Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Flores para Theodor Herzl

Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa!/ Sois de vento, ides no vento,/ E quedais, com sorte nova!/ A liberdade das almas,/ ai! com letras se elabora…/ E dos venenos humanos/ sois a mais fina retorta:/ frágil, frágil como o vidro/ e mais que o aço poderosa! (Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)

Quando citei esses versos de Cecília Meireles pela primeira vez neste Observatório da imprensa também falava do antissemitismo nosso de cada dia. Alguém comentou que o artigo era ‘longo demais, rebuscado demais e pesquisado demais para um texto em internet’. Mas reincido na falta. O tema é difícil e exige responsabilidade. É mais seguro ser reflexivo, mesmo que se atrase o timing. E também se precisa de um pouco de humildade. Diferentemente do nosso presidente, que se dirigiu ao Oriente Médio com fórmulas mágicas de paz, não tenho solução para coisa alguma: escrevo movido por indignação, preocupação e cuidado.

O fiasco da visita de Lula ao Oriente Médio já foi suficientemente comentado. Do editorial do Estadão a Veja, ninguém deixou passar sem ironia o ‘vírus da paz’. Mas penso que reduzir o significado da viagem presidencial a megalomania que o ‘conduz da futilidade à ridicularia’ (www.estadao.com.br, 16/3/2010) é simplificar demais uma política potencialmente perigosa.

As relações entre os Estados não são tão diferentes dos nossos encontros pessoais quando se precisa medir a confiança do outro: há que interpretar, às vezes rapidamente, palavras e gestos. No centro nervoso do globo, gestos são mais relevantes que palavras, porque inequívocos. O corpo fala o que a razão oculta.

A resposta de Caim

Nosso relacionamento recente com Israel é problemático. Somos uma democracia jovem, saímos de uma ditadura que nos fez signatários da mais obtusa e preconceituosa das resoluções das Nações Unidas, que vigorou de 1975 a 1991, e declarava o sionismo uma forma de racismo. Em visita a Israel, Lula perdeu oportunidade histórica de sepultar mais esse entulho autoritário. Ao contrário disso, porém, a aparição do presidente foi pautada por palavras esquivas, discurso intransparente e gesto inequívoco de agressividade. Nosso presidente consentiu em cumprir 50% do cerimonial proposto pelo anfitrião. ‘Ao Yad Vashen eu vou; ao túmulo de Theodor Herzl, não.’

Para cumprir metade do cerimonial, Lula justificou-se dizendo que ‘era quase-obrigatório’ visitar o museu do Holocausto. Eu relutaria em registrar a resistência manifesta no ato falho verbal, não fosse a agressividade do gesto que a imprensa em Israel noticiou corretamente: ‘O presidente do Brasil insulta Israel’.

A única explicação do Brasil veio de fonte não identificada da comitiva brasileira segundo a qual a decisão do presidente Lula ‘não foi influenciada por razões ocultas’. O embaixador do Brasil em Israel disse que para saber os motivos de Lula, ‘vocês terão que perguntar ao presidente’. Fez o possível para que o gesto não fosse imputado a todos nós, responsabilizando pessoalmente o presidente. Mas o que fica do discurso evasivo no seu conjunto é outro gesto, agora de inequívoca irresponsabilidade moral, que segue o paradigma da resposta de Caim à pergunta de Deus: ‘Onde está seu irmão Abel?’ Caim respondeu, depois de tê-lo matado: ‘Por acaso sou o guarda-costas de meu irmão?’

Símbolo do renascimento judaico

Em resposta, o governo de Israel esclareceu que o cerimonial é que não tinha razões ocultas. Só que o discurso aqui foi transparente. Falhou a nossa mídia, e a falha de informação foi séria porque as razões ocultas do Brasil foram traduzidas como sabedoria do presidente que não se teria deixado levar por pegadinha para constrangê-lo diante de seus (nossos) amigos palestinos, com todas as tintas agressivas que ativam o imemorial ódio dos povos aos judeus, agora transferido para o Estado de Israel. Para citar apenas um, entre os mais de 300 comentários no blog do Luis Nassif reaparece o arsenal de mitos do antissemitismo: os judeus (agora Israel) seriam colonizadores, agressivos, cruéis, assassinos, imperialistas, dominadores, donos de lobbies poderosos, aliados do ‘grande Satã’, os Estados Unidos, e usariam o Holocausto como chantagem para legitimar sua política abusiva de invasão da Palestina (interessante é que não vi uma única menção ao argumento clássico do antijudaísmo-cristão de que ‘eles mataram nosso deus’, sinal de que esse ódio está quase completamente secularizado). E percebemos não só como é irresponsável o vírus da paz presidencial, mas também que sob o verniz de nossa civilização aparentemente ecumênica sobrevive poderoso ódio aos judeus. Seja entre pessoas ou entre Estados, o ódio é sempre patológico. A reflexão precisa especular sobre diagnósticos e prognósticos de cura. Pelo razão óbvia de que as sociedades não podem analisar-se, o que podemos fazer é tentar uma via de auto-esclarecimento recíproco. Sem moralismos, sem dedos em riste, mas sem ficarmos na primeira ingenuidade que não enxerga o ódio latente, só lamenta quando já explodiram as bombas.

E não era difícil completar a notícia com as razões do outro lado, como mandam os bons manuais de jornalismo. Bastava fazer a pergunta: por que afinal de contas Israel mudou o cerimonial? O chefe do protocolo do Ministério do Exterior justificou a mudança dizendo que:

Israel estava jogando com as cartas da narrativa árabe ao levar chefes de Estado visitantes ao Yad Vashem, o que reforçava a idéia de que Israel existe apenas por causa do Holocausto. Era importante levá-los primeiro ao túmulo de Herzl, simbolizando o renascimento nacional judaico, que antecedeu ao Holocausto, e depois ao Yad Vashem. [Fonte: artigo de Herb Keinon, 18/3/2010 ‘Brazil´s Lula insults Israel, lays a wreath at Arafat´s tomb but refuses to do so at Herzl´s tomb,‘www.jpost.com, tradução minha].

