O Jornal do Brasil, em sua edição de sexta-feira (4/6/04), ofereceu aos leitores, em primeira página, belo exemplo de quando a fotografia – assumida como linguagem – presta eficaz serviço à informação. A foto, para melhor situar o leitor, registra, no alto, o brasão da República, insígnia maior da nação; e, ao centro, o recém-empossado presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nélson Jobim, indo ao encontro do presidente Lula, em gesto de quem o vai abraçar.
De início, deixe-se de lado qualquer especulação, quanto à intencionalidade (ou não), a envolver o fotógrafo, cujo nome não posso mencionar, por não constar o crédito autoral. Importa o efeito possível que da foto um leitor possa extrair. A despeito de vivermos num país cuja cultura é progressivamente pautada por códigos visuais (impressos e eletrônicos), paradoxalmente são eles objeto de pouco ou nenhum estudo. Basta constatar que, no Brasil, são raros os cursos de comunicação em cujas grades curriculares constam disciplinas como semiologia e semiótica. Este fato, por si só, já dá a dimensão de nossas discrepâncias formativas. É provável que o descaso destinado a essa questão provenha do reconhecimento do quanto são poderosas as imagens.
A foto e os signos
Roland Barthes, em seu último livro, escrito em 1980, A câmara clara: nota sobre a fotografia (cf. edição brasileira, Editora Nova Fronteira, 1984), publicado na França dias antes de sua morte por atropelamento, ao tratar de sua relação com o campo das imagens, afirma: ‘(…) vejo, sinto, portanto noto, olho e penso’ (p. 39).
O ‘ver’ e o ‘pensar’, sob a mediação do ‘olhar’ e do ‘sentir’, fundam a lógica da percepção com a qual se orienta a compreensão semiótica de uma foto. É, pois, nessa perspectiva que o instante flagrado pela lente permite ao receptor empreender uma leitura a respeito dos signos presentes na foto descrita no limiar deste artigo.
O contexto já foi amplamente divulgado: durante a posse do novo ministro do STF, como parte do protocolo, discursou o presidente da OAB, Roberto Busato, que, não dispensando seus minutos de fama, valeu-se do ato para desancar com a política econômica implementada (ou continuada) pelo atual governo, focando as perpétuas injustiças do salário mínimo.
A foto reflete o gesto de consolo que Nelson Jobim, devidamente togado (túnica preta), sem olhar para o presidente, conforta-o com abraço solidário, pronto a abrigar a curvada figura do presidente da República cujos olhos estão direcionados para baixo. A diferença de altura entre ambos ainda acentua a fragilidade do consolado. Acima de ambos, brilha o dourado do brasão.
Naquela foto, pode resumir-se o enredo de uma narrativa política na qual olhares desencontrados se associam a rumos desalinhados, em meio a poderes que talvez não se conduzam com a autonomia devida. Fica, na verdade, registrada a imagem de uma nação dotada de tudo para brilhar, a exemplo do dourado de sua insígnia, porém sempre tolhida pela incapacidade de afirmar seus próprios passos. Algo de sinistro emana da toga preta a enlaçar a figura máxima da nação, principalmente se rememorados os sucessivos embates que o Executivo e o Judiciário têm gerado desde a posse de Lula, em janeiro de 2003.
Passos e tropeços
O semblante retesado do presidente da República, bem capturado pela lente do instantâneo, parece não mais conseguir reeditar a imagem de incontida euforia com a qual se marcaram os inaugurais tempos da posse. A cabeça inclinada para a direita parece refletir o quanto, cada vez mais, à direita o governo se encaminha na composição tanto de suas bases de sustentação quanto pelas medidas que toma.
A questão, afinal, é saber se os signos agrupados na foto denunciam o passar de um momento ou o transbordamento que, para além das fronteiras de uma cena, indiciam uma caminhada perpetuada por tropeços.
Ao tempo da história ficará o encargo da elucidação. Por ora, é apenas uma fotografia numa página de jornal que lembra a estrofe final de um poema de Carlos Drummond de Andrade (‘Confidência de um itabirano’):
‘Itabira é apenas uma fotografia na parede/ mas como dói’.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro