Para aqueles que, indistintamente, torceram e participaram pelo fim do diploma de jornalista, por ignorar a importância de manter-se regulamentada uma profissão como essa, hão de saber que o sonho não acabou. É preciso conhecer a história para se entender o porquê desse direito, esbulhado numa bisonha quarta-feira de junho de 2009 pelo STF.
Essa gente, sem excluir a gregos e troianos, não deve fazer ouvido mouco sobre o respeito recebido, espontaneamente, pelo jornal, como merecedor de distinção, por serviços prestados ao lado dos fracos. Através dos séculos, tornou-se porta-voz da sociedade. Defendeu-a e apoiou as reivindicações nos momentos graves da sua história. Nenhuma revolução social e cultural chegaria ao êxito sem a sua presença.
O maranhense Odorico Mendes, tradutor de Virgílio e Homero, conhecido como o patriarca do humanismo brasileiro, alertava no seu jornal O Argos da Lei, em 1825, para a importância da liberdade de pensar. Para ele, a folha impressa era o único meio capaz de denunciar as falcatruas dos presidentes de províncias ao rei, que vivia cercado de bajuladores, incapazes de contarem a verdade sobre o que se passava no seu reino. (Historia da Imprensa do Maranhão no Século 19 / 1821-1900, Sebastião Jorge, Vale, pp. 78, 79, No pp.402, 2008). Odorico Mendes foi o primeiro jornalista maranhense a escrever sobre a liberdade de imprensa.
‘A arte da imprensa’
Citaremos um exemplo da importância do papel impresso: a Revolução Francesa, de 1789. Sem esse instrumento de comunicação, o destino dos acontecimentos talvez tomasse outro rumo. Os revolucionários fizeram dele a arma preferida, confiantes no poder de luta. Combateram os desmandos da realeza e os algozes do povo, denunciaram as mazelas e anunciaram suas ideias. Tudo fora do alcance das autoridades. O governo era impiedoso nos castigos.
Vejam esta monstruosidade da realeza francesa: Declaration du roy (Declaração do Rei), de 1757, sentenciando à morte aquele que fosse culpado de compor, imprimir, vender ou distribuir ‘escritos que tendam a atacar a religião, excitar os ânimos, injuriar a autoridade real e perturbar a ordem e a tranquilidade do Estado’. (Revolução da imprensa / A imprensa na França / 1775-1800, Robert Darnton & Daniel Roche, organizadores, Edusp, p.29, No. pp. 408,1996).
Sem a força da prensa de Gutenberg, valioso meio de transgressões, e os corajosos panfletários, dispostos a enfrentarem um Estado arbitrário e sovina, nada feito. Foram os jornalistas que correram o risco de colocar a cabeça para o corte certeiro da guilhotina, na condição de autores de um teatro de horror político. O historiador alemão Johann Sleidan, referindo-se ao movimento religioso promovido por Lutero, contra a Igreja, no livro Address to the estates of the empire ou (Discurso aos estados do império), de 1542, declarou:
‘Como que para comprovar que Deus nos selecionou a realizar uma missão especial, surgiu em nossa pátria uma nova, maravilhosa e sutil arte, a arte da imprensa. Ela abriu os olhos dos alemães, assim como agora está levando luzes a outros países. Cada homem se tornou ávido por conhecimento, não sem um sentimento de espanto pela cegueira anterior’ (A revolução da cultura impressa /Os primórdios da Europa moderna, de Elizabeth L. Eisenstein, Ática, p. 169, No pp. 319, 1998).
Uma sentença exagerada
No Brasil, o jornal chegou de Londres (Inglaterra), por iniciativa corajosa e idealismo de Hipólito da Costa. O Correio Braziliense, ou Armazém Literário, 1808, entrava de contrabando. Lia-se escondido, como quem pratica um delito. Na verdade assim era considerado. Nos séculos 19 e 20, os jornais de oposição ao governo, circularam sobre o fio de uma navalha.
