Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folha de S. Paulo

VAZAMENTOS & ENTUPIMENTOS
Fernando de Barros e Silva

Grampos, algemas e elites

‘SÃO PAULO – ‘Chegamos a um ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar no telefone com a presunção de que alguém está escutando’. Tarso Genro tem companhia, além do colega José Múcio, que comparou seu celular a uma ‘rádio comunitária’. Alçado ao Ministério da Justiça por FHC em 1997, o então senador goiano Iris Rezende também dizia que ‘o crime, muitas vezes, é inevitável’.

Rezende era um tipo de capitão-do-mato, testemunha involuntária da cegueira da Justiça numa época em que o tucanato todo-poderoso reservava aquela pasta para acertos com a fisiologia e o atraso.

Evoluímos. No lugar do capataz, temos um falastrão do direito a comandar a temida PF. Conceda-se ao ministro Genro, como atenuante, que fazia uma ‘boutade’ quando disse à platéia que, sim, estamos todos virtualmente grampeados e a vida é assim mesmo, ora, ora.

Um consumidor (ou cidadão?) menos afeito a ironias poderá não gostar da piada e exigir indenização (do governo?, das telefônicas?).

Mas Genro devia falar muito sério quando disse que as elites dão ao país uma inestimável contribuição ao apontar ‘lacunas legais’ e ‘abusos’ da polícia, o que só fazem agora porque a PF chegou até seu quintal.

O ministro brinca de luta de classes enquanto o governo a que serve as acomoda. Lula trata suas elites a pão-de-ló. A faxina da PF parece, de resto, seletiva. Quem se lembra dos ‘aloprados’? No final, tanto som e tanta fúria talvez tornem o país mais espetacular do que justo.

Genro, porém, nos oferece um suflê requentado do marxismo de almanaque mastigado pela retórica do bacharel. Quer fazer da universalização das algemas uma metáfora dos novos tempos republicanos. Talvez acredite pavimentar seu caminho para 2010. Mas convém combinar com o mundo real. Os corpos que vemos diariamente na TV sendo arrastados até os camburões mostram que algema, para bandido pobre, ainda é privilégio de poucos, só uma pulseirinha de luxo.’

 

 

Janio de Freitas

Conselhos ao telefone

‘AINDA QUE úteis para muita gente, os conselhos com que dois ministros de primeiro nível encerraram a semana são, também, duas autorizadas denúncias contra o governo Lula e contra vários governos estaduais.

O ministro José Múcio Monteiro, das Relações Institucionais, está tão convencido de que seu celular ‘é uma rádio comunitária’, a ponto de que desistiu de pedir ‘varreduras’ para eliminar escutas clandestinas.

Aconselha-nos a evitar, ao telefone, ‘palavras com dupla interpretação’.

Aos que têm motivos de temor, o conselho pode estender-se às conversas pessoais, porque os minigravadores estão em moda. E ainda há a vulnerabilidade dos e-mails.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, antecipou-se por horas à gentileza cívica do colega e recomendou ‘acostumar-nos a falar ao telefone com a presunção de que alguém está escutando’. Alguém, é claro que o ministro queria dizer, e não disse para não faltar ao seu tropeção habitual, alguém que não o interlocutor reconhecido.

Na atual CPI das Escutas Telefônicas, que constatou 407 mil escutas autorizadas pelo Judiciário só em 2007, apareceu a estimativa de que, para cada uma das autorizadas, há três clandestinas. Apesar de inconfiável como número, à maneira dos fictícios e interessados cálculos dos bilhões faturados pelo contrabando e a pirataria, a estimativa serve para lembrar a amplitude da penetração do crime atestada pelos dois ministros.

Esse atestado só foi possível, porém, por existir um anterior para autenticá-lo. É o de que o crime das escutas não depende só dos seus autores: decorre, antes de tudo o mais, da falta de ação governamental para reprimi-lo. Daí ao consentimento tácito, com efeito mais extenso e intenso a cada ano, não há diferença essencial.