A patologia do antissemitismo

Fechada a moldura dos fatos, começa a reflexão, de que adianto a conclusão: penso que a mudança simbólica descrita acima é mais significativa do que parece. É uma via dolorosa, sem sentimentalismo, mas por convicção de que Auschwitz significa o ‘maior trauma da civilização desde a crucificação de Cristo’, nas palavras de Imre Kertész. E não deve ser fácil aparentar que simbolicamente o Holocausto viria depois do nacionalismo secularizado que inventou a ideia do Estado de Israel. Mas por paradoxal que pareça é o caminho mais seguro para a preservação do Holocausto na memória universal, pois a um tempo seculariza Israel, retroagindo sua fundação à normalidade dos anseios nacionalistas de todos os povos europeus no século 19, elevando Auschwitz a lugar de memória religioso, único onde pode permanecer eternamente na memória universal.

Discuto três temas entrelaçados, a saber, o significado do sionismo judaico, os significados do Holocausto e o significado da expressão ‘narrativa árabe’, nesta ordem. Comecemos limpando o terreno. O sionismo como conspiração dos judeus para domínio do mundo é mais um mito do antissemitismo moderno. Quando o ódio modifica os fatos e os arquivos de memória aparecem distorcidos, precisamos resolver, ao menos telegraficamente, uma série de outras perguntas, tais como: de onde vem o ódio aos judeus? É um preconceito religioso? Mas por que sobrevive em forma secular? É profundo, vive no subterrâneo bárbaro da humanidade? É eliminável ou indestrutível? É tratável? Curável? O que ativa esse ódio? Até onde ele pode levar?

Não é fácil responder. Como observou Imre Kertész numa de suas conferências: ‘Seja qual for a ciência que examina o antissemitismo – é evidente que penso em ciência de verdade, e não numa ciência fraudulenta feita de parafernália ideológica –, ela sempre chega ao mesmo resultado: vê-se impotente diante dele’. Sobre a hipótese de Freud, Kertész pensa que ela seria quando muito ‘acompanhamento distante de harpa que dá colorido ao eco brutal do hino’ (A língua exilada, p. 50). A metáfora tem sua verdade, por isso vale a pena dar uma olhada rápida nesse acompanhamento distante, porque é o motivo profundo que ganha formas diversas na frágil superfície da civilização ao longo da história.

Sigmund Freud busca explicar, com as chaves de que dispõe, o fenômeno poderoso do antissemitismo em seus estudos sobre Moisés e a origem do monoteísmo, escritos entre 1934 e 1938, tempo em que o monstro rugia no subterrâneo. Não é este o espaço para descrever com profundidade como Freud cruza com maestria duas verdades, a histórica e a científica, de modo que me permito voar direto para o diagnóstico, que não é nem um pouco suave (para os que não são judeus): a patologia do antissemitismo nasce da inveja… dos judeus, que associamos ao irmão primogênito, mais velho e mais querido de Deus.

A ‘doença do Islã’

Como acontece com o indivíduo, a história humana passa por traumas que procura esquecer. O trauma primordial, na origem do monoteísmo, é o assassinato de Moisés. A imposição de um deus único, e ainda mais, a interdição à sua representação sensual, representam poderosa repressão à sensualidade que se manifestava no politeísmo, e assim é natural que os povos resistam. Tanto Moisés como Ikhnaton, antes dele, sofreram o destino de todo déspota esclarecido. Como acontece em todo crime, é mais fácil cometê-lo do que apagar os vestígios, de modo que também a história humana permite análise de sua verdade mais profunda através da leitura dos arquivos de memória coletiva registrados nas Escrituras. A humanidade passa pelos mesmos períodos de desenvolvimento da neurose individual: trauma precoce – reações defensivas – latência – ativação ou desencadeamento da neurose – retorno parcial do reprimido. Dentro desse quadro, o antissemitismo, por estar associado ao inconsciente humano, seria indestrutível. Se é tratável ou curável é algo que talvez vá adiante do que especulou Freud, que sabia com certeza que a psicanálise cura o indivíduo neurótico (nos limites do seu conceito de ‘cura’, que é apenas o acordo de tolerância entre a parte doente e a parte sã do indivíduo ou, de modo mais resignado, que o paciente consiga ao menos voltar ao mercado de trabalho e sobreviver sem dependência de outros), mas era bastante cético em relação às neuroses das massas, pois elas não cabem no divã. Por enquanto registremos que o antissemitismo tem essa analogia com a neurose individual, seus sintomas aparecem profundamente deformados, e por vezes o alvo do ódio sofre o ódio por transferência. O ódio germânico aos judeus, por exemplo, para Freud, seria originalmente ódio ao cristianismo transferido para a origem judaica do monoteísmo. Os germanos seriam ‘mal-batizados’ e não se conformariam à renúncia instintiva que toda religião monoteísta exige. Algo parecido, no sentido da inversão, acontece com o mito do sionismo. Ele é inversão de uma fantasia de poder do antissemita. Na origem, o monoteísmo só conseguiu impor-se tendo por fator externo a hegemonia mundial dos faraós, e por isso a religião do pai primordial alimentava esperanças de distinção, recompensa e por fim o desejo de dominação do mundo. Mas essa fantasia foi logo abandonada pelos judeus, que sublimaram o trauma primordial tornando o judaísmo uma religião de alta espiritualidade, através do interdito à representação sensual de Deus. Não obstante a fantasia sobreviveu entre seus inimigos como crença na conspiração dos ‘Sábios do Sião’ (refiro a edição castelhana das Obras completas, Biblioteca Nueva, p. 3292).