O caso mais célebre aconteceu com Líbero Badaró, considerado o primeiro mártir da nossa imprensa. Editor do Observador Constitucional, em 1829 disse certas verdades a D. Pedro I, que o deixaram revoltado. Não demorou em ser massacrado a golpes de sabre, por apaniguados do imperador. Quando lhe faltavam as forças, a um passo da morte deixou esta frase célebre:
‘Morre um liberal, mas não morre a liberdade.’
No século 20 tivemos várias Leis de Imprensa que mais pareciam uma colcha de retalhos, pelas emendas feitas sob a batuta dos ditadores de plantão. No governo militar, nos longos anos de 1964-1985, nasce a famigerada Lei de Imprensa de 1967, revogada em abril último, aliás, 42 anos depois, cujos artigos draconianos não deixaram saudades.
Só isso não basta. Essa Corte está em dívida, pela dúvida provocada e o interesse que a levou cassar o diploma de jornalista, no último mês de junho. Quanto a Lei de Imprensa há muito reclamava aquela providência. Com relação ao diploma, nos parece que os ministros, tendo como relator o presidente Gilmar Mendes, foram induzidos a erro de avaliação da história. Resultado: desembocou no equívoco de uma sentença exagerada pelas interpretações sobre a natureza do jornalismo.
História das instituições e do poder
As justificativas não convenceram. Essa de insinuar que o diploma se constituía em pretexto para a livre manifestação de ideias, pela reserva de mercado, é um absurdo. A lei nunca proibiu que nenhum cidadão escrevesse para jornal e expusesse seus pontos de vistas sobre aquilo que pensa. Advogados, médicos, dentistas, engenheiros etc., todos têm a sua reserva de mercado, já que se formaram para exercer a profissão e só eles tem competência para tanto. Por que com os jornalistas seria diferente?
Jornalismo, no jargão profissional, é feito por quem entende de cozinha, ou seja, aquele que faz tudo. Não é para qualquer um. Nessa atividade, há arte e ciência. É preciso conhecimento especializado. E esse saber, nos dias atuais, que os ministros fingem desconhecer, quem dá é a Universidade, em curso dirigido para esse mercado de trabalho.
Outra alegação estapafúrdia e maliciosa é quanto à regulamentação de a profissão ter sido feita no regime militar para evitar que intelectuais e a oposição ao regime escrevessem nos jornais, daí não ter sido recepcionado pela Constituição de 1988. O diploma não foi invenção do regime militar. Tem uma outra história que os ministros do STF precisam aprender. Tem origem desde a fundação da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, em 1908, por Maurício de Lacerda, que como meta de trabalho abraçou a ideia. Corajoso, dinâmico, visionário e socialista convicto, já pleiteava cursos que preparassem melhor os seus colegas de redação, ressaltando a necessidade dos estudos relacionados à ética.
Outros presidentes da Casa prosseguiram com o mesmo sonho, como Teófilo Guimarães, que abriu o debate para viabilizar a importância de um profissional de jornalismo com diploma e estudos que ampliassem o conhecimento. Tomou como exemplo os cursos que existiam em Londres e Paris. Houve outros lutadores que continuaram com a ideia. Quem levantou, desta vez, a bandeira, como presidente, 1915-1917, foi Raul Pederneiras. Considerava importante que ‘numa escola acabariam a má fé, a ignorância disseminada e os processos indecorosos de fazer imprensa’. Outros presidentes foram evoluindo na ideia inicial e chegaram a elaborar uma grade curricular para a formação do jornalista com ênfase em disciplinas que estudassem a história das instituições e o poder no Brasil.