Estão presos agora em São Paulo um delegado estadual e uma dupla que dirigiu para gravações ilegais o seu ‘empreendedorismo paulista’, com êxito confirmado sob a forma de uma Ferrari e de um Mercedes para transitar entre o lugar de um ‘grampo’ e outro. O mérito do trio não está, no entanto, no seu sucesso: está em ser, com a prisão forçada por um erro talvez banal, uma exceção notável. Para operar as gravações criminosas já estimadas na casa dos milhões por ano, há forçosamente um contingente enorme de criminosos que cobram e ganham um dinheirão no crime, em anos e anos que passam sem que se saiba de ação policial contra um deles, sequer.

Não é, reconheço, um modo educado de retribuir o conselho proveitoso do ministro Tarso Genro, mas é inevitável questionar a razão que o faz sugerir aos cidadãos a mudança de seus costumes, e não os da Polícia Federal, que está sob suas ordens e responsabilidades. Capaz de escarafunchar as mais marotas transações e contabilidades, caçar colarinhos brancos a granel, e cumprir direitinho as dicas de agentes americanos para apreender cocaína ao atacado, como e por que a Polícia Federal é incapaz de detetar autores de gravações telefônicas criminosas? Curiosidade que se aplica, também, às polícias estaduais de Brasília, do Sudeste, do Sul, da Bahia, entre outras.

A constatação e o conselho do ministro Tarso Genro são dois tiros no próprio peito. O governo federal é o primeiro e maior responsável pela banalização impune das escutas criminosas. E, no governo, o Ministério da Justiça.

PS: Por favor, não cite nada deste artigo a ninguém e, se o fizer, não esqueça: faça-o bem distante do telefone.’

 

 

MÍDIA & POLÍTICA
Renata Lo Prete

Kassab usa prefeitura para tentar influir no Datafolha

‘E-mail obtido pela Folha mostra que Gilberto Kassab (DEM) acionou pessoalmente a máquina da prefeitura na tentativa de influir no campo do mais recente Datafolha sobre a sucessão paulistana, no qual aparece em terceiro lugar, com 11%, atrás de Marta Suplicy (PT, 36%) e Geraldo Alckmin (PSDB, 32%).

Os resultados foram divulgados na noite de quinta-feira passada, 24 de julho. Às 19h02 de terça, 23, ao fim do primeiro dos dois dias de campo, Kassab enviou mensagem a 26 subprefeitos pedindo que, no dia seguinte, realizassem ‘ação’ uma vez ‘identificado o ponto’ onde os entrevistadores do instituto abordariam eleitores.

O prefeito confirma ter mandado o e-mail, mas nega que o objetivo tenha sido melhorar seu desempenho na pesquisa -na qual recuou dois pontos.

Segundo ele, tratou-se de ‘ação preventiva’ para ‘evitar maldades’. Seus auxiliares teriam conhecimento de que ‘pessoas ligadas ao PT’ costumam provocar tumultos de trânsito e outros em locais supostamente próximos aos visitados pelos entrevistadores de modo a prejudicar a percepção do público a respeito da administração.

‘É impossível que eventos do gênero descrito pelo prefeito influam sobre os resultados do Datafolha, seja pela forma como são feitas as entrevistas, seja pelos posteriores procedimentos de controle’, afirma Alessandro Janoni, diretor de pesquisa do instituto (leia na pág. A8 texto explicativo sobre a metodologia utilizada). ‘Se ele suspeitava de ação indevida por parte dos adversários, deveria ter recorrido à Justiça Eleitoral, em vez de adotar as mesmas práticas.’

No e-mail, Kassab orienta os subordinados a intervir ‘principalmente no período da manhã’, que concentraria maior número de entrevistas, ‘mas também no período da tarde’.

O teor da mensagem indica que o prefeito havia dado a mesma determinação antes do primeiro dia do campo. A ‘ação’, escreveu, deveria ser feita ‘assim como hoje, onde alguns [pontos de entrevistas] foram identificados’. ‘Seria ótimo se acontecesse amanhã.’