Como ainda precisamos dizer o que o sionismo não é, reportemos de fonte idônea que a ideia de associar o sionismo à conspiração dos judeus pelo domínio do mundo foi lançada num panfleto anônimo de nome ‘Os protocolos dos sábios do Sião’, forjado em Paris por volta de 1900 pela polícia secreta do czar russo Nicolau II. Permaneceu meio esquecido até 1919 quando começou carreira triunfal por todas as línguas europeias, atrás apenas do Mein Kampf de Hitler (Hannah Arendt, The origins of totalitarianism, p. 241). Como aquela fantasia desiderativa atribuída aos judeus na realidade circula pela mente dos antissemitas, não é ironia da história que uma sociedade profundamente antissemita como a russa, depois soviética, conseguisse criar uma sociedade totalmente controlada pela polícia, nos moldes alegadamente atribuídos aos sábios do Sião, como observa Arendt (idem, p. 241).

Freud não chegou a elaborar análise da religião muçulmana, também porque não era o foco de sua preocupação. Não tenho conhecimento para suprir essa falta, mas desde que assistimos ao deslocamento do ódio aos judeus do cristianismo para o islã é interessante observar como estudiosos árabes consideram que a ‘doença do Islã’, na raiz, não é outra senão ressentimento e frustração [Abdelwahab Meddeb, A doença do islã. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. pp. 16, 18]. Eis como o erudito franco-árabe explica o fenômeno:

Haveria melhor maneira de tirar do sujeito sua responsabilidade depois de tê-lo liberado de sua culpabilidade? A desgraça que assalta o sujeito do islã tem por origem o Ocidente… e Israel, cujo sucesso irrita: o contraponto disso é, com efeito, seu próprio fracasso que permanece inconfessável. (id. p. 94).

Por que os judeus não desapareceram?

Mas se a anti-sionismo (ódio patológico ao nacionalismo judaico) é considerado, corretamente, pelo estudioso árabe, como uma das doenças do islã, ao nos afastarmos um pouco da patologia e seus mitos começamos a pensar de modo diferente.

Penso que o nacionalismo é manifestação saudável de auto-estima de um povo. Pode tornar-se narcisista e ir à loucura (Freud certa vez disse das células cancerígenas que seriam células narcisistas…), pode adoecer de xenofobia, fanatismo e intolerância. Na normalidade, porém, significa o que disse dele o papa João Paulo II:

‘… amor a tudo o que faz parte da pátria: a sua história, as suas tradições, a sua língua, a sua própria configuração natural; um tal amor estende-se também às obras dos nossos concidadãos e aos frutos do seu gênio. Qualquer perigo que ameace este grande bem é a ocasião para testar um tal amor… A pátria é, portanto, uma grande realidade’ [João Paulo II, Identidade e memória – Colóquios na transição do milênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. pp. 78-9].

Talvez não seja coincidência que o papa polonês, povo cujo instinto de nacionalidade resistiu contra a barbárie soviética, tenha sido o autor do gesto, de significado enorme, de pedir perdão aos judeus pelos muitos anos de antijudaísmo cristão, que também contribuíram para o caldo de loucura que conduziu a Auschwitz.

Mas se o nacionalismo em si não é doença, e se todos os povos tem aspiração legítima à sua identidade, por que ela seria negada aos judeus?

A resposta segundo a qual eles não são e nunca foram uma nação não é historicamente verdadeira. É certo que a grande narrativa da filosofia da história de Hegel dizia que os judeus não tinham mais função ou ‘razão-de-ser’ depois de darem sua contribuição, o monoteísmo, à marcha do Espírito do Mundo. Mas nem Hegel resolveu o enigma que criou e não explicou por que os judeus não desapareceram nem se dissolveram em outras nações.

O desafio da identidade

Por não ter familiaridade com a tradição judaica, prossigo na companhia de Shlomo Avineri (aqui como em todo o texto assumo integral responsabilidade pela idoneidade das fontes), que depois da mudança de rumos da política de Israel em 1977, dedicou-se a pensar as origens intelectuais do Estado judeu, o que resultou no livro The making of modern Zionism. The intellectual origins of the Jewish State (1981). A ênfase na história intelectual de Israel não é intelectualismo. É natural, porque ao nacionalismo dos judeus faltava, desde a destruição do Templo e o exílio (galut, diáspora), um elemento que normalmente integra todo nacionalismo: a terra (configuração natural). Não é coincidência que a história do sionismo moderno comece com uma refutação à filosofia de Hegel. Precursores como Krochmal e Graetz, utilizando a linguagem da filosofia hegeliana, procuravam resolver o dilema: o povo de Israel sobreviveu unido no exílio porque sempre manteve uma unidade política simbolizada pela Torah. O poeta Heine dirá algo parecido: os judeus carregam a pátria nas costas, ela é a Torah (Agnes Heller, Jesus judío, p. 87). Mas a história do sionismo tem um paradoxo. De um lado sempre existiu um vínculo dos judeus com a Terra de Israel. Mas esse vínculo não alterou o cotidiano da vida judaica na diáspora, permaneceu ‘quietista’. A tradição judaica confiava que a Providência, não a intervenção humana, determinaria quando e como os judeus seriam redimidos do exílio. A pergunta é por que esse vínculo ativou-se no século 19, que:

sob qualquer critério, foi o melhor século vivido pelos judeus desde a destruição do Templo, coletiva e individualmente. Com a Revolução Francesa e a Emancipação, os judeus foram admitidos pela primeira vez na sociedade europeia em pé de igualdade. Pela primeira vez tiveram igualdade diante da lei, e escolas, universidades e profissões se abriram gradualmente para eles (Avineri, p.5).

