GOVERNO LULA
Lula já perdeu quase meio ano, afirma Kenneth Maxwell
‘O historiador britânico Kenneth Maxwell, 66, diretor do Programa de Estudos Brasileiros na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ‘está demorando muito tempo para montar o governo’ de seu segundo mandato, a ponto de não ser possível ainda ‘saber o que querem fazer nos próximos três anos e meio’.
‘Perdeu-se quase meio ano, já estamos em maio. Há falta de ação em vários níveis e assuntos importantes para o Brasil. Todas essas coisas estão demorando muito’, diz, apontando como consenso entre especialistas a necessidade de uma reforma tributária e de ações na área de segurança pública. Para Maxwell, é de toda forma um traço distintivo da política brasileira certa morosidade no arranjo de coalizões e na proposta de programas e leis que afetem o dia-a-dia dos cidadãos.
O historiador passa a escrever semanalmente, a partir da próxima quinta-feira, sobre esse e outros assuntos na página A2 da Folha.
Com graduação pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e doutorado em Princeton, nos EUA, Maxwell é uma referência na historiografia sobre o período colonial brasileiro. Ele também tem estudos sobre Portugal, desde o império ultramarino até a redemocratização pós-Salazar.
No livro ‘A Devassa da Devassa’ (Paz e Terra, 1977), fez um dos primeiros estudos apoiado em ampla documentação em fontes primárias sobre a elite econômica de Minas no século 18 e suas relações e conflitos com a metrópole portuguesa. Sua obra mais recente lançada no Brasil, ‘O Império Derrotado’ (Companhia das Letras, 2006), trata da Revolução dos Cravos, em Portugal.
O historiador foi diretor do Programa de América Latina do Council on Foreign Relations, um dos mais importantes centros independentes de estudo norte-americanos, entre 1989 e 2004. Ele também deu aulas nas universidades Yale, Princeton e Columbia.
Em maio de 2004, renunciou ao seu cargo no Council em protesto a uma interferência do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger, que teria impedido a publicação de uma carta sua na revista ‘Foreign Affairs’, ligada ao CFR. A ‘Foreign Affairs’ havia publicado uma resenha de Maxwell em novembro de 2003 sobre o livro ‘O Arquivo Pinochet’, de Peter Kornbluh, que trata do golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, em 1973, e da participação americana no episódio -à época, Kissinger era o secretário de Estado.
Na edição seguinte, a revista publicou uma carta de William Rogers, que trabalhou sob o comando de Kissinger como secretário assistente para a América Latina no período do golpe e que então era vice-presidente de sua empresa de consultoria -a Kissinger Associates-, em que afirmava não haver provas concretas da participação americana no episódio.
Seguiu-se uma réplica de Maxwell, uma tréplica de Rogers, e o brasilianista, por decisão do editor da revista, não pôde publicar um texto final de resposta. ‘Isso tem a ver com a atmosfera em geral dos EUA, que passou a ser um lugar bem menos aberto para o debate público’, disse ele à época, acrescentando ter sido cuidadoso em sua resenha. ‘O que está provado é que os EUA tiveram participação nas condições que levaram ao golpe. Fui bastante cauteloso. Essa é a ironia. O golpe foi feito por chilenos, e disse isso bem claramente no artigo’, disse então.
Sobre a política brasileira recente, Maxwell vê como conquistas do primeiro mandato de Lula a diminuição da vulnerabilidade da economia do país e da desigualdade sócio-econômica, ainda que, no segundo caso, em pequena escala.’
CORRUPÇÃO & MÍDIA
Feliz aniversário
‘AINDA que pareça, não é coincidência. É o final feliz, embora não para todos, construído pelo longo percurso que levou José Reinaldo Tavares a ministro, a parlamentar, a governador e, nesta semana, à cadeia. Na ocasião mesma em que faz exatos 20 anos, completados no dia 13, o maior dos escândalos provocados pela corrupção em licitações públicas: o da concorrência de US$ 2,5 bilhões, que a Folha comprovava ser fraudulenta, para construção da ferrovia Norte-Sul (ou Maranhão-Brasília) sob a responsabilidade de José Reinaldo Tavares, ministro dos Transportes no governo Sarney.
