 200 mil assinaturas, contra o PL 84/99.
Não para por aí! A Câmara analisa também o Projeto de Lei 591/11, do deputado Aureo (PRTB-RJ), que proíbe crianças e adolescentes de ingressar em espetáculos públicos classificados como inadequados à sua faixa etária mesmo quando acompanhados por pais ou responsáveis. Atualmente, a Portaria 1.100/06 (MJ) garante o direito aos pais, ou terceiros devidamente autorizados, para que possam levar suas crianças e adolescentes a filmes e espetáculos recomendados a uma faixa etária superior; sendo que essa permissão vale apenas em casos de eventos com classificação indicativa inferior a 18 anos. A proposta altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que hoje determina somente, mas satisfatoriamente, que nenhum espetáculo será apresentado sem o aviso prévio de sua classificação indicativa.
Os instrumentos de repressão são arquitetados partindo do princípio de que o governo precisa impor limites ao cidadão. Na política, a repressão é um tipo de ação pública maquinada para conter e calar manifestações, geralmente de oposição, subversão e dissidência ao regime estabelecido. Este tipo de atitude é típico de regimes autoritários, absolutistas, totalitaristas e de ditaduras militares. Historicamente, a censura já chegou a extremos, como quando passamos pela Santa Inquisição, promovida pela Igreja Católica entre os séculos 15 e 18, que foi uma forma organizada e ampla de repressão política e religiosa. Durante a inquisição, livros eram queimados, objetos de arte e descobertas arqueológicas destruídas e pessoas eram torturadas e mortas com requintes de enorme crueldade.
Piar enquanto é permitido
O domínio das massas pelos que desejam a manutenção do poder requer inteligência, e não apenas a força bruta. Muitas vezes são usados pretextos nativos do puritanismo; questões de segurança nacional e ideologias claramente intolerantes, subjetivamente fascistas, para justificar estes atos autoritários perante a sociedade e contra ela própria. Muitas vezes, essa estratégia de controle obtém resultado, ao criar nas massas um sentimento contrário àquilo que se deseja reprimir ou censurar. Desta forma os fatos são distorcidos pela desinformação e tornam-se perigosamente populares, fazendo com que as massas bovinizadas achem a censura algo bom, um “mal necessário”. O Estado assume, então, a figura do patriarca; do chefe da família, muitas vezes alisando com uma mão, enquanto bate com a outra.
O paternalismo é uma armadilha, pois toda sociedade é unida por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas, tudo fundamentado na valorização positiva da pessoa do patriarca, representado pelo governo ou pela figura do chefe de Estado. Este pai-Estado exerce seu poder sobre a população combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, usando de sentimentalismo e distribuindo concessões tentadoras. O Estado paternalista limita as liberdades individuais do cidadão com base em um padrão dominante de valores que fundamenta a arbitrariedade exercida por parte do Estado. Desta maneira se justifica a invasão da autonomia individual, baseando-se no principio de incapacidade ou mesmo idoneidade do cidadão para tomar determinadas decisões que o Estado julgue corretas.
Não se trata apenas da proibição de um filme de extremo mau gosto, com apologia à pedofilia e enredo doentio. Se o filme incita à pedofilia, religiões incitam intolerância para com outras religiões, homofobia incita violência, fundamentalismo e onde passa boi também passa boiada. O incentivo à intolerância e ao racismo pode acabar em tragédia, como ocorreu agora no massacre da Noruega, e aqui mesmo, quando 11 crianças foram mortas em uma escola no início de abril. A censura e o Estado paternalista não puderam evitar estes crimes, são inócuos na verdade. O que não podemos é nos deixar apanhar nesta arapuca. A censura não pode voltar de forma alguma, nem mesmo velada, como tem sido feita. As liberdades é que devem ser mais amplas e todos sabemos disso, mas o que me assusta é que ninguém pia. Se corrupção gera revolta, levante popular, isso não justifica a censura, que por sua vez gera ignorância, intolerância e, num processo de retroalimentação, gera mais violência, na medida em que tabus e preconceitos são alimentados de maneira maquiavélica e irresponsável. Temos que piar enquanto é permitido e piar alto para que sempre seja permitido piar. Penso, como Caetano Veloso, que “é proibido proibir”.
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[Ronald Sanson Stresser Junior é arquiteto e radialista, Rio de Janeiro, RJ]