Avineri responde: porque o sionismo é uma revolução radical no modo de vida judaico tradicional, e por isso é fruto da modernidade, da ilustração, da secularização e do fracasso da emancipação. Enquanto permaneceu no gueto, o judeu sofria perseguições tradicionais do antijudaísmo religioso, mas mantinha a sua polis em miniatura e ali mantinha íntegro seu sentido de pertencimento, a vida fazia sentido. A igualdade de direitos e admissão na sociedade quebram essa identidade, e começa um processo de assimilação que se afasta do judaísmo religioso tradicional. É significativo que nenhum dos fundadores do sionismo político moderno, Pinsker, Herzl e Max Nordau, tenha origem religiosa: suas reivindicações não eram econômicas, nem religiosas: ‘Eles respondiam, como os líderes negros norte-americanos um século depois – ao desafio de sua identidade, procuravam por raízes e amor-próprio numa sociedade secular que os retirou da tradição religiosa mas não chegou a integrá-los’ (p. 13).

Um futuro de conflitos entre as duas nacionalidades

O que acontece com a secularização e a ilustração é que os sentimentos de hostilidade que eram religiosos, com o acréscimo de competição social pelo ingresso dos judeus em sociedade em igualdade de condições, transferem-se aos poucos para a ‘raça’ e aqui a porta da assimilação se fecha. O judeu não pode mais fugir de sua raça. O século dos nacionalismos é o século de desenvolvimento do racismo como ciência. Moses Hess foi o primeiro a reconhecer que foi durante o período de emancipação e secularização que se deu a mudança do antigo antijudaísmo cristão para um novo antijudaísmo racial, o moderno antissemitismo. Sob o impacto do massacres de 1881 na Rússia, os intelectuais que até então acreditavam na promessa da ilustração judaica (haskala) de que a hostilidade era apenas um preconceito religioso que acabaria ao acender de luzes da razão, começam a perceber que o ódio vive num lugar mais fundo. Theodor Herzl situa-se mais ou menos no meio do caminho do sionismo moderno. Não teve ideias novas, mas foi o grande difusor da utopia do ‘Estado judeu’ (título de um de seus livros, de 1896) e da vida na Velha-nova-terra (Altneuland, 1902), que combinava o projeto sionista ao socialismo utópico francês de Charles Fourier. Seu mérito foi o de dar dimensão pública ao sionismo. Organizou o primeiro congresso sionista em 1897, entrevistou-se com o papa, frequentou os gabinetes de todos os poderosos, deu ‘visibilidade’ (segundo o jargão de hoje) à causa sionista, que deixou de ser tema de eruditos que escreviam em hebraico para ganhar lugar na opinião pública do mundo. Até 1948, o movimento acompanha o ritmo intelectual de seu tempo. Alguns tentarão combiná-lo com o marxismo, síntese difícil, pois a grande narrativa do marxismo também resolvia o problema judaico dizendo que ele não existia, pois no futuro comunista não haveria nenhuma nacionalidade ou religião. Aparece com Jabotinsky um sionismo integralista, e enfim o movimento que era secular combina-se com o judaísmo religioso na dialética de Rabbi Kook, segundo a qual os sionistas seculares promoviam, sem o saber, os desígnios de Deus. Com a criação do Estado de Israel, sob qualquer padrão de interpretação, o sionismo é uma utopia realizada [talvez a única utopia bem realizada, ainda que problematicamente, eu diria]. É uma história de sucesso. Tanto que Ben Gurion clamou, após a criação do Estado de Israel, pela dissolução do movimento. Segundo Avineri, a conquista essencial foi a criação de um ‘foco público e normativo para a existência judaica’ em substituição àquela polis em miniatura que desaparecera com a emancipação. Avineri termina sua história no presente (o final da década de 70 do século passado) com proposição de que o sionismo deveria prosseguir, para afirmar a diferença identitária de Israel, por seu foco comunitário, em relação à vida dos judeus da diáspora, porque apenas como ‘diferença’ Israel seguiria como foco normativo de identidade (aqui talvez o militante do partido trabalhista, com algum acento romântico, fale mais alto que o historiador). Com certeza haverá quem com razão diga que o sionismo deve permanecer porque Israel não conseguiu normalizar as relações de todos os povos com os judeus. Seja como for, é certo que o sionismo muda de foco com a criação do Estado de Israel, fato que também altera profundamente as relações de todos os povos com o povo judeu.

E então retornam as mitologias. O slogan ‘uma terra sem povo para um povo sem terra’, imputado pelo nacionalismo palestino ao sionismo, é o exemplo paradigmático, pois não pode, legitimamente, ser atribuído ao movimento sionista. No geral a temperatura elevada de amor-ódio que regula o relacionamento de todos os povos com os judeus deturpa e descontextualiza os fatos históricos. Ao contrário do que é frequentemente reivindicado, o movimento sionista não ignorou a presença árabe na terra que considerou sua pátria. Moses Hess sustentou que o nacionalismo judeu andaria paralelamente ao renascimento do nacionalismo árabe. Herzl apresentou uma proposta talvez ingênua de integrar a população árabe aos valores humanistas de sua Altneuland. Quando se tem um sonho (e o movimento sionista foi utópico) não há nada mais natural que adiar os problemas. De qualquer forma, desde 1891, quando praticamente ainda não existia um movimento nacionalista palestino, Ahad Hal´am iniciou amplo debate sobre a realidade da Palestina e percebia que o futuro traria conflitos trágicos entre as duas nacionalidades (Avineri, p. 122). [Mais sobre o tema encontra-se em artigo online de fonte autorizada: Diana Muir, ‘A land without a people for a people without a land’, Middle East Quarterly, Spring, 2008, pp. 55-62].