Concorrências e obras públicas sempre foram cenários de fraudes e alta corrupção, com duas barragens protetoras. Uma, a dificuldade de comprovação, na hipótese (nunca mais do que hipótese) de que um político se dispusesse à denúncia; outra, as variadas ligações das grandes empreiteiras com os meios de comunicação. Ao valor inicial fabuloso, porém, o projeto da Norte-Sul acrescentou a novidade de um esquema complexo para sua implantação.
Uma subsidiária obscura da então estatal Vale do Rio Doce, chamada Valec, foi reativada e deslocada para a órbita do Ministério dos Transportes, com o encargo de fazer as operações relativas à Norte-Sul. A longa extensão da ferrovia foi dividida em 18 setores de construção, cada um deles a ser atribuído a uma empreiteira. A licitação equivalia, portanto, a 18 concorrências. Ou à complicada acomodação dos interesses de 18 grandes empreiteiras, na divisão de lotes com tarefas e valores diferentes, e ainda, no outro lado, os interesses dos que criaram o projeto, geriam a concorrência e conduziriam a obra.
Ainda assim, no dia 7 de maio pude telefonar da redação carioca da Folha para a sede paulista, com um assunto importante. Já diretor de redação, Otavio Frias Filho estava no exterior, falei com Octavio Frias de Oliveira: na semana seguinte haveria uma concorrência de US$ 2,5 bilhões (ele estava a par) e nós já sabíamos os futuros ganhadores, mas o problema era a comprovação do conhecimento antecipado, que desnudaria a concorrência como farsa e demonstraria a fraude e a corrupção. ‘Já sabemos?’ -era mais um desejo irônico de confirmação do que espanto. Sabemos, e a idéia seria publicar disfarçadamente o resultado em alguma parte do próprio jornal.
Não ouvi mais do que uma breve resposta com o sentido indireto de assentimento. Nenhuma advertência, nenhum sinal de apreensão. Não creio que alguém, em qualquer tempo do jornalismo brasileiro até então, pudesse imaginar uma atitude assim, tão objetivamente livre, tão puramente jornalística, de um empresário de imprensa diante de um assunto sempre imaculado por força dos seus muitos perigos. De minha parte, todos os minutos daqueles dias foram de tensão pura, mas com a certeza de que já encontrara naquele telefonema o momento culminante, para mim, de todo o episódio jornalístico da concorrência.
Com o aspecto de comunicado referente a sorteio ou algo assim, e sob o título ‘Lotes’, montei um anúncio, posto entre os classificados, combinando letras que identificassem cada empreiteira e, ao lado de cada uma, o número do setor que lhe caberia como ‘vencedora’ na disputa das propostas técnicas e de preço. Presença já secular nos jornais, os classificados enfim tornavam-se parte do jornalismo: à noite do dia 12 a Valec divulgava o resultado da concorrência e, na manhã seguinte, a Folha reproduzia o anúncio publicado cinco dias antes. A relação oficial dos ‘vencedores’ da disputa era exatamente igual ao antecipado pelo anúncio.
O escândalo foi imediato. No governo sucederam-se reuniões. José Reinaldo Tavares comunicou um processo contra mim na Lei de Segurança Nacional. Dissuadido por Saulo Ramos, consultor-geral da República, transferiu a Romeu Tuma, diretor da Polícia Federal, a instauração de inquérito policial para me incriminar pela afirmação, no texto do dia 13, da ocorrência de fraude e corrupção, que não estariam provadas. Poucos dias depois, em sua reportagem de capa, ‘Veja’ explicava serem necessários uns 10 milhões de anúncios, considerando-se o alto número de concorrentes e de setores em disputa, para acertar o resultado com a precisão exibida.
O procurador da República designado para me interrogar com a PF, e participar da investigação, mostrou-se mais hostil e determinado a me incriminar do que o delegado incumbido do inquérito. Mas, no relatório final, chegou à conclusão da existência de motivos para processo criminal, sim, mas contra os responsáveis e operadores da concorrência, os do lado governamental como os das empreiteiras. Meses de manobras, para esfriar o assunto até o esquecimento, encerraram-se pelo arquivamento do inquérito e da recomendação do procurador.
A anulação da concorrência não impediu José Reinaldo Tavares de seguir sua carreira e sua vocação autêntica, até ser preso, agora, sob acusação de relações corruptas com uma empreiteira, quando governador do Maranhão (até cinco meses atrás). As grades da carceragem da Polícia Federal em Brasília o impediram de também estar na inauguração, feita anteontem por Lula, de um trecho da Norte-Sul. Mas, para celebrar ao menos os fatos que gerou, e que me permitiram provar a corrupção em concorrências de obras públicas, mandei-lhe na cadeia um cartão de cumprimentos. Acompanhado de um bolo com as velinhas de 20 anos.’