Em obediência à legislação eleitoral, as datas de realização do campo são registradas no TRE, que as torna públicas.

A pesquisa que o prefeito tentou influenciar por meio de uso da máquina registrou recuo de dois pontos em sua intenção de voto na comparação com o Datafolha anterior, divulgado em 6 de julho.

Também dentro da margem de erro do levantamento, oscilou um ponto para cima sua taxa de rejeição, hoje em 31%. Após queda brusca no início deste mês, a aprovação do governo Kassab moveu-se dois pontos percentuais para cima (35% dos entrevistados consideram a gestão ótima ou boa). A nota média dada à administração também se mostrou estável: foi de 5,3 para 5,2. Alçado do posto de vice ao de prefeito há dois anos e cinco meses, quando José Serra (PSDB) saiu para disputar o Palácio dos Bandeirantes, Kassab se lançou à reeleição com o apoio não-oficial mas evidente do governador, que trabalhou o quanto pôde pela manutenção da aliança demo-tucana em São Paulo. Alckmin, porém, desde sempre mais bem posto nas pesquisas, terminou por impor sua candidatura.

Embora aliados repitam que somente a campanha de televisão, a partir de meados de agosto, poderá alavancar Kassab -dono de um tempo de tela muito superior ao dos adversários por força da coligação com o PMDB-, é enorme a pressão para que a candidatura produza alguma reação imediata, que ao menos arranhe a polarização Marta-Alckmin. A estagnação estimula a debandada, para o lado de Alckmin, de tucanos até recentemente computados como kassabistas. O PSDB controla 21 das 31 subprefeituras e 15 das 22 secretarias municipais.

Colaborou JOSÉ ALBERTO BOMBIG, da Reportagem Local’

 

 

***

Agi de forma franca e transparente, diz prefeito

‘Gilberto Kassab afirma que ‘de maneira nenhuma’ agiu com o propósito de inflar seu desempenho na pesquisa Datafolha. ‘Se eu quisesse fazer isso’, argumenta o prefeito, ‘não teria me portado de maneira tão franca e transparente’.

Ele conta que já havia dado instrução semelhante aos subprefeitos antes do Datafolha anterior, ‘mas por telefone, de maneira menos organizada’. E avisa que daqui para a frente pretende repetir o procedimento com todas as pesquisas registradas na Justiça Eleitoral.

‘Ninguém sério acredita que pode influir nos resultados do Datafolha’, diz Kassab. ‘Mas o inverso é verdade: pode-se evitar interferência indevida. Os funcionários da prefeitura estão orientados a provocar o flagrante policial se isso ocorrer.’

Coordenador da campanha de Marta Suplicy, o deputado federal Carlos Zaratini (PT-SP) diz considerar ‘lamentável a utilização da máquina pública para influenciar as eleições’. Sobre a acusação de que simpatizantes do partido promoveriam distúrbios sob medida para prejudicar Kassab nas pesquisas, ele diz que ‘é um argumento furado, pois o PT não dispõe de informação prévia sobre onde é feito o campo’.

Subprefeitos ouvidos ontem confirmam ter sido ‘alertados’ por Kassab sobre a realização da pesquisa e as supostas ‘ações do PT’, mas dizem nada ter feito a esse respeito.

‘Eu não recebi o e-mail porque o meu [endereço eletrônico] estava desativado, mas a gente foi orientado para não deixar o PT tumultuar’, afirmou Beto Mendes, subprefeito de Cidade Ademar.

Antes de Kassab reconhecer a autoria da mensagem aos subprefeitos, Eduardo Odlak, da Moóca, havia dito que não se recordava se recebera ou não o e-mail. Em seguida, começou a rir e não parou mais. ‘Eu só abri os e-mails da prefeitura. Isso deve estar no pessoal, é isso?’. Mais tarde, informado do que Kassab havia dito, reconheceu que sabia da ‘orientação’.

‘Eu não me lembro se recebi e-mail, mas todo mundo estava comentando, talvez eu já tivesse ciência disso. Mas não é possível fazer nada para interferir em pesquisas’, diz Luiza Nagib Eluf, da Lapa.