Afirmação dolorosa, mas corajosa

Ainda que breve, a digressão histórica acima possivelmente nos habilite a limpar um pouco o terreno das mitologias que envolvem o sionismo. E podemos pensar que é perfeitamente normal que Israel inclua no cerimonial homenagem ao fundador, Theodor Herzl, primeiro estadista da ideia do Estado de Israel. Retroagir a origem ao século 19 é uma forma de normalização, pois todos os outros povos também buscavam nesse período afirmar sua identidade nacional a partir da desagregação dos grandes impérios otomano, austro-húngaro, etc. A diferença é que a normalização, no caso dos judeus, por conta daquele motivo profundo do subterrâneo, parece que jamais será um processo natural.

A história do sionismo está cheia de sonhos e dramática ingenuidade. O médico Pinsker, sionista russo, por exemplo, deu um diagnóstico duro: a judeophobia era uma ‘aberração psíquica hereditária, e por ser transmitida por dois mil anos, incurável’, mas ao sonhar com a pátria, miraculosamente resolvia tudo: se odeiam os judeus porque não temos pátria, quando tivermos uma pátria ‘todos se relacionarão com os judeus normalmente e a judeophobia vai se acabar’ (Avineri, p.77).

Pelo menos já sabemos que o monstro continua(rá?) rugindo no subterrâneo. Kertész anota em seu diário: ‘Por que odeiam os judeus mais ainda depois de Auschwitz? Por causa de Auschwitz’ (Diario de la galera, p. 232).

Para a normalização da fundação de Israel na história universal o gesto introduzido pelo novo cerimonial é significativo. Não é negação do Holocausto. É afirmação de que o direito de Israel à sua pátria em algum pedaço da Palestina é antigo, nada diferente por natureza do direito de todos os outros povos, não é um crédito pelo Holocausto. É também dolorosa, mas corajosa afirmação de que Auschwitz não cabe na história.

Uma construção mental do ser humano

Prosseguimos com diálogo (nem tão imaginário) entre Imre Kertész e Agnes Heller. Começaremos alterando a expressão Holocausto para o nome Auschwitz. Por dois motivos.

Com a filósofa Agnes Heller, porque o Holocausto não pode se esvair na história, deve permanecer no presente absoluto. E a memória coletiva se apega mais facilmente a ‘lugares de memória’, como enfatiza a escola de Pierre Nora.

Imre Kertész, além de notável escritor, é também pensador radical que tem um pensamento só, Auschwitz: ‘nada me interessa de verdade exceto o mito de Auschwitz. Quando penso num romance, penso em Auschwitz. Quando em aparência falo de outra coisa, falo de Auschwitz. Sou o médium do espírito de Auschwitz. Auschwitz fala através de mim’ (Diario, p. 32). O médium de Auschwitz não pode mais ouvir falar do Holocausto, da estilização do Holocausto, que começa pelo seu nome, ‘covarde eufemismo’ (Dossier K, p. 69) que encobre algo muito mais sonoro e significativo, como Endlösung, solução final, ou mesmo ‘campos de extermínio’. Mudado o nome, perguntamos: que significa dizer que Auschwitz não cabe na história?

Agnes Heller escreveu, respondendo à dogmática e infeliz frase de Adorno segundo a qual depois de Auschwitz não se pode fazer poesia, que Auschwitz não cabe na história. Agnes Heller é filósofa que procurou compreender, através da filosofia, o Holocausto. Na verdade não conseguiu, o que não é porém um fracasso, porque chegou à conclusão de que não se pode compreender Auschwitz como se compreende um fato da história. O que se pode é saber que Auschwitz não é um fenômeno que diga respeito ao barbarismo primordial, atávico, primitivo, é um fenômeno moderno, e o que a filosofia pode fazer é tentar compreender a modernidade, que produziu Auschwitz. Por isso sua filosofia se erguerá sobre dois pilares fundamentais: ética e história.

Kertész é um pensador radical, formula mais perguntas que respostas. Em seu diário, registra em junho de 1990, sobre a tese de Agnes Heller:

Um absurdo lógico-sistemático. Ao fim e ao cabo a história não é um organismo natural, mas uma construção; concretamente uma construção mental do ser humano. Se Auschwitz não cabe na história, a culpa não é, portanto, de Auschwitz, mas da história (Diário… p.251).

Auschwitz deve ser mantida na memória

Mas Auschwitz não cabe na história. A história afinal se faz compreensível através da historiografia, e esta como toda ciência social trabalha com causas (ainda as quatro causas de Aristóteles, individualmente ou combinadas: causas materiais, formais, eficientes, finais). Ninguém que chegasse à soma de todas as causas de Auschwitz chegaria a compreender como Auschwitz foi possível. Muitos pensam que a filosofia ‘inventa’ valores, etc., o que não é correto. A filosofia dá forma ao que existe, como se encontrasse uma fórmula matemática. ‘Auschwitz não cabe na história’ é uma fórmula. Um historiador sóbrio como Gollo Mann, ao escrever a história da Alemanha moderna (desde 1789) abre o capítulo do III Reich com perguntas que normalmente não fazem parte da narrativa histórica. Diz que não consegue encontrar o ‘tom’ da narrativa. Talvez nem seja um capítulo apenas da história alemã? Registra circunstâncias, antecedentes, as relações internacionais, etc. Quando chega a Auschwitz queda em silêncio. Não pode imaginar, logo não pode narrar a história de Auschwitz. A história aqui se faz memória, e esta pertence aos sobreviventes, não ao historiador. A fórmula de Agnes Heller é verdadeira.