POLÍTICA & MÍDIA
Catia Seabra
‘Com o desafio de se viabilizar eleitoralmente até o fim do ano, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, monopolizará o tempo destinado a seu partido -o Democratas (ex-PFL)- no Estado, sendo também contemplado com a maior parte das inserções a que a sigla tem direito no cenário nacional.
Segundo o presidente nacional do DEM, Rodrigo Maia (RJ), Kassab ocupará metade do tempo destinado às inserções nacionais. Serão 20 minutos, ao todo, exibidos nos dias 14, 16, 23 e 30 de junho.
Sua participação foi gravada na quinta-feira. A pedido da diretora do programa, Paula Lavigne, uma estreante em marketing político, a av. Paulista foi um dos cenários. ‘A saúde foi o tema principal’, disse Kassab.
O prefeito ocupará também boa parte do programa em bloco, que será veiculado no dia 24. Além dele e dos líderes do DEM, as estrelas do programa serão o prefeito do Rio, Cesar Maia, e o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda. A gestão dos três será usada como modelo do Estado idealizado pelo partido. ‘A idéia é reinventar o Estado’, disse o consultor Antonio Lavareda.
Presidente estadual do partido, Kassab ocupará o tempo da sigla em São Paulo. Serão 20 minutos, diluídos em inserções de 30 segundos de junho a dezembro. O formato de distribuição de tempo faz com que tucanos e democratas duvidem da eficácia do programa para projetar Kassab na capital, que pode ceder o lugar ao ex-governador tucano Geraldo Alckmin, um dos favoritos para a disputa.
Alckmin tem dito que considera difícil resistir à pressão do partido para que venha a se candidatar, mesmo que o DEM insista na candidatura de Kassab. ‘O prefeito só não é o nosso candidato se não quiser’, enfatizou Rodrigo Maia. Foi a convite do deputado que Paula Lavigne aceitou a idéia de dirigir um programa eleitoral. ‘Nossa intenção é usar uma linguagem cinematográfica’, disse Maia.’
FRANÇA
Reflexões sobre a derrota da esquerda na eleição francesa
‘Em artigo anterior, comentei o significado da campanha do candidato vitorioso, Nicolas Sarkozy, e também a do centrista François Bayrou. Neste texto, trato principalmente, embora não só, do percurso da esquerda. Ségolène Royal teve certos méritos, entre os quais, uma abertura às propostas do centro (entre os dois turnos) e um final de campanha descontraído; mas em conjunto decepcionou. Faltou equilíbrio ao aggiornamento da esquerda que ela promoveu (por exemplo, ela propôs enquadramento militar para os menores delinqüentes).
Porém, mais grave do que isso foi a falta de rigor. O que era interesse pela ‘democracia participativa’ acabou descambando, em grande parte, num populismo midiático, mais preocupado com a aparência e o sucesso do que com um discurso de ‘verdade’. O que funcionou mal. Pois se há efetivamente um processo profundo de deterioração da opinião pública, este não eliminou certa exigência de racionalidade ou, pelo menos, de alguma coerência e precisão, na apresentação dos projetos.
(Objetar-se-á que parte da opinião pública acreditou nas mentiras de Sarkozy. Mas estas se fundavam numa ideologia que tem 150 anos e é, a seu modo, ‘bem articulada’ .)
Rigor perdido
Essa deriva viria de dificuldades pessoais da candidata, do seu estilo mais profundo, ou do próprio Partido Socialista? Um pouco de tudo isso. Mesmo se no PS há quem não mereça essa crítica, pode-se dizer que o partido perdeu o pé em termos de uma fundação mais rigorosa das suas posições.
Se a liquidação do que restava das ilusões revolucionárias (incluindo certas hesitações diante dos totalitarismos) representou um progresso muito importante, ela veio junto -infelizmente- com um abandono de todo esforço de reflexão teórica. Um bom exemplo disso foi o qüiproquó entre a esquerda e a direita, a propósito do ‘valor trabalho’. Não sei quem inventou essa bandeira ambígua, incluída no programa da candidata, de resto um bom programa.