Clóvis Luiz Chaves, de São Mateus, também confirmou as ‘orientações’, mas disse que tudo ‘transcorreu normalmente’. ‘Caso contrário, eu chamaria a polícia’. (RLP E JAB)’

 

 

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Procedimentos do Datafolha impedem influência em dados

‘Os pontos de fluxo nos quais o Datafolha aplica seus questionários mudam de um levantamento para o outro e somente são registrados no TRE depois de realizado o campo e divulgados os resultados, explica o diretor de pesquisa do instituto, Alessandro Janoni. Chegam ao juiz em envelope lacrado. ‘Não existe hipótese de as campanhas conhecerem esse mapa de antemão’, afirma.

Além disso, segue o diretor, qualquer movimentação minimamente estranha no ponto de fluxo ou em local próximo é reportada pelos pesquisadores tanto por telefone como nos instrumentos de campo. Quando isso acontece, eles mudam de ponto e refazem o material com outros entrevistados.

Janoni estranha a preocupação, manifestada pelo prefeito, de que adversários estejam obtendo sucesso em prejudicar sua avaliação. ‘Como’, pergunta, ‘se ele tem maior aprovação do que intenção de voto?’.

‘Considero a atitude do prefeito totalmente questionável no plano da ética na esfera pública’, afirma o diretor.

De acordo com ele, não foram detectadas perturbações no campo de nenhuma pesquisas feita pelo Datafolha na atual temporada eleitoral.

O diretor conta que a perturbação mais registrada em campanhas passadas, ainda assim em escala residual, é a do militante partidário que tenta ser entrevistado, oferta sempre descartada pelo aplicador do questionário. Na metodologia utilizada pelo Datafolha, é proibido entrevistar o eleitor que se oferece. A abordagem é necessariamente aleatória.

Outro expediente conhecido das campanhas, segundo Janoni, é o da realização de propaganda na vizinhança do ponto de fluxo. Mas, assim como o ‘truque’ do entrevistador oferecido, encontra barreira nos procedimentos de segurança.

No levantamento por ‘pontos de fluxo’, o pesquisador vai a campo com uma grade de entrevistas que cobre cotas de sexo e idade, de acordo com o perfil do eleitorado. No entender do Datafolha, a principal vantagem desse método sobre a abordagem domiciliar é a facilidade de acesso a todos os segmentos de eleitores, evitando viés nos resultados.

‘O histórico de acertos do Datafolha em seus 25 anos de existência é, por si só, prova de que a metodologia é adequada e tecnicamente rigorosa’, afirma Janoni.’

 

 

Folha de S. Paulo

Jornalistas são ameaçados por traficantes em favela

‘Repórteres e fotógrafos que acompanhavam ontem pela manhã a campanha do candidato a prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (PRB) receberam ameaças de traficantes armados na Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte. A abordagem ocorreu depois que um grupo, formado por repórteres e fotógrafos dos jornais ‘O Globo’, ‘Jornal do Brasil’ e ‘O Dia’, distanciou-se do senador.

Os profissionais fotografavam o candidato cumprimentando moradores em uma praça da favela quando três homens cobriram os rostos e começaram a dizer que não era para fotografar. O senador os ignorou e seguiu a caminhada.

Um dos homens aproximou-se dos jornalistas e mandou que eles apagassem as imagens feitas no local. Um assessor do candidato que estava com o grupo tentou argumentar que o objetivo não era denunciar ninguém, mas logo chegou uma moto com outros dois homens, um deles armado com um fuzil.

Ameaçados, os jornalistas apagaram as imagens. Após serem liberados, voltaram a se unir a Crivella, que, sem perceber a abordagem, continuara a caminhada. Ao ser informado do ocorrido, o candidato encerrou a caminhada. A pedido dos jornalistas, ele aguardou a chegada dos carros da imprensa antes de deixar a favela.