Kertész em entrevista a si mesmo (Dossier K) cogita: só se pode abordar Auschwitz partindo de Deus / Se Auschwitz foi em vão, Deus entrou em falência, e se declaramos a falência de Deus, não entendemos Auschwitz / Aprendi muito dos escritos musicais de Adorno, mas depois do que ele disse, não li mais nada / Adorno posa de moralista, considera o poeta um voyeur dos horrores e o proíbe, com voz de falsete, de escrever versos depois de Auschwitz / Só o que se pode escrever sobre Auschwitz é poesia, mas não é fácil / (Em conferência em 1991, em Budapeste) porque Auschwitz não tem grandeza estética: ‘no conjunto, os retratos do extermínio são desanimadores, cansativos: não instigam a fantasia. Como pode o horror ser objeto estético se não contém nada de original? Em vez de morte exemplar, os simples fatos oferecem montanhas de cadáveres’ (‘Uma sombra longa, escura’, A língua…p. 55).

Auschwitz não cabe na história. Quando se lê a historiografia sobre Auschwitz, percebe-se que sempre falta algo. Agnes Heller escreve: Parece que só a poesia poderia descrever os silêncios que envolvem Auschwitz: os silêncios da vergonha, da falta de sentido, do horror e da culpa. Historiadores e sociólogos podem discutir as origens da ditadura nazista, seu modo de operar, e assim ‘por implicação’ discutem também o silêncio da falta de sentido. Mas se continuamos achando que falta algo, não estamos errados. Mas, paradoxalmente, mesmo não cabendo na história, conclui a filósofa que ‘os silêncios envolvendo Auschwitz devem ser constantemente tratados, pela filosofia, pela história e pela poesia […] de modo que Auschwitz seja constantemente mantida na memória’ [Agnes Heller, ‘Can poetry be written after Auschwitz?’, in The grandeur and twilight of radical universalism. New Brunswick; London: Transaction, 1991].

Um hiato na história

Em conferência em Viena em 1992, Kertész modifica sua percepção da frase ‘Auschwitz não cabe na história’. O pensador também manifesta a mesma perplexidade diante do excesso de tentativas de compreensão de Auschwitz, que parece que nunca chegam a compreender como Auschwitz foi possível. Referindo-se a Agnes Heller, escreve:

de uma filósofa cheguei a ouvir que o Holocausto não cabe na história, como se a história fosse um armário com gavetas cujas dimensões definiriam o que nelas cabe ou não. Porém, nossa filósofa sem dúvida deve ter razão num aspecto: o Holocausto, levando-se em conta sua marca principal, não é acontecimento histórico, como, por sua vez, digamos, também não é um acontecimento histórico o Senhor ter entregado para Moisés no monte Sinai as tábuas com letras entalhadas (conferência ‘O Holocausto como cultura’. A língua exilada, p. 72).

E aos poucos Kertész aproxima-se da concepção da filósofa. Kertész registra que desde o início ‘uma angústia aterrorizante aderiu ao Holocausto, a angústia do esquecimento. Essa angústia superou os horrores, as vidas individuais e as mortes, superou o desejo ávido de justiça […] essa angústia foi perpassada também desde o princípio por um sentimento metafísico que caracteriza as religiões e o sentimento religioso’ (idem, p. 63). E essa angústia aterrorizante não termina, ela aumenta à medida que a história deixa Auschwitz para trás, e põe em seu lugar a ‘estilização do Holocausto’, que vai desembocar no kitsch, ‘de proporções paquidérmicas’, do filme de Spielberg, que descreve uma história em preto e branco com final triunfante e a ‘multidão vitoriosa que aparece em cores’ (Kertész, ‘A quem pertence Auschwitz?’ In A língua exilada. p. 176). Qualquer história individual sobre Auschwitz, diz Kertész, participará dessa estilização kitsch se não implicar uma pergunta mais profunda, cuja resposta diz que a humanidade inteira não pode ser a mesma depois de Auschwitz. Porque ‘só os mortos não ficaram manchados pela infâmia do Holocausto’ (Dossier K, p. 182). Toda sobrevivência individual significa apenas que se produziu uma pequena avaria na máquina de produção de morte (Dossier K, p. 30).

Mas se Auschwitz não cabe na história, onde cabe Auschwitz? Segundo a filósofa, a solução possível está na categoria filosófica que dá um nome para a migração para outro gênero. Chama-se ‘salto’ (em Kierkegaard). Auschwitz não cabe na história porque Auschwitz é um salto sobre um abismo para o Mal. Não há explicação possível que dê conta do hiato que está entre as causas da história normal, de um lado, e aonde se chegou, do outro lado do abismo. Mas se Auschwitz foge ao gênero história migra para onde? Deve migrar para a religião.

Horror, falta de sentido, vergonha e culpa

Em estudo mais recente (La resurrección del Jesús judío, original húngaro publicado em 2000) Agnes Heller retoma o tema no contraponto entre dois lugares de memória: ‘Auschwitz e Jerusalém’. A filósofa concorda com Kertész que Auschwitz foi o maior trauma da civilização após a crucificação de Cristo. É preciso buscar uma terapêutica para o trauma, porque sabemos com Freud que ele costuma subir à superfície como um monstro agressivo. Como intérprete atenta do Moisés de Freud, porém, Agnes Heller enfatiza que nesse estudo ele também indicou que o reprimido pode voltar sublimado, como acréscimo de espiritualidade. Esta será a contribuição terapêutica das religiões monoteístas, que mudam de função. Na reflexão dos cristãos mais profundamente religiosos o trauma começa a retornar como espiritualidade e abertura ao verdadeiro ecumenismo, que é diálogo com o absoluto do outro sem que se abra mão do próprio, não é simbiose nem sincretismo. Segundo Heller, essa consciência também se faz possível pela memória de que Jesus originariamente foi judeu. ‘Alguns fiéis cristãos começaram a pensar que Jesus foi crucificado simbolicamente em Auschwitz, que morreu de novo’ (Jesús judío, p. 90).