O adversário não recusou a bandeira, mas se apropriou dela, acusando ainda por cima a esquerda de ter traído esse ideal com a semana de 35 horas. Ora, seria preciso desmistificar o discurso sarkozista, observando que o candidato jogou com duas significações do termo ‘trabalho’. De fato, ‘trabalho’ se usa no sentido de ‘trabalhadores’, em oposição a ‘capital’ (indicando os capitalistas ou seus representantes).
Mas significa também o tempo ou a duração do trabalho. Ora, se a esquerda sempre defendeu o trabalho no primeiro sentido, ela jamais foi ‘favorável’ a ele no segundo, isto é, nunca pregou a maximização do tempo de trabalho. Sendo assim, a lei das 35 horas não tem nada de ‘traição’. Ora, não só a candidata e seu comando foram incapazes de desmontar esse sofisma sarkozista, mas, fato impressionante: nenhum intelectual foi capaz de fazê-lo.
O discurso de Sarkozy, que se apresenta como novíssimo, é, nos seus fundamentos (ou ausência de fundamentos) o discurso da chamada ‘economia vulgar’ de meados do século 19. Seu mote é mais ou menos o seguinte: ‘Sem dúvida, defendo a riqueza; mas como a riqueza vem do trabalho, eu sou o candidato do trabalho’. O argumento pega porque corresponde ao ar do tempo, além do que, soa como se fosse de esquerda. Mas que haja ao mesmo tempo uma descontinuidade entre riqueza e trabalho ou, dito de outro modo, que, se a riqueza vem do trabalho, ela em geral não vem do trabalho próprio, isso Sarkozy não poderia dizer.
Só que a esquerda também não disse, pelo menos com suficiente clareza, o que -montado o imbróglio -lhe custou caro em termos de hegemonia. Apenas eleito, Sarkozy fez um cruzeiro no iate de um milionário das suas relações. Agora, montou um governo que inclui personalidades de esquerda, o que não deve mudar muito as coisas.
Ségolène 2012
Ségolène prepara desde já sua investidura para as eleições de 2012, contra a vontade dos ‘elefantes’ do PS. Estes foram acusados de jogar perde-ganha durante a campanha, o que, em parte, é verdade. Mas a atitude da candidata em relação a eles foi, também, muito dura.
Antes de saber se o PS tem de ir mais à direita ou mais ao centro, eu diria que ele precisa de mais verdade, isto é, de um discurso rigoroso, estranho ao ‘populismo da mídia’. Este último (como, de outro modo, o ‘totalitarismo’) é um fator negativo determinante, que não elimina a diferença entre esquerda e direita, mas a complica. Há que articular rigor teórico com flexibilidade tática.
O PS deve ir mais à esquerda precisamente no sentido de que se impõe um discurso mais ‘radical’, que não oculte os fundamentos; mas ao mesmo tempo, ele tem de se abrir para o centro, porque, o enfraquecimento da extrema-esquerda exige um leque mais amplo de alianças.
No plano do programa, também seria necessário inovar em várias direções: por exemplo, a questão dos regimes especiais de aposentadoria, ou o da necessidade de ouvir os usuários na deflagração das greves dos transportes, mesmo sendo temas que a direita hiperboliza e explora, são problemas reais a discutir.
No outro extremo, seria importante não esquecer da economia solidária, em particular das cooperativas, assunto sobre o qual, salvo engano, o projeto socialista fez silêncio. A deriva populista midiática de parte do PS, mais a luta implacável entre as diversas alas internas, o imobilismo dogmático da extrema esquerda, o sucesso da aliança do ‘Loft Story’ com o grande capital, que representa o sarkozismo, e cuja vitória teve como base tanto o engano como a perversão dos espíritos, não são augúrios muito favoráveis.
Mas se a vitória da direita foi nítida, ela não foi esmagadora. A esquerda francesa não pode desperdiçar os seus 17 milhões de eleitores.
RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e vive a maior parte do ano na França’
REVISTA REALIDADE
Sociedade malcomportada
‘Se a imprensa é o reflexo da sociedade, um dos melhores espelhos dos agitados anos 60 foi a revista ‘Realidade’, lançada em abril de 1966 pela editora Abril.
Não é por outro motivo que a publicação virou alvo predileto do mundo acadêmico, com a multiplicação do número de teses que, com recortes distintos, procuram destrinchar o fenômeno editorial que aliou, por um breve período, prestígio jornalístico e sucesso comercial.