Revolta e frustração
Em 1938, no governo de Getúlio Vargas, ex-jornalista no Rio Grande do Sul, foi assinado o Decreto-Lei, No. 910, estabelecendo escolas preparatórias para a profissão de jornalista. O registro acompanhado do diploma ficou a cargo do órgão competente. Em 1943, o mencionado documento é alterado pelo Decreto-Lei No. 5.840, sob a liderança de Herbert Moses, que assumiu a ABI em 1931, e que estabelece o curso de Jornalismo como parte do sistema de ensino superior. O Decreto diz, no artigo 3º: ‘o curso será ministrado na Faculdade Nacional de Filosofia com a cooperação da ABI, do sindicato representativo da categoria dos empregados e empregadores das empresas jornalísticas’.
A lentidão do governo fez com que a Gazeta Mercantil, através do seu proprietário, Cásper Líbero, de São Paulo, fundasse a primeira Escola de Jornalismo da América Latina em 1947, agregada à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Naquele ano, Cásper Líbero torcia por criar uma escola de Jornalismo ‘que contivesse ensinamentos de humanidades’. Pelo andar da carruagem, vamos encontrar o Decreto No 28.923, de 1950, que deu origem ao primeiro curso de jornalismo vinculado à Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ).
Os professores eram jornalistas renomados, entre eles, Danton Jobim (ética), Pompeu de Sousa (técnica) e outros. Em 1961, antes da renúncia de Jânio Quadros, criaram-se normas para o desempenho da função, com exigência do diploma. O Decreto No. 51.208 ditava regras para o exercício da profissão a cargo dos diplomados [dados extraídos do Jornal da ABI que circulou como homenagem pelos 87 anos de fundação da entidade].
Finalmente, surge o Decreto Lei No. 972, de 17.10.1969, do governo militar, determinando o ingresso nas redações àqueles que tivessem diploma devidamente registrado no órgão competente. Quanto ao conteúdo, todos conhecem. Transformou-se em pomo da discórdia, ou motivo suficiente para o TSF levar à revolta e frustração os bacharéis. Por essas e outras que o general Charles de Gaulle disse não ser o Brasil um país sério.
Um arrazoado de tolices
É bem provável que se os ministros, atores de uma ópera bufa, entendessem a luta e a história dos cursos de Jornalismo no Brasil e no mundo, não teriam tomado aquela decisão. Decisão injusta e exagerada. Evitariam cair no ridículo ao afirmar que jornalista não precisa de conhecimento (estudos) e, sim, vocação e nada mais. Foi-se esse tempo. A inclinação ao ofício até entendo, mas carência de saber, o que provocará uma série de problemas à sociedade, é demais. Já pensaram uma notícia que cause pânico em geral?
Os ministros precisavam saber que desde o século 17 houve quem se interessasse pelos estudos da técnica e teoria do jornalismo. Foi o caso do teólogo e médico alemão Tobias Peucer que, em 1690, na Universidade de Leipzig, submeteu-se a uma tese de mestrado (a la no mundo) sobre Os relatos jornalísticos, tendo como base três princípios que, ainda hoje, são os pilares da informação: verdade, ética e justiça. Ainda vem o ministro-relator Gilmar Mendes fazer ‘brincadeirinha’, deboche depreciativo, com a profissão alheia, ao compará-la a quem se dedica à culinária… Isto, sem desmerecimento a atividade alguma.
O sonho não acabou para os verdadeiros jornalistas. Continuarão a frequentar a sua universidade, aprendendo mais, com ou sem diploma. Qualificados para o exercício da profissão, concorrerão às vagas nas redações, que lhe é de direito, pelo conhecimento e especialidade, de um trabalho que evoluiu muito, no espaço e no tempo. E só os ministros do STF desconhecem esse progresso. O pior e humilhante é terem que concorrer com o dono de uma padaria ou quem mais ousadia tiver. As peças jurídicas tendo como fundamento a partir da petição inicial, dos autores, é um script, que igual só em picadeiro de circo. É um arrazoado de tolices e justificativas elementares.
******
Professor universitário (ex-UFMA), jornalista, advogado e autor de oito livros na área de jornalismo impresso