‘Eu fui caminhando e conversando com as pessoas, quando o repórter veio me dizer que teve de esvaziar a máquina [fotográfica]. Eu não percebi, mas achei revoltante. Ofende a nossa dignidade’, disse. Segundo Crivella, é necessário ‘pedir autorização’ para ‘entrar em determinados locais’ da cidade.

O senador relatou ainda o susto que passou há cerca de oito meses, quando, numa visita à mesma Vila Cruzeiro, um homem na garupa de uma moto veio em sua direção com um fuzil na mão. ‘Ele vinha de longe e sempre na minha direção. Graças a Deus, uns 20 metros antes, tomou outro rumo e desapareceu’, afirmou.

A Vila Cruzeiro faz parte do Complexo da Penha -endereço de 130 mil pessoas de dez comunidades-, que faz divisa com o Complexo do Alemão. Neste ano, já houve mais de 70 mortes em confrontos com a polícia na região.

Como mostrou reportagem de ontem da Folha, candidatos a prefeito do Rio têm de ignorar traficantes armados para fazer campanha. Crivella, anteontem, já havia passado, nas favelas do Amarelinho e de Acari, por homens com fuzis e pistolas. Homens armados acompanharam à distância o percurso do senador.

A ex-deputada Jandira Feghali (PC do B) também passou entre homens armados com fuzis quando esteve em campanha, há uma semana, no morro da Mangueira, zona norte.

Em nota, a Secretaria de Segurança disse considerar ‘uma afronta ao Estado de direito e à sociedade as ameaças que bandidos fizeram a jornalistas na Vila Cruzeiro.’ Também por meio de nota, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, disse que ‘o direito de ir e vir de quaisquer candidatos e da imprensa é sagrado’ e que ‘fatos como esse -gravíssimo- tornam evidente a necessidade de combate sem tréguas à criminalidade.’ Para Cabral, sempre que ‘o livre jornalismo é impedido de atuar, é sinal de um Estado de exceção’.’

 

 

UBALDO PREMIADO
Folha de S. Paulo

João Ubaldo Ribeiro vence o Prêmio Camões

‘João Ubaldo Ribeiro, 67, autor de ‘Sargento Getúlio’ e ‘Viva o Povo Brasileiro’, entre outros livros, conquistou ontem o Prêmio Camões, o principal da literatura em língua portuguesa, criado em 1988 pelos governos do Brasil e de Portugal.

Ele é o oitavo brasileiro a receber a distinção, já concedida a João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, Antonio Candido, Autran Dourado e Lygia Fagundes Telles.

O escritor receberá 100 mil. ‘É sempre uma coisa consagradora, embora eu não esteja mais tão seduzido pela glória’, afirmou ele.’

 

 

CRÍTICA LITERÁRIA
Luiz Costa Lima

O grande formador

‘Pedem-me que diga em poucas linhas o que me parece mais significativo na obra de Antonio Candido.

Depois de separar seus livros e relê-los por mínimas horas, minha primeira resposta praticamente se opunha à tarefa que havia aceito: o leitor de fato interessado há de lê-lo por inteiro. Só quem assim fizer terá segurança em compreender como seu perfil intelectual foi se constituindo.

Deparo-me, contudo, com a reiteração de um fato curioso: ao ser lida ou ouvida, a palavra tem a propriedade de nos fazer nela entender o que antes não se sabia. Assim, mal escrevo o que se leu, me digo: por que eu mesmo não procuro formular como vejo que se formou o perfil de Antonio Candido?

Releio então com cuidado ‘Brigada Ligeira’ (1945) e procuro selecionar passagem posterior, entre os quais possa estabelecer um curso.

Dos pequenos artigos de ‘Brigada Ligeira’, concentro-me em passagens sobre os romances de Jorge Amado [1912-2001] e Oswald de Andrade [1890-1954].

O então jovem crítico elogiava no escritor baiano ter abandonado a visão ‘lírica e de certo modo pitoresca do homem do campo’, então vigente, em favor das ‘perspectivas de conflito’ decorrentes de nossa extrema desigualdade social.