A mais recente pesquisa desse filão é ‘Leituras da Revista ‘Realidade’, 1966-1968’, de Letícia Nunes de Moraes, 33.
O fato de a autora não ser nascida durante o auge de seu objeto de estudo dá a medida do fascínio que ‘Realidade’ continua exercendo sobre as novas gerações.
O objetivo da tese é avaliar, por meio da análise da seção de cartas e das pesquisas feitas entre leitores, a recepção das polêmicas reportagens.
‘Revolução moral’
A área em que ‘Realidade’ fez diferença foi a de comportamento. O mundo estava mudando nos anos 60, e a revista acompanhava de perto a ‘revolução moral’, como diziam seus jornalistas.
Virgindade antes do casamento, legalização do divórcio, independência da mulher, liberdade sexual, celibato eram alguns dos temas candentes, sempre abordados com viés favorável à opinião considerada moderna.
Na seção de cartas, os leitores mais aplaudiam do que protestavam. A autora não perde de vista que se tratava de um espaço controlado pela Redação e que o número de cartas publicadas pró e contra as reportagens não obedece, necessariamente, à proporção das cartas recebidas.
Ainda assim, é provável que a grande maioria aprovasse o enfoque, já que, nos três anos de sua primeira e mais importante fase, a revista chegou a ter circulação mensal de 500 mil exemplares.
Algumas cartas captavam o tom da revista, que primava pelo bom texto. Uma leitora, ao comentar a ameaça de apreensão por obscenidade do número que tratava de sexo entre jovens, escreveu: ‘Esse dr. Gusmão [o juiz de menores responsável pela censura] não tem muita imaginação. Ou tem muita’.
Mais adiante, uma reportagem sobre preconceito racial foi assim recebida por um leitor ‘branco e universitário’: ‘Não sou racista, mas às vezes não suporto a presença de um branco’.
O único texto reprovado pelos leitores foi o que enfocou a homossexualidade. Em vez de denunciar o preconceito, o que estaria em sintonia com o espírito da revista, o repórter tratou a opção sexual como doença com ‘possibilidade de cura’. Resultado: das 14 cartas editadas, dez desancaram a publicação.
Além das cartas, as pesquisas com leitores também eram usadas, como bem identifica a historiadora, para legitimar as da ‘Realidade’.
O trabalho, porém, peca ao não desqualificar aquelas pesquisas como simples enquetes sem consistência estatística. Se elas indicavam a opinião predominante do público leitor, não traduziam o ponto de vista do brasileiro, como se queria dar a entender.
O saldo daquela primeira fase, de qualquer maneira, é amplamente favorável à revista.
É provável que um dos maiores motivos de seu êxito tenha sido achar a forma adequada -o ‘new journalism’, o jornalismo com técnica literária, então em voga nos EUA- para relatar uma das mais rápidas renovações de costumes da história.
Declínio
Essa fase terminou em dezembro de 1968, com a saída da primeira equipe de jornalistas. Não por coincidência, foi o mês do AI-5, o ato institucional que marcou o início dos anos de maior repressão da ditadura militar.
A partir daí, ‘Realidade’ tentou novos formatos e receitas editoriais, sem nunca mais repetir a mágica inicial. Em 1976, deixou de circular.
Com a trajetória interrompida precocemente, como a tropicália, que lhe foi contemporânea, ‘Realidade’ não envelheceu. Talvez seja também por isso que hoje, quase quatro décadas mais tarde, ainda desperta o interesse dos jovens.
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de ‘A História do Brasil no Século 20’(em cinco volumes, pela Publifolha).
LEITURAS DA REVISTA ‘REALIDADE’, 1966-1968
Autora: Letícia Nunes de Moraes
Editora: Alameda
(tel. 0/xx/11/3862-0850)
Quanto: R$ 34 (256 págs.)’
TELEVISÃO
Lula tem razão, é mesmo difícil achar bons fimes na TV paga
‘Na semana passada, o presidente Lula esculhambou os canais de TV paga ao contar que acordou numa madrugada dessas com insônia, procurou um filme para ver e nada achou.
Até o mais ferrenho oposicionista terá de concordar com o presidente nesse item. Caso acorde, digamos, na próxima terça por volta das 3h da manhã, o que terá Lula à disposição? Comecemos pelos Telecines. ‘Karatê Dog – O Cão Marcial’, no Premium, dispensa comentários. ‘Torturados’, no Emotion, tem até bom elenco. Mas, entre a insônia e a história da jornalista que luta para superar o trauma da tortura sofrida na América Central, é melhor ficar com a insônia.