A oposição topográfica ao lugar de memória Auschwitz é Jerusalém. Jerusalém é o lugar de memória judaica. Os vínculos do judaísmo com a Terra de Israel não foram jamais apagados. Ao passo que Auschwitz será preponderantemente o lugar religioso de preservação da memória dos silêncios de Auschwitz, sobretudo da culpa e da vergonha. Pois:

Os cristãos de fé descobriram, devido a Auschwitz, que nessa história interpretaram o papel de Caim. E que não se deve responder à pergunta de Deus: ‘Onde está Abel, teu irmão?’ dizendo ‘Por acaso sou o guarda-costas de meu irmão?’.

A toponímia Auschwitz sinaliza para um Abel coletivo, e desse modo simboliza a morte dos inocentes. Os que são crentes recordarão que o inocente é o preferido de Deus. (Jesús judío, p. 89).

Se retornarmos ao motivo profundo do antissemitismo, podemos compreender melhor o que Kertész queria dizer quando responde ‘Por causa de Auschwitz’ à pergunta: ‘por que odeiam mais os judeus depois de Auschwitz?’

A modificação simbólica no cerimonial de Israel está dolorosamente correta. Porque só como símbolo religioso, que sinaliza para um ‘Caim coletivo’ e para um ‘Abel coletivo’, Auschwitz permanece na nossa presença eternamente. E será nos templos dedicados à memória de Auschwitz que expressaremos os silêncios que envolvem Auschwitz: do horror, da falta de sentido, da vergonha e da culpa. Por isso, talvez o cerimonial pudesse dar um passo à frente e deixar que os chefes-de-estado peçam para visitar o Yad Vashen. Mas com a mudança já feita o Holocausto já deixa definitivamente de ser integrado à narrativa árabe, como corretamente perceberam os dirigentes de Israel.

A ingenuidade ilustrada

Que significa a expressão ‘narrativa árabe’?

É mais uma inversão ou transferência de uma falta moral nossa ao Outro, o Inimigo, que apanha para que apaguemos nossa culpa e responsabilidade por nossas frustrações. A transferência se faz no plano ético, por isso ela aparenta nobreza. Imputa-se a Israel (e a todos os judeus) violação da Lei Moral com letra maiúscula, do modo como formulada por Immanuel Kant: age de tal modo que o outro não seja instrumentalizado, não seja apenas meio. A mitologia aqui reza que eles seriam tão usurpadores que não hesitariam em justificar-se instrumentalizando a memória de seus seis milhões de mortos.

A narrativa árabe opera a mesma inversão que aparece na esquerda ocidental, desde que se perdeu qualquer limite ético e político ao conceder ao terrorismo a aura da ‘militância’ e da ‘resistência’. Na França, a pretexto de crítica à política de Israel no Oriente Médio, intelectuais e jornalistas publicaram livro de título exemplificativo dessa inversão. Anti-semitismo: A intolerável chantagem (Étienne Balibar et alli. Rio de Janeiro: Anima, 2004). Traduzindo: como os judeus seriam segundo a mitologia ‘eternos usurários’ não hesitariam em usar, além do Holocausto, o antissemitismo como moeda de troca.

Pelo que observo, nosso antissemitismo manifesta-se pela adoção apaixonada da narrativa árabe. É um ódio intelectual de um inimigo superdimensionado que se pratica em nome do bem e da justiça. Sou capaz de apostar que muitos que se manifestam, com a liberdade que o mundo virtual lhes deu, em apoio ao insulto de Lula a Israel, não são amigos ou sequer conhecidos nem de judeus nem de árabes. O ódio é intelectualizado, do mesmo modo como se inventou o amor intelectual de deus. Só que a fórmula do amor intelectual de deus dizia que diante de deus estamos sempre errados, ao passo que a fórmula do ódio intelectual diz que diante do Inimigo estamos sempre certos, ele nunca pode ter um resquício de razão, e pior, seu sofrimento é sempre justo.

‘Ódio platônico aos judeus, na expressão de Imre Kertész (Diario…p.182), é o modo como o antissemitismo aflora no solo do Brasil.

Mas será curável? Ou pelo menos tratável?

Reconhecer a indestrutibilidade de sua origem inconsciente é meio tratamento. Pela sua natureza intelectualizada, é possível que outra metade do remédio amargo possa vir do auto-esclarecimento mútuo. Deixamos para trás aquela ingenuidade ilustrada, mas isso não deve fazer desesperar: se não podemos eliminar a fonte do ódio, podemos tratá-lo aprendendo a sentir uma emoção mais forte e contrária. A justiça é essa emoção mais forte, mas como toda emoção precisa ser cultivada, precisa de rega e poda nas ervas daninhas (a figura é também de Agnes Heller em sua teoria dos sentimentos).

Um muro não é coisa nobre

Precisaria desenvolver mais detidamente o que segue, mas não se pode querer esgotar todos os temas ao mesmo tempo. Eu diria, telegraficamente, que o problema ético do nosso ódio platônico aos judeus está na sua origem aristocrática. Ainda vive no imaginário da esquerda a ideia de que para fazer justiça podemos agir como herois. Uma ética de heróis, como formulou Lukács referindo o dilema de Judith, admite que não se pode recuar se ‘entre mim e o meu dever Deus puser o pecado’. Mas já é tempo de deixar a ética aristocrática de herois na gaveta da história do sublime-aterrador século vinte. É tempo de retornar a uma ética democrática, mais prosaica, mas que tem válvulas de segurança: a Lei Moral (com letra maiúscula, o interdito a instrumentalizar os outros), o interdito ao assassinato; o retorno a padrões civilizados de guerra justa do direito natural, do ius ad bellum, do ius in bello, das convenções de guerra; o interdito a fazer reféns, sequestrar civis ou militares como moeda de troca. Sem essas válvulas, o imperativo categórico de emprestar nossa palavra e espada aos que sofrem mais, ficou desnorteado e sem rumo. Quando se respeita o outro não se pergunta apenas quem sofre mais, também se pergunta quem sofre injustamente. Quem pretende seguir assassinando inocentes através do terrorismo não merece respeito, mesmo que seja um doente terminal de desesperança ou um frustrado intelectual.