Diferenciar

Dentro dessa mudança de óptica, destaca em Jorge Amado seu ‘apelo algo fácil para a sentimentalidade, o patético de segunda ordem’. Sem que se restrinja a criticá-lo, acentua ainda sua falta de construção, sua capacidade ‘fraca e sumária’ de análise.

Ou seja, em vez de reduzir o que e o como à mesma coisa, importa ao crítico diferenciar entre a natureza do argumento que o romancista escolhia e a maneira de constituí-lo em objeto literário.

A mesma distinção reaparecerá a propósito de Oswald.

Mas seu rendimento não é idêntico. Em contraste com a primeira fase, pós-parnasiana e recendendo a literatura, seus romances experimentais são vistos como um degrau acima, ainda que situados em um degrau inferior àquele em que estaria ‘A Revolução Melancólica’, na abertura da série do ‘Marco Zero’, isto é, do Oswald do romance social.

Neste, portanto, ultrapassadas as duas primeiras fases, Oswald se lançava numa ‘perspectiva sintética de crítica social construtiva’. Ou seja, ao contrário do que sucedia na apreciação de Amado, a primeira variável -o destaque da matéria social- sufocava e deitava por terra a segunda -a exigência de o objeto atender à qualificação literária.

Destaques

Aprendiz de um ofício em um país em que o iniciante há de ser o mestre de si mesmo, Candido ficava aquém de sua própria exigência.

Contraste-se esse resultado com a abertura do ‘Prefácio a ‘O Discurso e a Cidade’ (1993): (Tento analisar) ‘o processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que seja estudada em si mesma, como algo autônomo’.

Seria dentro desse percurso que localizaria o que de mais significativo tem sido feito pelo homenageado.

Destaco, então, dois tipos de textos: aqueles em que ressalta a própria análise sociológica da literatura e aqueles em que o objeto privilegiado é um texto específico.

No primeiro caso, são exemplares ‘O Escritor e o Público’, hoje em ‘Literatura e Sociedade’, e ‘Literatura e Subdesenvolvimento’, presente em ‘A Educação pela Noite’. Não me furto a destacar duas pequenas passagens do primeiro.

Embora Candido esteja tratando da literatura brasileira do 19, os motivos centrais que aborda continuam entre nós presentes, conquanto as ‘palavras de ordem ou incentivo’ esperadas hoje antes derivem das colunas televisivas do que propriamente dos escritores: ‘Esta literatura militante chegou ao grande público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e o grande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de ordem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem nação que surgia’.

Marcos interpretativos

O segundo trecho exigiria outra reflexão: ‘A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som de sua voz brotar a cada passo por entre as linhas’.

A permanência dessa ‘oralidade’ se dá menos pelo tom enfático da palavra de escritores-cronistas do que pela ausência de reflexão que continuamos a cultivar.

Já o segundo tipo que saliento concerne a obras especificamente literárias. Aí ressaltaria os estudos primorosos sobre ‘Grande Sertão’, de Guimarães Rosa -’O Homem dos Avessos’ (originalmente publicado em 1957) e a ‘Dialética da Malandragem’, sobre as ‘Memórias de um Sargento de Milícias’, de Manuel Antônio de Almeida, de 1970 [incluído em ‘O Discurso e a Cidade’].

O leitor menos ligado à especialidade literária poderá supor que, dado o prestígio de Candido, os analistas vindos depois dele evitariam os deslizes que ele soubera apontar. Mas não é bem assim.

É verdade que a diferenciação entre os planos de abordagem historiográfico e literário não é algo corriqueiro. Mas não deixa de ser espantoso que, sobretudo em relação a ‘Grande Sertão: Veredas’, a diferenciação que Candido tão bem soube estabelecer, mal o romance esteve lançado, é ‘esquecida’ em favor de uma historicidade simplesmente de pasmar. O pequeno espaço de que disponho não me permite dizer mais.

Lamento não ter ainda umas poucas linhas para examinar o que diz acerca dos fragmentos sobre a literatura colonial que Sérgio Buarque de Holanda [1902-82] não terminou.