‘O Tesouro de Manitou’, que passa no Pipoca, este sim poderia ter alguma utilidade para o presidente, já que se trata de um faroeste alemão: ajudaria a puxar assunto na próxima conversa com o germânico Bento 16, quando quiser driblar o tema educação religiosa.
Alguma esperança no Cult? Bem, lá passa um velho faroeste de William Wyler, sobre o juiz Roy Bean. Ruim para uma insônia: lembraria as conversações com o presidente Bush.
‘A Louca História de Robin Hood’, na TNT, pode ser boa pedida na hora da insônia: é leve, inconsequente e, para falar a verdade, meio bobo -tudo que ajuda a embalar o sono. E, se procurar com cuidado, é possível que encontre a comédia ‘Um Lugar Chamado Notting Hill’ passando em algum lugar. Ela já fez a ronda de mais ou menos todos os canais pagos, especializados ou não. É difícil que alguém não o tenha visto umas dez vezes.
A experiência pode se repetir em qualquer outro dia. A tendência é que os resultados sejam semelhantes, isso, entre outras coisas, porque o insone é um ser exigente. Caso contrário estaria dormindo. Vamos imaginar que a insônia aconteça na madrugada de quarta para quinta, quando o canal TCM exibe ‘As Aventuras de Robin Hood’, com Errol Flynn. O filme tem ação, emoção, romance, heroísmo -enfim, é o melhor possível. Vamos supor que o presidente o sintonizasse distraidamente, como fazem os insones. Em dois minutos ele estaria ligadíssimo, não dormiria nunca. E no dia seguinte chegaria de péssimo humor ao Planalto para os despachos.
A quantidade de filmes suportáveis por qualquer vivente (isto é, conforme seu próprio gosto, não o de especialistas) está entre 10% e 20% da produção. A média da TV a cabo (e as listas de recomendáveis dos críticos não o desmentem) no Brasil não foge disso.
O que não significa que não seja possível melhorar muito em inúmeras frentes. A maioria esmagadora dos filmes oferecidos entre hoje e o próximo sábado são norte-americanos. É verdade que o público está acostumado com eles e tem dificuldade para se habituar a outras cinematografias. Mas seria importante, ao menos para quem gosta de cinema, que um canal passasse filmes que são exibidos rapidamente em cinema e depois desaparecem.
Não seria fácil. Hoje em dia, os canais negociam a maior parte de seus produtos com estúdios, que lhes mandam uma cota de filmes de mão beijada. Para negociar filmes europeus ou asiáticos seria necessário um bom programador que se dispusesse a fazer o porta-a-porta e comprar direitos de exibição. Um bom programador batalharia com os produtores para que as cópias -pelo menos as dos filmes de primeiro time- chegassem a nós em seu formato original. Esse programador não teria vergonha de trazer filmes mudos, nem japoneses. Traria os filmes também em versão original, diferentemente do TCM, com ótimo acervo, mas só de dublados.
Com isso, a TV pública promoveria, é verdade, uma revolução no setor de cinema na TV e se tornaria de fato decisiva na nossa vida cultural. Agora, é quase certo que, para conseguir isso, alguém vai perder muitas horas de sono. E não há de ser o presidente.’
Lucas Neves
Aos 13 na TV, ‘ER’ lança 7º ano em DVD
‘Em 1999, George Clooney pôs de lado o desfibrilador no pronto-socorro mais famoso da TV norte-americana para se concentrar no cinema. Mais tarde, Anthony Edwards (dr. Greene) e Noah Wyle (dr. Carter) também penduraram os jalecos do County General- mas com a desculpa de lhes faltar tempo para a família. Agora, é a vez do croata Goran Visnjic, 34, atual protagonista da série ‘ER’ (tida como divisora de águas ao estrear, em 94, por retratar com diálogos e mise-en-scène hiperrealistas o dia-a-dia de uma emergência hospitalar), encerrar seu turno.
Em entrevista à Folha em Buenos Aires, o ator contou que a despedida de seu personagem, Luka Kovac, é o clímax da 13ª temporada, que terminou na última quinta nos EUA (em 7/6 no Brasil). Para os fãs de longa data, outro acontecimento é a chegada do DVD do 7º ano (2000/2001) do programa (R$ 129) -quando ainda aparecia no topo do ranking de audiência nos EUA- às lojas.