Nosso tempo ainda exige que sejamos rebeldes. A diferença é que chegamos a um ponto em que é ‘mais rebelde aquele que vive sem assassinar que o assassino’ (Kertész, Diario…p.52).

Antes que bata o cansaço, voltemos à indignação que nos motivou. Penso que a política externa anunciada pelo Brasil é bem mais perigosa do que parece. Novas declarações do presidente confirmam isso. À comunidade árabe de São Paulo, recentemente (25/03/2010) Lula disse:

Não estou disposto a ficar silencioso.

…quero que o Irã tenha o direito de enriquecer urânio para produzir energia elétrica, para cuidar da indústria farmacêutica, para produzir remédios.

Um muro dentro de Israel não é uma coisa nobre no século 21.

A dívida da coroa de flores

Aqui não temos nem mesmo a resistência que aparece no ato-falho: a referência ao muro é injustiça consciente, ativação de analogia falsa e fora de contexto com o imaginário do muro de Berlim, que caiu gloriosamente em 1989. Mas este muro em Israel não é o muro dos vencedores, é o muro da impotência erguido para tentar minimizar assassinatos diariamente cometidos por terroristas suicidas. A garantia da integridade física dos cidadãos contra o terrorismo deve ser justa e suficiente. Este muro tem sua justiça. Ele só não tem mais suficiência. Se Lula não conseguiu perceber quando esteve em Israel, a morte agora chega pelos ares. No dia 18 de março de 2010, foguete vindo da Faixa de Gaza matou um trabalhador imigrante da Tailândia em Israel. O atentado foi reivindicado pelo grupo Ansar al-Suna Brigades, atuante na Faixa de Gaza e afiliado à al-Qaida (fonte JTA). Se Lula não quer mais ficar silencioso, deve esperar que numa democracia seja criticado quando fala perigosamente.

Lula adota um apoio condicional ao Irã que não tem a mínima seriedade: ‘O que eu não posso aceitar é a ideia do Irã produzir arma nuclear. Daí o Brasil será contra’.

Nas relações entre os Estados precisamos medir a confiança do outro através de palavras e gestos. O mundo civilizado recebeu mensagem inequívoca de Ahmedinejad e ele conclama: recalcados do mundo, uni-vos. Varrei do mapa o Inimigo Sionista. É por esse exato motivo que o Irã não tem direito de enriquecer urânio para coisa nenhuma, e o Brasil não deve dar endosso em cheque ao portador, porque nossa Constituição não admite que alguém persiga o objetivo de varrer do mapa outro Estado.

O grande filósofo da história disse acreditar que a gente só aprende com a história que nada se aprende da história. E, contudo, temos o direito de tentar lembrar, tentar aprender. Entre 1934 e 1938, o judeu Sigmund Freud ouvia o rugido sonoro do monstro subterrâneo do ódio, e pressentiu a explosão da barbárie. Mas não apenas ele. O escritor alemão Thomas Mann advertiu: Achtung [cuidado] Europa.

Não sabemos o que Lula conversará com Ahmadinejad no Irã. Mas ainda há tempo para dizer ‘cuidado, presidente’. Achtung Brasil.

Como também há tempo para depositarmos, simbolicamente, nossa preocupação, cuidado e solidariedade, em substituição à coroa de flores que Lula ficou devendo em homenagem a Theodor Herzl.

Não há fórmulas mágicas

Aos que se interessam pela perspectiva existencial do segundo tópico, recomendo como leitura complementar, ainda que muitos sejam indisponíveis em nossa língua: De Imre Kertész, Sorstalanság – memorável documento/testamento/memória de Auschwitz (nome usado como equivalente ao Holocausto, de fato o autor foi liberado do campo de Buchenwald). Ainda que seja uma narrativa linear, foi esculpido poeticamente, deixando para trás tudo que era particularidade, numa sucessão impressionante de flashes simbólicos: a universalidade de Auschwitz [disponível em espanhol, Sin destino, e inglês, Fatelessness]. Também a obra de Kertész como pensador existencial de Auschwitz: Gályanapló (em espanhol, Diario de la galera) e Dossier K. (em espanhol). Em português, as conferências reunidas no livro A língua exilada (Companhia das Letras, 2004). Da filósofa Agnes Heller, o livro La resurrección del Jesús judío (Barcelona: Herder, 2007).

Para os dilemas do Oriente Médio, as conferências de Amós Oz na Alemanha em 2002, ainda que um pouco otimistas, pois anteriores à tomada de Gaza pelo Hamas em 2007, publicadas em português no livro Como curar um fanático. Ediouro, 2004. Interessante como ele formula o paradoxo ‘fanáticos são incuráveis/como curar um fanático?’ O autor apresenta-se como especialista no assunto, por ter sido um fanático. E pede a todos os bons moços e moças do Ocidente que parem de se dirigir a todos, israelenses e palestinos, de dedo em riste como uma antiquada diretora de escola vitoriana, parem de querer encontrar lá um faroeste com bandidos e mocinhos. Porque a tragédia do Oriente Médio é que o conflito se fez entre ‘o certo e o certo’, e não há fórmulas mágicas para a paz se não nos aproximamos das partes em divórcio litigioso com muito respeito.

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Mestre em Direito (UFSC) e Filosofia (New School), autor de Democracia ou Fundamentalismo? (2004) e Esperança e Memória: esboços de compreensão política e cultural (2007); procurador da República em Florianópolis, SC