Outra história

O que Candido declara sobre a reflexão do amigo -que, a propósito de um Cláudio Manuel, fundindo os veios barroco e neoclássico, opunha uma ‘visão longitudinal’ da história da literatura, à transversal, ‘quase obrigatória’- seria um argumento estimulante para o debate em torno da concepção de história da literatura que domina na obra mais discutida de Candido, ‘Formação da Literatura Brasileira’ (1959).

Na impossibilidade de fazê-lo, apenas acentuo que o estímulo a uma visão longitudinal da história da literatura não só serviria para o debate fecundo da ‘Formação’ como de obstáculo para a separação rígida da história em períodos, que a assemelha a uma linha que o tempo vai fazendo com que mude unanimemente de cor e feição.

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção ‘Autores’, do Mais!.’

 

 

CRÔNICA
Carlos Heitor Cony

De autores e frases

‘RIO DE JANEIRO – Uma frase atribuída a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do regime nazista, foi repetida por Celso Amorim numa reunião internacional e provocou constrangimentos: ‘Mentir, mentir, que sempre fica alguma coisa’. O leitor Fabrizio Wrolli enviou carta ao ‘Painel’ perguntando em qual historiador, e em que livro, há referência à frase.

Não tenho elementos para esclarecer o leitor, de qualquer forma, é possível que Goebbels a tenha dito. Contudo, a frase não é original. Foi pronunciada bem antes do advento do nazismo por Voltaire, um dos totens do Iluminismo, e tinha como alvo a Igreja Católica, que ele chamava de infame: ‘Écrasez l’ìnfâme’. Voltaire recomendava: ‘Caluniai, caluniai que ficará alguma coisa’.

É possível, também, que a frase não seja de Voltaire, mas atribuída a ele por historiadores católicos. Periodicamente, surgem coisas assim, e o leitor acima citado lembra o caso de De Gaulle, que nunca disse que o Brasil não era um país sério. Mas a frase ficou sendo dele.

Já comentei a mania de se atribuir o ‘Navegar é preciso’ a Fernando Pessoa. O pessoal mais recente prefere citar Caetano Veloso ou Ulysses Guimarães como autores do conceito que, por sinal, é lema da Liga Hanseática. Li a frase gravada numa ponte de pedra que dá acesso a Lübeck, cidade em que nasceu Thomas Mann.

Qualquer almanaque informa que a frase foi pronunciada por Pompeu. Dividindo o poder com César, que andava pelas Gálias, Pompeu enfrentou uma crise no abastecimento em Roma. Pompeu comandou uma esquadra para buscar alimentos no norte da África. Com os navios abarrotados, os tripulantes se amotinaram, temendo enfrentar o mau tempo no Mediterrâneo. Pompeu os incentivou: navegar é preciso.’

 

 

TELEVISÃO
Cristina Fibe

Criação de produtor de ‘Lost’ estréia aqui após ser cancelada nos EUA

‘As séries americanas continuam a chegar ao Brasil com atraso; ‘Seis Graus de Separação’, produção de J.J. Abrams, de ‘Lost’, é mais uma que estréia por aqui depois de já ter sido cancelada nos EUA, onde começou a ser exibida em 2006 e não chegou ao fim de seu primeiro ano. Apesar do mote interessante -todas as pessoas estão de alguma forma interligadas-, a primeira e única temporada da série forçou um pouco a aproximação de seus personagens (seis principais, para combinar com o nome). Eles moram em Nova York, uma das maiores cidades do mundo, mas se encontram repetidas vezes, nas situações mais improváveis. Sem verossimilhança e carregada de drama, ‘Seis Graus de Separação’ pretende provar que nunca sabemos se ‘a pessoa ao nosso lado no metrô é nossa alma gêmea’.