Um ano antes, ao se juntar à equipe, Kovac era a imagem da amargura: havia perdido mulher e filhos na guerra deflagrada pela desintegração da Iugoslávia. A adaptação ao ‘american way of life’ incluiu uma fase promíscua, flertes malsucedidos com colegas e depressão, até acertar os ponteiros com a enfermeira Abby, pedir-lhe a mão e ter um filho com ela.
A trajetória de Visnjic não é tão acidentada quanto a do personagem, mas a passagem por campos de guerra é um ponto de interseção. Depois do serviço obrigatório, o ator se alistou voluntariamente no Exército quando começaram os conflitos entre sérvios e croatas. O tema ainda revolve feridas.
‘Não falemos disso. Faz tempo. O importante é que a Croácia se reconstruiu e virou destino de férias na Europa’, escapa.
A aversão ao assunto soa curiosa para alguém que se projetou internacionalmente com ‘Bem-Vindo a Sarajevo’ (97), em que o inglês Michael Winterbottom registra o trabalho de jornalistas europeus na Guerra da Bósnia. A exibição do filme em Cannes serviu de passaporte do ator -que fez fama com tipos de Shakespeare e Molière- para Hollywood, onde teve de se haver com a língua e o imaginário ianque sobre o Leste Europeu.
‘No início, acordava às 5h para ter aulas de pronúncia antes de gravar. Além disso, tive -e ainda tenho- que lutar contra o estereótipo do vilão.’ Por isso, ele pode perder um papel que poucos deixariam passar; sites indicam que estaria cotado para viver o antagonista de 007 no 22º filme da franquia. Ele nega. O jornalista LUCAS NEVES viajou a convite da Warner’
Denyse Godoy
MTV americana testa candidatos a Menudo
‘Sucesso retumbante na década de 80, o Menudo agora está sendo reinventado. Por meio de um concurso combinado com reality show, a MTV Tr3s -canal musical que mistura a cultura latina e a americana- e a gravadora Epic vão selecionar os cinco novos integrantes da banda.
Entre 50 e 60 garotos de 14 a 20 anos se apresentaram para participar de cada um dos quatro testes iniciais realizados. Diante dos jurados, como o ex-Backstreet Boys Howie Dorough e o cantor e compositor Don Omar, eles tiveram que cantar, à capela, uma música em espanhol e outra em inglês.
Os semifinalistas, escolhidos em cada uma dessas audições, são revelados em um programa especial da MTV Tr3s que passa aos sábados nos EUA. De Nova York, saíram 11; de Los Angeles, apenas um; de Dallas, foram cinco; e, de Miami, seis.
Até o fechamento desta edição, apenas os semifinalistas de Miami haviam sido anunciados. Antony Del Rio, 15, é um deles. Ele mora com a família na cidade e nunca tinha ouvido falar da banda antes do concurso -a mãe, cubana, e o pai, colombiano, lhe contaram a história. ‘Foi assim que Ricky Martin começou, então, para mim, é a oportunidade de abrir um caminho para chegar onde ele está’, diz Del Rio. O aspirante a menudo começou a atuar em filmes em comerciais para a televisão aos quatro anos de idade e hoje não se imagina fazendo outra coisa. ‘Sempre amei entreter e ser o centro das atenções’, conta. ‘Tive aulas de canto e dança para me tornar um artista completo.’
Além do forte apelo que a música latina tem no mercado americano -depois de Ricky Martin, pode-se citar Jennifer Lopez e Shakira como exemplos de cantores que se deram bem nesse nicho-, os organizadores apostam na marca Menudo para garantir o êxito do empreendimento.
‘Fizemos várias pesquisas e percebemos que é um nome que ainda tem apelo muito grande para o público. Não exatamente entre os jovens que fazem parte da nossa audiência, afinal, muitos nem eram nascidos quando a banda chegou ao auge, mas para os seus pais e irmãos mais velhos. Eles acabam influenciando para que os mais novos assistam, prestem atenção e acabem gostando’, explica Lily Neumeyer, vice-presidente de programação e produção da MTV Tr3s. Na sua opinião, existe espaço, sim, para mais uma ‘boy band’. ‘No mundo musical, existem ciclos, e creio que é uma boa hora para um lançamento como este.’