Trama

‘Essa é a teoria: qualquer pessoa no planeta está conectada a qualquer outra por uma corrente de seis pessoas. Ninguém é estranho… por muito tempo’, narra Carlos (Jay Hernandez), advogado que passa o primeiro episódio da série obcecado por Mae (Erika Christensen), uma garota a quem ajudou a sair da prisão. Só que em Mae reside o mistério da trama: a garota, não se sabe o porquê, vive a fugir, trocando de apartamento, de emprego e de cor de cabelo. Enquanto Carlos corre atrás, conhece o esforçado Damian (Dorian Missick), um motorista assediado pelo irmão criminoso, que quer encontrar Mae. Na falta de interseção melhor, Mae passa alguns dias como babá do filho de Laura (Hope Davis), uma dramática mãe que perdeu o marido numa guerra. Laura, por sua vez, fica íntima da magérrima executiva Whitney (Bridget Moynahan), depois de se sentar a seu lado na manicure. Whitney, que só queria pintar as unhas da cor que a desconhecida usava, ganhou uma amiga de infância. Whitney já vai logo contando sobre as possíveis traições do namorado, enquanto seu amigo fotógrafo, Steven (Campbell Scott), redescobre milagrosamente seu talento adormecido (pós-vício em drogas), ao ver Laura chorando na rua. Muito drama para pouca história.

SEIS GRAUS DE SEPARAÇÃO

Quando: estréia nesta terça, às 21h

Onde: no People & Arts

Classificação indicativa: não informada’

 

 

Bia Abramo

A ração de comerciais de industrializados

‘DESDE QUE meu filho, 5 anos e 4 meses, começou a ver mais TV comercial, sua relação com a alimentação mudou. Isso foi há coisa de nove meses, quando sua tolerância para os desenhos mais ‘corretos’ do Discovery foi minguando e seu interesse por aquilo que as crianças dessa idade chamam genericamente de ‘luta’, qualquer que seja o tipo de personagem a protagonizá-la, recrudesceu.

Sua cota diária de TV passou a ser preenchida ora pela TV aberta, sobretudo os desenhos do Pica-Pau, ora pelos desenhos do Cartoon Network, do (ótimo) ‘Ben 10’ a coisas péssimas como ‘As Terríveis Aventuras de Billy e Mandy’ ou ‘Mucha Lucha’. Exceto nas datas em que cresce a venda de brinquedos, como o Dia das Crianças, o que mais se tenta vender às crianças é comida.

Exposto à propaganda, sua demanda por cereais, achocolatados, refrigerantes e salgadinhos duplicou. Mais: além de querer alimentos que não faziam parte dos hábitos da casa, ele acredita em tudo o que está no entorno: ‘Mamãe, quem toma leite com aquilo consegue mesmo subir na parede?’.

Claro, isso está no centro do negócio da propaganda -vendem-se idéias, desejos, projeções, fantasias e não as mercadorias em si. Por outro lado, é a mercadoria que encerra todo esse imaginário e, portanto, passa a ser desejada. Daí para uma desvalorização da comida de todo o dia e uma hipervalorização da comida investida de poderes fantásticos e prazeres ilimitados é um pulo.

Essa observação que faço das reações do meu filho não tem, é claro, nenhuma pretensão, além da de ecoar várias experiências de pais e mães e até mesmo de adultos que se vêem enredados pela publicidade. A gente sabe que ela não quer apenas informar -se fosse assim, para que tanta criatividade? Era só apresentar o produto e dizer que está à venda nas ‘melhores casas do ramo’, como se fazia na pré-história dos meios de comunicação.

No caso da comida e das crianças, trata-se de formar um antigosto, que separa tudo o que é de fato fundamental para a nutrição daquilo que é acessório e, às vezes, nocivo nas quantidades encontradas nos industrializados. Aquilo que é fundamental é esquisito -poucos anos atrás, um anúncio de um suplemento alimentar infantil mostrava uma criança que pedia brócolis no supermercado como um ser dotado de um comportamento bizarro, que causava estranheza à mãe. Já o supérfluo, atraente.

A discussão em torno da restrição à publicidade de guloseimas não é um caso simples de liberdade de escolha ou direito à informação.’

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Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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