Após todos os semifinalistas virem a público, no começo de junho, eles passarão por mais uma peneira com os juízes, e dali sairão os sete que vão protagonizar um ‘reality show’. Morando juntos, os concorrentes serão testados em sua habilidade para trabalhar em grupo. O novo Menudo começa a gravar seu primeiro álbum em setembro.
Para os fãs antigos, um recado: não se deve esperar da banda que vai surgir nada parecido com o pop chiclete que o Menudo mostrava anos atrás. ‘Vai ser um som diferente’, comenta Brandon Creed, diretor da Epic. ‘Vamos pegar elementos da música popular, incluindo hip hop e rythm’n’blues, e fundir com as influências latinas para chegar ao mais moderno disco pop.’ Assim, a gravadora espera que os meninos sigam ainda além do que a original conquistou.’
Thiago Ney
Primeira turnê no Brasil foi conturbada
‘A primeira turnê do Menudo no Brasil foi não apenas conturbada mas ocorreu num dos momentos mais conturbados da história recente do país.
Ricky, Robby Rosa, Rey, Roy e Charlie subiram ao palco do Morumbi às 20h de 15 de março de 1985, para histeria de 80 mil fãs. Na madrugada daquele dia, Tancredo Neves, primeiro presidente eleito do Brasil após duas décadas de ditadura militar, era internado e passava por uma cirurgia. Pela manhã, seu vice, José Sarney, assumia interinamente a Presidência da República.
Na noite seguinte, o Menudo voltou ao estádio e, desta vez, tocou ‘Não se Reprima’ para 150 mil pessoas.
A banda já havia tocado no Rio, em show em que duas mulheres morreram esmagadas, e em Minas.
Na segunda, 18 de março de 1985, página de esportes da Folha trazia a reportagem: ‘Lixo do Menudo adia clássico Corinthians x Palmeiras’. Na manchete do jornal: ‘Boletim diz que Tancredo está bem’.’
Bia Abramo
Novela das seis precisa mostrar mágica
‘CURIOSA A feição que vem tomando a noção de época, em termos de telenovela e do horário das seis da tarde. Novela de época, em vez de se filiar a algum período histórico específico e explorar tramas que façam sentido dentro de alguma característica social ou cultural vinculada a ele, passou a ser a novela com figurinos e cenários com um ar vintage. E só.
‘Eterna Magia’ inscreve-se nessa linha. Temos ali uma cidade fictícia encravada em paisagens do sul de Minas para onde teria vindo uma leva de imigrantes irlandeses, descendentes de celtas. A origem justifica o lado esotérico da novela, que pretende explorar uma parte da mitologia celta e, sobretudo, as bruxas conhecidas como wicca.
Aqui, esses irlandeses teriam se tornado exploradores de minas e vivido num relativo isolamento até a década de 40, quando se passa a história. Então, apesar de falar muito bem o português, os descendentes dos imigrantes cultivam tradições folclóricas, além de poderes sobrenaturais.
Muito bem, ficção é ficção e, se admitimos que teledramaturgia é uma modalidade ficcional, a telenovela tem, portanto, liberdade de inventar e criar. No entanto, se a invenção se atrapalha, de forma às vezes inconsciente, ou afronta, de forma muito deliberada, a capacidade de crer do leitor/espectador, ela corre muitos riscos.
O principal deles é não ter fôlego para sustentar o universo que pretende criar. É o que parece que vai acontecer com ‘Eterna Magia’, a não ser que a bruxaria pegue fogo.
Caso contrário, desses anos 40 de mentira e essa improbabilíssima comunidade irlandesa, que faz um Halloween ao gosto americano (e das escolas de inglês brasileiras) e em que boa parte trabalha em mi- nas que parecem saídas de uma versão Disney das minas de carvão da Revolução Industrial, não sai lá muito caldo.
A feitiçaria, no entanto, ainda não deu muito o ar da graça. Claro, já apareceu várias vezes um Paulo Coelho embaçado, com ar de mistério e aquela solenidade de quem lida com o oculto, como o Grande Mago, mas, por enquanto, nada de fazer ventar.
Na verdade, é a mocinha, a pobre Nina, cujo destino será vai sofrer justamente por causa da irmã poderosa, linda e predileta do pai, quem será a principal responsável pela evocação das forças sobrenaturais (do bem).
É improvável que a jovem Maria Flor tenha estofo para enfrentar uma Malu Mader meio vilã, mas quem sabe o que pode acontecer com a ajuda da magia…’
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Agência Carta Maior